sábado, setembro 19, 2015

O dia em que fui primeira página de jornal



Não me recordo do motivo, mas não deve ter sido sério. Culpa nossa ou culpa deles? Palavra que não me lembro. Fosse por que motivo fosse, naquele mês de Setembro de 1995, as portas do Sporting Clube de Portugal fecharam-se para o meu jornal e para os camaradas do Record. Black-out selectivo. O clube distribuiu um comunicado, escrito por um amigo meu, «com o coração a chorar» como depois me contou, vedando a nossa entrada em todas as sessões abertas à imprensa.
Hoje, já sei que é sempre «com o coração a chorar» que estas decisões são tomadas. Sobretudo quando são os outros que se lixam.
Foi há muito tempo, compreendam. Na Internet, ainda só existia o Jornal de Notícias. Os poucos telemóveis disponíveis ficavam no carro e pesavam menos do que tijolos. Deslocava-se o ombro só por dobrar uma página da nova Gazeta nos transportes públicos. O meu camarada Paulo Rolão ainda tinha cabelo. As cadeiras verdes no campo do Leça desenhavam a enigmática expressão FORCA LECA, precursora de acordos ortográficos exóticos. Carlos Queiroz parecia destinado a altos voos (palavra!). Miguel Relvas ingressava na Universidade Lusíada para cursar Relações Internacionais (juro!), mas desistiria um ano depois sem concluir qualquer cadeira (pois…). Foi portanto há muito tempo!
Santana Lopes tinha acabado de assumir a presidência e mostrava um estilo interventivo e dirigido ao coração dos adeptos – o Sporting não toleraria mais abusos nem poucas-vergonhas (onde é que já ouvi isto nos últimos meses?). Fecharam-nos as portas, excepto nos dias de jogos. Sempre que marchávamos para Alvalade, barravam-nos a porta. Entrevistei porteiros e seccionistas. Apanhava as pontas soltas e enchia páginas com pequenos nadas. Creio que cheguei a escrever uma notícia sobre um intruso que pernoitara no Museu – peça sólida, claro. Sumarenta como poucas. Podia ter dado para o Pulitzer, mas os tipos em Nova Iorque preferiram dá-lo ao Mark Fritz pelas reportagens no Ruanda. Critérios…
No final da tarde do dia 20 de Setembro, no então Hotel Penta, o clube agendou uma conferência de imprensa que pretendia publicitar os pareceres jurídicos entretanto recolhidos sobre a razão que assistia ao Sporting no diferendo com o Benfica relativo às rescisões dos jogadores Pacheco e Paulo Sousa. Talvez mal habituado pela política, Pedro Santana Lopes (PSL) gostava de se fazer esperar. Invariavelmente, deixava passar 90 minutos, por vezes 120, antes de emergir das catacumbas para falar aos media. Claro que a rapaziada, obediente, esperava. Sempre fomos bem treinados. Alguns até sabiam estender a patinha quando recebiam ordens para isso.
Desta vez, foi diferente. Cheguei ao hotel com mais dois camaradas. Fomos barrados comme d’habitude. Ficámos à porta com aquele ar de caniches que a fotografia ilustra. O simpático José Caria, então assessor do presidente, desdobrava-se em explicações. Com o coração a chorar, bem sei, mas fazia a vez de porteiro de discoteca. Por ali, não passávamos.
O António Freitas fotografou o momento. Mais tarde, na redacção, alguém propôs uma legenda que daria cacofonia: «Por Caria, a Gazeta foi proibida de entrar.» Não vingou.
Correram alguns minutos. Do presidente, nada se sabia. Chegou o Carlos Severino, da TSF. Viu-nos à porta. Entrou, percebeu o que se passava e, com a espontaneidade de sempre, perguntou ao assessor: «Então, eles não entram?» Quando percebeu que havia black-out, foi curto e grosso. «Se eles não entram, não entra ninguém!» Metade da rapaziada levantou-se logo, como se tivesse molas. Outros, os de sempre, ficaram por lá, acabrunhados, à espera de instruções, de calculadora na mão, contabilizando os black-outs já sofridos e a ausência de gestos similares.
Será que podíamos mesmo deixar PSL a falar sozinho?
Severino olhou para nós – a turma dos excluídos da Gazeta e do Record. Perguntei-lhe se era para levar a sério. Nem pestanejou. Como um ciclista em fuga na Volta a Portugal, tomou a liderança. Num ápice, irrompemos escadas abaixo com a sensação de que estávamos em vias de cometer uma imprudência bestial. Éramos garotos apanhados com a mão no pote dos doces. Lembro-me que, quando cheguei ao átrio, já tinha imaginado a crónica daquele dia. Minutos depois, chegou a segunda leva, a dos renitentes, acompanhada do simpático José Caria, que tentava travar a avalancha. «Eh pá, não façam isso ao homem!» Não explicou se estaria com o coração a chorar.
Fomos mesmo embora. «Os jornalistas gritaram ‘Basta’!», escrevi eu nessa noite, num texto confuso e romântico (Jesus, que confusão ia naquela cabeça!). «Deixaram Pedro Santana Lopes a falar sozinho para aprender a regra mais elementar da democracia (…). Da próxima vez que precisar da comunicação social, o Dr. Santana Lopes pensará duas vezes. Evitará cair novamente no ridículo!»
O grande chefe Galvão riu-se bastante do texto e da atitude. Deu-me uma daquelas pancadas brutas no ombro, à Freddy Kruger, chocalhando-me como um sismo de grau 5 na escala de Richter. Provocou-me: «Amanhã, lá na faculdade, já tens uma história para contar às gajas!» (não resultou!).
Escrevemos.
Publicámos na primeira página.
Claro que não mudou nada. O mundo não se modifica com bravatas. Nas conferências de imprensa seguintes, ficámos sempre à porta, como padroeiros das causas perdidas. De olhos no chão, alguns dos solidários do dia 20 voltaram à rotina das esperas de 90 a 120 minutos pelas entradas dramáticas em cena. «Então, rapazes, mais um dia?»
Caria deixou de sorrir quando me via.
A Gazeta fechou cerca de três meses depois. Houve gente de bem que chorou. Também se faz luto quando um jornal morre, sabiam?
Provando que não tinha maus fígados, Pedro Santana Lopes deu-nos o prazer de comparecer na festa de lançamento da revista Mundial seis meses mais tarde, como se nada tivesse acontecido. Na ocasião, foi um cavalheiro.
Creio, mas não juro, que este foi o último black-out decretado contra a Gazeta dos Desportos. Faz amanhã 20 anos e eu nunca agradeci ao Carlos Severino pela solidariedade daquele dia no Penta.