"Notícias Ilustrado", 23 de Março de 1930 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
Seriam pouco
mais de nove horas desta noite fria e chuvosa de Inverno, quando Joaquim Vadio
interiorizou a sua nova situação. Nesta semana de Março de 1930, Joaquim não
tinha trabalho, abrigo, dinheiro ou comida. O mulato, mais um numa Lisboa com
gente de todos os cantos do império, vagueava por São Paulo, na zona baixa de
Lisboa, sem um propósito firme – mais um vagabundo miserável numa Lisboa de
vasta miséria, entre ilhas de luxo e glamour que se divertiam com as vitórias
no rugby e as festas elegantes, celebradas nas colunas de mundanidades dos
jornais.
Largando a
protecção do portal da Igreja de São Paulo, Joaquim enfrentou o frio,
encolhido, de mãos nos bolsos, com o estômago colado pela fome. Protegido por
uma boina coçada e uma camisa de ganga que resistira a muitos invernos,
procurava um rosto conhecido, sem se atrever a pedir esmola. “Cosido com a
parede”, foi avançando como um autómato até o som de notas musicais e
gargalhadas alegres o despertarem. Espreitou pela janela de um cabaret e observou os clientes, felizes, saciados,
reconfortados. “Num súbito rancor de homem que se sentia desapossado dos
direitos à ventura”, odiou instantaneamente toda aquela gente que se divertia,
alheia à miséria, indiferente a quem ainda não tinha jantado, nem sabia se,
naquela noite fria, teria abrigo que “não fosse um portal ou um vão de escada”.
No entanto,
Joaquim Vadio não era um vagabundo qualquer, nem estava propriamente à mercê do
destino e “dos primeiros latidos da fome”, como reclamava. Joaquim Vadio era um
repórter são-tomense e estava em missão. Chamava-se Mário Domingues (1899-1977)
e trabalhava para o “Notícias Ilustrado”, a revista de domingo do “Diário de
Notícias”. Aos 30 anos, Domingues tinha a tarimba de um veterano. Culto como
poucos, poliglota (aprendera francês com Marcel Meunier, famoso correspondente
do “Matin” em Lisboa e debicava inglês e alemão por influência dos marinheiros
que aportavam ao Café Royal), com espírito de aventura aprimorado na parceria
inesquecível formada com Reinaldo Ferreira (o famoso repórter X de que falarei
noutro dia), personificava um novo género jornalístico emergente nas
publicações portuguesas – a reportagem participante. E este trabalho seria a
sua coroa de glória.
"Notícias Ilustrado", 23 de Março de 1930 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
PROJECTO SOCIAL
DOS JORNAIS
A miséria urbana
era há muito objecto de notícias nos jornais e revistas portugueses. Desde o
início do século XX que a imprensa republicana denunciava ardentemente as
condições desumanas em que se vivia em Lisboa e no Porto, incitando ao combate
ao desemprego e à doença. A implantação da República tardou em modificar estes
quadros de miséria humana, que chocavam os visitantes e envergonhavam os
locais. Nas duas primeiras décadas do século, as páginas dos periódicos
reflectiam o problema social, olhando-o do exterior, analisando-o,
dissecando-o, propondo causas e invectivando responsáveis, mas sem ousar passar
a fronteira da experiência directa. Espreitamos páginas da “Ilustração
Portuguesa”, revista semanal de “O Século”, sobre as comunidades urbanas e
pressentimos o desconforto de quem olha à distância, sentimento seguramente
partilhado pelos leitores que folheariam apressadamente a publicação ainda
elitista, suspirando por um mundo melhor.
