quinta-feira, outubro 05, 2023

Miguel Reis e a Frente Polisário


      Descubro pelo Facebook que morreu o Miguel Reis. Durante uma década – a década escaldante – o Miguel foi jornalista e não advogado. Os obituários que se escreverem provavelmente evocarão a curta temporada que dedicou ao jornal A Luta e a direcção do Portugal Hoje – em ambos casos, percursos pelo menos tão partidários como profissionais de que não se orgulhava muito. Prefiro celebrar o Miguel Reis do Jornal de Notícias.

A revolução de 1974 apanhou-o nas fileiras do jornal de Pacheco de Miranda, onde foi dos mais combativos. Tinha feito um curso de especialização em Paris e estava desejoso de mostrar os dentes. Entrevistou em exclusivo Emídio Guerreiro, logo em Maio desse ano – uma entrevista explosiva de Guerreiro sobre o círculo que rodeara Humberto Delgado no exílio. Obteve de Salgado Zenha uma confidência precoce de que os quadros da Polícia Judiciária seriam saneados. Era bom. Era muito bom jornalista.

Com bom acesso aos membros da Comissão de Extinção da Censura, foi dos primeiros a publicar materiais vetados durante o Estado Novo. A coluna chamava-se “Coisas da Censura” e recuperou pequenas pérolas como a circular de 1959, logo após o golpe castrista, que exigia: «Eliminar, no respectivo noticiário ou em artigos, referências a actos de crueldade ou fortunas acumuladas durante o regime de Baptista. Eliminar também a expressão fidelizar ou semelhantes, alusivas à instauração do esquerdismo revolucionário e anarquizante. Eliminar tudo que apresente Fidel Castro como grande personalidade e bem assim quaisquer referências elogiosas. São de publicar, porém, todas as críticas ou alusões pejorativas e ridicularizantes.» 

Teve chatices no JN, como tiveram vários jornalistas mais ligados ao Partido Socialista – sobretudo na delegação de Lisboa. Mas prefiro celebrar a sua coroa de glória, o episódio em que o Miguel bateu toda a concorrência e, com o Rui Ochoa e o embaixador Menezes Cordeiro, teve acesso exclusivo ao território sarauí. Os pescadores do “Rio Vouga” tinham sido raptados e um camarada argelino do Miguel perguntou-lhe se não queria obter o exclusivo de como eles eram bem tratados no deserto. O exclusivo sarauí foi do JN e o Miguel assegurou-me que chegou a ver, na embaixada portuguesa de Argel, um telegrama pessoal de Sá Carneiro «autorizando [Luís] Fontoura a reconhecer o novo estado», se preciso fosse. Fontoura era o advogado a quem fora atribuída a missão de trazer de volta os 15 pescadores.

Talvez a faceta que mais o divertiu em todo o casofora o desabafo de Luís Fontoura ao Conselho de Ministros: “Sobre a posição dos sarauís, o Jornal de Notícias sabe tanto ou mais do que eu.” 

 

sábado, janeiro 28, 2023

Fake news do século XVI

 




Granada, 29. A minha história favorita de Granada não tem que ver com o Alhambra. Está associada à Abadia do Sacromonte e envolve uma das maiores f alsificações da história.  Conto a versão abreviada e excessivamente simplificada. 
       Após a toma do Alhambra, em 1492, os muitos mouriscos de Granada ficaram em situação periclitante. Foram tolerados durante um século, mas seriam forçados por Filipe à conversão ou à expulsão na segunda década do século XVII. 
       Em 1588, como que por milagre, foi anunciada uma estranha descoberta nas grutas da colina sobranceira ao Albaicin – ao lado de restos humanos carbonizados, apareceram placas de chumbo com uma versão radicalmente nova dos Evangelhos. O monte, antes conhecido por Valparaiso, tornou-se Sacromonte.  
       Interpretados como textos do século I, contavam a vida de Jesus, filho de Maria, mas não o davam como filho de Deus — uma versão compatível com o credo muçulmano. Sugeriu-se a possibilidade de se tratar de um novo evangelho, escrito em latim e estranhos caracteres árabes, trazido para Espanha por São Cecílio (uma das figuras martirizadas na gruta). 
       A “descoberta” tinha fortes consequências. Sugeria que a população mourisca teria tanta legitimidade como a cristã para permanecer no reino. Iniciou-se um culto a São Cecílio e a abadia começou a ser erguida pouco depois. 
       Os documentos, apesar das reticências de alguns que desconfiaram do uso do latim num documento religioso tão antigo, foram enviados para a Santa Sé para estudo. Houve debate durante 40 anos. Durante 400 anos permaneceram ali (o cardeal Ratzinger só os devolveu a Granada no ano 2000). Mas sabe-se desde o século XVII que são falsos: eram engenhosas fabricações quinhentistas, criadas aparentemente por membros destacados da comunidade mourisca para legitimar a sua cultura num momento crítico. 
       Os livros plúmbeos são falsos, mas a abadia mandada construir por cima das grutas sagradas é bem real. Tal como a procissão de São Cecílio, que volta a sair à rua na próxima quarta-feira. Nunca se testaram as relíquias para confirmar as datações da Antiguidade.  
       Como dizem os italianos, non è vero ma ben trovato.

