Na semana passada, o "Diário de Notícias" (DN) publicou uma notícia que começa a ser tradicional nesta altura do ano, divulgando os resultados das cartas de ruído de Almada e de Lisboa. As notícias sobre ruído urbano fazem hoje parte do menu sazonal de informação. E ainda bem! A directiva comunitária de ruído ambiental (2002/49/EC) estabelece precisamente como primeiros objectivos a monitorização regular do ruído e a informação cuidadosa do público. Só acompanhando a evolução do problema é que o cidadão se torna consciente da sua gravidade e, ao mesmo tempo, se tranquiliza com a investigação que tem vindo a ser produzida. Mais do que isso: só assim haverá um núcleo relevante de indivíduos que exijam ao poder político medidas concretas para reduzir o impacte de automóveis, aviões, comboios e outras fontes de poluição sonora.
O terceiro objectivo da directiva europeia estabelece a importância da colaboração das entidades locais. A monitorização terá de partir das autarquias que, coordenadas centralmente, deverão produzir uma carta nacional do ruído. Infelizmente, apenas Lisboa e Almada aderiram ao processo e dinamizaram as suas cartas regulares de ruído.
Ora a abordagem noticiosa do "Diário de Notícias" foi grotesca. A articulista podia ter questionado os municípios do Porto, de Coimbra, de Faro, de Aveiro ou do Funchal: afinal, as directivas comunitárias ainda não se impuseram naquelas paragens. Mas o texto reflecte esta barbaridade: Almada é a segunda cidade mais barulhenta do país!
Só há duas cartas de ruído publicadas regularmente em Portugal. Não há dados sobre poluição sonora em mais nenhuma cidade. Como pode alguém objectivamente considerar que Almada é a segunda cidade mais ruidosa se nenhuma outra se submete a escrutínio? E já agora, como se chega à conclusão de que a Almada é a segunda e não se menciona que Lisboa é a primeira?
Definitivamente, compensa muito mais não aderir ao programa. Sem dados, não há ruído registado, pelo que não há notícias desagradáveis. Proponho até a extensão do raciocínio a outro tipo de cadastros pedidos pela administração central. Que o distrito de Castelo Branco não entregue o seu levantamento de área ardida em 2004: evitará aparecer como o distrito mais flagelado pelos incêndios! O "Diário de Notícias" pegará no último da lista oficial e será esse o pior.
Que Alcochete não entregue o seu levantamento de rendimentos per capita. Evitará a incómoda distinção de concelho mais pobre do país no próximo relato noticioso do DN; que Bragança não se incomode em apresentar os registos de imigrantes ilegais detidos em bares de alterne: evitará ser distinguido pelo DN como a cidade com mais brasileiras ilegais por metro quadrado.
A lista de possibilidades é interminável. Quem sabe se não inauguramos uma nova era da sociedade de informação, em que cada município guarda para si os seus levantamentos e impede qualquer esforço de centralização de informação? Sem dados, os problemas desaparecem por encanto. Não há carta de ruído no Porto e em Coimbra, pelo que, pela lógica, não há ruído nestas duas cidades. Quod erat demonstrandum.
O texto integral da directiva comunítária sobre o ruído pode ser lido aqui.
2 comentários:
Quanto pior estiver informada a população, mais fácil será a passagem incólume de "deslizes", "faltas", e "esbanjamentos" por parte do Estado ou das Autarquias (ou outras entidades que lhes prestem um serviço) à sua percepção. A informação é um dos grandes veículos da democratização de um país (é importante não confundir informação com propaganda..).
Defendamos então a democracia a todo o custo, infelizmente ela está sobre constante ameaça e é preciso estarmos sempre atentos às tentativas feitas para "disciplinar" a opinião de um povo.
A falta de informação para isso muito pode contribuír, por isso:
por favor informem-se, para o vosso bem!
Obrigado pelo feed-back. Acrescento mais um dado: a vigilância dos conteúdos publicados diariamente em Portugal sobre este e outros pontos ambientais cabe a todos. Infelizmente, há um défice tremendo de reflexão crítica e mesmo de auto-avaliação nos meios de comunicação nacionais - diários e não diários.
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