Miséria na Póvoa do Varzim, "Ilustração Portuguesa", 194, 1909
(reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital)
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O projecto de
Mário Domingues deverá ter começado em 1918, com uma farsa (entre tantas outras)
de Reinaldo Ferreira para o efémero jornal “A Manhã”. O jornalista vestiu-se
então de mendigo, foi fotografado a rigor, enganando durante a sessão alguns
transeuntes, que lhe deixaram esmolas. Reinaldo era entusiasta, mas não se
detinha no rigor factual (dizia-se, a certo ponto, que o R de Reinaldo valia
por “Realidade” e o F de Ferreira por “Fictícia”). Isolou-se durante três dias
e escreveu uma crónica pungente sobre a sua aventura como mendigo nas ruas da
cidade pobre, num texto tão expressivo e cativante como falso. Na verdade, o
futuro repórter X inventara praticamente toda a aventura, mas a sua reportagem
foi discutida nos principais fóruns da cidade. É provável que a semente da
ideia tenha perdurado no cérebro do amigo Mário Domingues, incitando-o a tentar
um projecto semelhante, mas jornalístico.
Domingues viria
a encontrar no cineasta e jornalista José Leitão de Barros o interlocutor
perfeito. Leitão de Barros dirigia então a revista do “Diário de Notícias”, à
qual imprimira um sentido estético e dramático muito diferente das publicações
concorrentes (é incomparável o seu investimento em fotografia, textos curtos e
dramáticos com, por exemplo, o “Domingo Ilustrado”, ainda dependente de
gravuras e fotos em pose). Neste ano de 1930, Leitão de Barros estreara o filme
“Lisboa”, num registo terno e romântico sobre as figuras de Lisboa (que “não
pretendia ser um documentário, mas sim uma crónica de aspectos particulares”,
garantia o autor numa carta ao “Diário de Lisboa” de 10 de Abril). Mas o cineasta
sabia que, para lá dos quadros típicos e estereotipados das varinas e das
aguadeiras, havia outra Lisboa. E que essa Lisboa, se bem representada, poderia
vender revistas, mesmo que fosse igualmente uma reconstituição artificial e
ideológica.
EM MISSÃO
Mário Domingues
passou oito dias sem retirar a máscara de vagabundo. Foi reconhecido uma vez no
porto de Lisboa por um amigo que, enternecido, se ofereceu para o ajudar a
endireitar a vida. Do ódio inicial face aos que se divertiam, a sua percepção
foi evoluindo para uma aceitação gradual do statu quo. Frequentou bares e tabernas. Relatou, com traços
realistas, a generosidade desinteressada dos lisboetas, mas também o alheamento
de quem passava por ele nas ruas e parecia não o ver. Conheceu ingleses e
galegos, coristas e taberneiros. Recebeu propostas de emprego e ofertas
desonestas. Foi aliciado com ofertas de emigração para o Brasil e para a
América, que ponderou, mas recusou em nome da sua paixão pela cidade.
Domingues
resistiu também à tentação de enquadrar o seu registo num quadro sobre o
racismo na cidade. As suas referências a africanos em dificuldades foram
cautelosas e não generalizaram o estereótipo. Aliás, todo o registo de
aventuras e desventuras obedeceu a um guião, expresso no último parágrafo da terceira
crónica, publicada no número 96, no final de Abril: “(…) esta Lisboa pobre,
pacata, mas que sabe, apesar de tudo, dispensar melhor do que as grandes
capitais do mundo alguns carinhos aos párias, aos que não possuem pão, nem
trabalho, nem abrigo”.
A miséria da
cidade, abrigada em barracas ou nas furnas de Monsanto, doente, faminta e
sobretudo dependente da caridade alheia, foi, de alguma forma, um objecto
distante na reportagem de Mário Domingues. Ela existe, mas não é reversível,
nem dissecada ao pormenor. No enquadramento que domina todo o texto,
adivinha-se a mensagem fundamental: a solução reside na entreajuda e nos golpes
de acaso, que podem mudar o destino, porque nada mais o fará, antecipando em
mais de uma década Tennessee Williams e a sua Blanche, vivendo sob a máxima
de que se pode sempre depender da bondade de um estranho.
Recebido o texto
e dividido por três edições, publicadas entre Março e Abril, Leitão de
Barros... retocou um pouco mais a realidade, aplicando-lhe preceitos
comerciais.