segunda-feira, janeiro 23, 2023

Quando a fonte mais fidedigna sobre um cidadão não é o próprio cidadão

 


       No cinquentenário do Expresso, há uma história engraçada que, creio, não foi contada. Envolve o tenente-coronel Vítor Alves, alvo em 7 de Dezembro de 1985 de uma notícia sem fonte citada que dava como certo o seu apoio à candidatura presidencial de Maria de Lourdes Pintassilgo. 
       Parecia apenas a espuma dos dias, própria das campanhas, mas Vítor Alves fez questão de escrever a José António Saraiva, director do jornal. Explicava, num ameno comentário (publicado uma semana mais tarde), que não aderira à candidatura da engenheira Pintassilgo nem a qualquer outra. 
       O incidente teria ficado sanado por aí, não fosse o jornal achar-se no direito de introduzir uma exótica nota de redacção após a carta do militar de Abril: «O Expresso não contactou, na verdade, o coronel [sic] Vítor Alves para confirmar o seu apoio à candidata Lourdes Pintasilgo [sic]. O candidato a deputado pelo PRD assegura nesta carta que não apoia qualquer candidatura. O Expresso limitar-se-á a acrescentar que mantém a sua informação, provindo de muito boa fonte, segundo a qual o ex-conselheiro da Revolução Vítor Alves tem vindo a manifestar as suas simpatias junto da candidatura da engenheira.» 


       Mantendo a elevação e o humor, mas com a mostarda já a chegar-lhe ao nariz, Vítor Alves lavrou um protesto ao Conselho de Imprensa. Queixava-se das fontes anónimas e das notas de redacção habituais no jornal, «receando que tenhamos chegado ao extremo ridículo em que a fonte mais fidedigna sobre um cidadão não seja o próprio cidadão, quando este decide clarificar as suas posições». 

Arquivo do Conselho de Imprensa/ANTT

       Na Duque de Palmela, Saraiva certamente percebeu que o jornal metera a pata na poça. Em Janeiro de 1986, argumentou ao Conselho de Imprensa que a nota de redacção «não foi inteiramente feliz». Mas reafirmava, em silogismo aristotélico de lógica irregular: «Uma fonte que tomamos como boa deu-nos essa informação. Cabe agora perguntar: foi a nossa fonte que se equivocou ou o ten. cor. Vítor Alves produziu alguma declaração que tenha legitimamente induzido em erro a fonte em causa? Caso se tenha verificado a segunda hipótese – e só o ten. cor. Vítor Alves poderá esclarecer o assunto – a culpa pelo mal-entendido seria imputável ao queixoso e não ao Expresso.» 
       Poucos episódios resumem tão bem o gosto do jornalismo político pelas fontes anónimas como este caso. A punchline? O Conselho de Imprensa entendeu «nada ter a condenar ao Expresso» ao abrigo da… Lei de Imprensa que Vítor Alves aprovara enquanto ministro.

domingo, janeiro 22, 2023

Um bom malandro, um deputado e uma eliminação do Sporting


       De vez em quando, três bons malandros reúnem-se em Odivelas, em frente de um tacho bem servido, e contam histórias uns aos outros. É uma espécie de competição saudável pela melhor narrativa. Esta semana ganhou um rapaz de Bogas com esta história que prova a omnipresença de A Bola de Vítor Santos, o humor de Jorge Sampaio e a memória dos tempos em que as sessões parlamentares decorriam pela noite dentro.