"Notícias Ilustrado", 23 de Março de 1930 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
Na manchete do primeiro tomo, escreveu despudoradamente: “Nas Furnas de Monsanto! À Gandaia! I Sensacional Reportagem do Jornalista Vagabundo Mário Domingues, que passou oito dias e oito noites nos locais miseráveis de Lisboa, vivendo de esmolas e de roubos!” Em nenhum momento do texto, Domingues reconhecera ter roubado ou sequer infringido a lei, e as furnas de Lisboa praticamente não eram mencionadas. Na abertura do texto, introduziu-lhe a moral que faltava: “Para que saibam os da vida folgada e liberta, com abrigo certo, quanto é dura a existência dos que, nas grandes cidades, arrastam frios e fomes na luta pelo pão de cada dia.”
UMA CARREIRA
PROMISSORA
Sabe-se pouco
sobre a aceitação destes três textos entre os pares do jornalismo português. A
cumplicidade de Mário Domingues com Reinaldo Ferreira ou o registo de
envolvimento participante poderão ter prejudicado a credibilidade do seu relato
aos olhos dos companheiros de profissão mais tradicionalistas. A revista só
voltou ao tema mais uma vez, semanas mais tarde, ao reproduzir uma estranha
auto-entrevista de Mário Domingues a Joaquim Vadio, com ilustrações de Stuart
Carvalhais, ao longo da qual o jornalista anunciava a sua desistência do mundo
burguês e a sua adesão ao estilo de vida nómada dos “marginais de Lisboa”. Nos
jornais contemporâneos, em contrapartida, não encontrei referências à proeza,
nem sequelas do mesmo teor.
No “Diário de
Lisboa” de 12 de Abril, em texto não assinado, a miséria urbana voltou a ser
focada num registo “objectivo”, seguro, apontando causas da mendicidade e
sugerindo caminhos, mas sem ousar sentir na pele o que viviam os miseráveis de
Lisboa. O próprio Leitão de Barros dirigiria as edições seguintes da revista
para um registo mais informal, concentrando-se nas novidades do cinema e da
rádio portuguesas, suas paixões declaradas, e menos nas questões políticas e
sociais.
"Diário de Lisboa", 12 de Abril de 1930 (reproduzido a partir do arquivo da Fundação Mário Soares) |
Mário Domingues
foi quase de seguida convidado por Reinaldo Ferreira para chefiar a redacção da revista Repórter X, projecto imaginativo mas pouco sustentado, que o são-tomense abraçou apaixonadamente. Quase um ano depois da aventura na gandaia, em 11 de Abril de 1931, Mário Domingues patrocinou um esforço parecido do repórter Américo Faria que, ao serviço do Repórter X, procurou viver entre os rufias de Lisboa. Recordando a sua própria experiência, Domingues escreveu em editorial: «Roçámos por muita lama; dormimos em pocilgas inconcebíveis; conhecemos na intimidade vadios que já eram veteranos; aprendemos a fazer dinheiro com os despojos que a cidade despreza; soubemos como poderíamos, para fugir ao inferno da miséria, emigrar clandestinamente para a Argentina; escutámos de bocas impuras de megeras prostituídas propostas ignóbeis de mancebia torpe; observámos como se consegue viver largamente da caridade pública bem explorada (…) e concluímos que a maioria dos maltrapilhos que tu, leitor, vês passar enojado não é má, é infeliz, infinitamente desgraçada.»
Em 1932, encontramo-lo numa publicação que mudaria a sua vida. Dirigiu a revista “O Detective”, encontrando no registo da novela policial e no contacto com as forças de segurança da cidade a matéria-prima para a carreira que abraçaria de seguida.
Em 1932, encontramo-lo numa publicação que mudaria a sua vida. Dirigiu a revista “O Detective”, encontrando no registo da novela policial e no contacto com as forças de segurança da cidade a matéria-prima para a carreira que abraçaria de seguida.