       Estávamos em Março de 1988 e a Assembleia fazia horas extra para aprovar legislação. Trabalhava-se a mata-cavalos e a ausência de peões neste xadrez implicava a aprovação matemática da legislação dos rivais.
       O governo era então suportado por uma maioria sólida de deputados do PSD, o que tornava hercúlea a tarefa do líder da bancada socialista, o futuro PR Jorge Sampaio, tentando segurar o dique contra a força da corrente.
       Às duas da manhã do dia 17, Sampaio pede clemência, lembrando que, na maioria dos parlamentos do mundo, só estão presentes os deputados com interesse evidente por um tema enquanto os outros trabalham no edifício noutros dossiers. Correia Afonso, pelo PSD, riposta de imediato, dizendo que os 80 deputados do seu partido ficarão ali até ser preciso.
       Sampaio contesta então: “Tenho estado a reparar – e devo dizer que cheio de inveja – que um dos tais 80 srs. deputados do PSD, por quem tenho tanta consideração e que se encontra na última fila da bancada, tem estado a ler o trissemanário A Bola, que é um jornal que também gosto muito de ler. Ora, eu, que também hoje comprei esse jornal, mas que ainda não o consegui ler porque me encontro na primeira fila da bancada, estou cheio de pena e se estivesse nas mesmas condições daquele Sr. Deputado, que tem todo o direito de ler A Bola, mas que infelizmente não tem um gabinete… A verdade é que, com estes novos aparelhos que permitem ver o que se passa no plenário, esse sr. Deputado poderia ter esta faculdade admirável que é ler A Bola e ouvir o que se passa no plenário.”
       Das bancadas ecoa uma gargalhada. O ambiente desanuvia. Na última fila da bancada do PSD (“o Terceiro Anel do Estádio Nacional de São Bento”), caçado pelo circuito interno televisivo, o jovem deputado Jaime Mil-Homens ruboriza e tenta fechar apressadamente as páginas gigantescas do jornal. Balbucia uma justificação. Calhou-lhe a fava, pois o jornal já percorrera toda a última fila.
       Correia Afonso brinca também: “Ler A Bola é olhar para um problema de desenvolvimento tecnológico”
       Sampaio remata: “Pois é, Sr. Deputado. Eu também lá estive pelo meu clube ontem na bancada.” E sacando do jornal do bolso, acrescenta: “Eu só queria dizer que, enquanto muitos deputados do PSD já tiveram tempo de ler A Bola de ponta a ponta, eu só na cama, antes de dormir, poderei saber como é que ‘isto’ correu ontem.”
       “Isto” era o empate do Sporting com a Atalanta na segunda mão dos quartos-de-final da Taça das Taças que custara a eliminação dos leões (também lá estive na bancada e vi o “frango” do Vítor Damas). Sampaio ganhou esse “round”, mas naturalmente perdeu a votação.
       Para provar que o Daniel não mente, aqui fica a página do Diário Parlamentar e uma crónica do autor em A Bola (10 de Fevereiro de 1995). As votações parlamentares nocturnas, essas, já são uma memória distante.

sexta-feira, janeiro 13, 2023

Cinco instantâneos na vida de um grande jornalista

     


        Mundial de 1966. Eusébio dá nas vistas e chama todo o tipo de aventureiros. Uma marca de lâminas de barbear quer patrocinar o craque, mas não há ainda empresários, nem advogados. Eusébio não fala inglês. Pede ajuda a um calmeirão que se desenrasca bem em Londres (trabalha então para a BBC e para a Associated Press). Hernâni Santos negoceia por ele. Arranja-lhe dinheiro. Nao escreve sobre o tema para não criar invejas em Lisboa, nem atenção das finanças. Minutos depois, com os bolsos cheios, Eusébio volta ao hall do hotel. Reencontra Hernâni Santos. “Acho que podíamos ter extraído mais aos tipos, pá. E o Coluna também acha que sim.” Primeira lição: os craques do mundo podem ter pés de barro.


     Munique, 1972. Um repórter desportivo do Diário de Lisboa monta uma das grandes trapaças do ano. Faz-se fotografar numa fila da aldeia olímpica, logo atrás do campeão olímpico Valery Borzov. No instante exacto do disparo, faz uma pergunta inócua ao soviético. Pela foto, parece uma conversa. O redactor manda para Lisboa uma sensacional entrevista, inventada do princípio ao fim. O jornal publica e só descobre a trama dias depois. Hernâni Santos, um dos responsáveis, dá uma bronca épica ao infractor, mas não o despede. Sabe por experiência própria que a pena capital não se justifica à primeira ofensa. 


     Lisboa, 1979. Mega Ferreira congela perante as câmaras de televisão. Apresenta o programa de notícias da RTP 2, uma aposta directa da direcção de Informação de Hernâni Santos, e fica largos segundos parado, em silêncio. É uma bronca num canal que ainda está a provar a sua razão de existência. Pede-se a cabeça do jornalista. Hernâni defende-o apesar das pressões. No jornalismo, mandam os jornalistas. Pouco depois é Hernâni quem bate com a porta. “Não pactuo com filhos da puta.”


    Goa, 1980. Vassalo e Silva regressa ao local onde se rendera duas décadas antes. É uma cerimónia de reconciliação entre o novo poder democrático português e o regime indiano. O tom, porém, é azedo. Vassalo e Silva é condicionado a pedir desculpa à Índia, em nome de Portugal. Um embaraço diplomático. Só um jornalista está lá – Hernâni Santos, pelo Expresso. “Dá trabalho ter sorte.”


     Castelo Branco, 1981. Um contacto no mundo da espionagem britânica avisa Hernâni Santos de que um homem condenado por traição durante a Segunda Guerra Mundial está vivo em Portugal. A equipa do Tal & Qual descobre-o em Castelo Branco. É um discreto professor de liceu. Há quem não queira publicar a história para poupar o espião nazi ao embaraço. “Publicamos os factos, o público fará juízos morais.” A história sai. Como sempre saíram as histórias de Hernâni Santos.


     Grato pela amizade, Hernâni. Foi verdadeiramente um prazer!