Na verdade,
apesar de manter colaborações dispersas em jornais e de criar peças de teatro
(duas, por exemplo – “Má Raça” e “A Sombra do Passado” –, foram proibidas em
1938 pela Comissão de Censura por voltarem aos registos de crítica social e
denúncia da miséria, pouco interessantes para o regime), Mário Domingues
abraçou a carreira de escritor. Foi autor, nas décadas seguintes, de dezenas de
novelas policiais, vertendo para o papel a riqueza do contacto que absorvera na
relação com polícias e reclusos em “O Detective”. Cioso da importância do
estrangeiro nas indústrias culturais portuguesas, adoptou, como bem nota o
blogue Policiário de Bolso,
pseudónimos estrangeirados, uma prática que Dinis Machado também seguiria muito
mais tarde.
Espreite com
atenção a sua estante de livros mais antigos. É bem possível que ali encontre
obras de Fred Criswell, Henry Jackson, James Black, Joe Waterman, Marcel
Durand, Max Felton, Nelson MacKay, Peter O‘Brion, Thomas Birch ou W. Joelson.
Em comum entre estes prolíferos novelistas (e talvez outros de que ninguém
sabe), uma circunstância: todos foram obra da imaginação de Mário Domingues, o
jornalista nascido na Roça Infante Dom Henrique (na ilha de São Tomé), que
vivera na aldeia da Porcalhota na juventude, até se mudar com a avó e a irmã
mais velha para Lisboa, e que, um dia, abandonou a elite para viver durante oito
dias como vagabundo nos bairros pobres da cidade.
EPÍLOGO
Luís Dantas
escreveu, num e-book, a obra mais completa sobre Mário Domingues, reproduzindo
ali todo o texto publicado nos “Notícias Ilustrado” de 1930.
É através desta fonte que conhecemos mais duas facetas de Mário Domingues. Boa
parte do seu sustento nas décadas de 1930 e 1940 proveio das traduções de obras
estrangeiras. Mais tarde, o autor enveredou também pela biografia histórica,
assinando quase uma dezena de obras sobre personalidades da história
portuguesa, cuja relevância é discutível na medida em que expressam
documentação deficiente e liberdades criativas românticas, resultando em
exaltações e denúncias pouco credíveis de vários reinados portugueses.
Em 1959,
Domingues escreveu também um pequeno texto sobre o fecho do Café Royal, o seu
destino predilecto, em cujas mesas idealizara mil projectos com Reinaldo
Ferreira – a evocação (digitalizada aqui, página a página, pelo projecto Mosca da
Universidade de Évora)
vale como máquina do tempo para a Lisboa dos cafés e dos bares do início do
século. Em 1960, assinou a sua obra mais polémica, redigindo o “Menino Entre
Gigantes”, registo quase autobiográfico, no qual o tema do racismo aflora,
mesmo sob a vigilância da censura.
Aos poucos, porém, o seu nome foi sendo esquecido, tal como a memória da sua saga entre os miseráveis de Lisboa se foi esfumando. No livro-entrevista que realizou em parceria com Artur Portela ("Cardoso Pires por Cardoso Pires", 1991, pp. 59), o escritor José Cardoso Pires lembrou-o como um exemplo, a par de Julião Quintinha, António Ferro, Leitão de Barros e Chianca de Garcia de uma geração de jornalistas urbanos, "escritores menores", é verdade, mas "homens que escreviam dia a dia para Lisboa [e] se aventuravam a uma prosa citadina". O legado de Mário Domingues, porém, desapareceu.
Aos poucos, porém, o seu nome foi sendo esquecido, tal como a memória da sua saga entre os miseráveis de Lisboa se foi esfumando. No livro-entrevista que realizou em parceria com Artur Portela ("Cardoso Pires por Cardoso Pires", 1991, pp. 59), o escritor José Cardoso Pires lembrou-o como um exemplo, a par de Julião Quintinha, António Ferro, Leitão de Barros e Chianca de Garcia de uma geração de jornalistas urbanos, "escritores menores", é verdade, mas "homens que escreviam dia a dia para Lisboa [e] se aventuravam a uma prosa citadina". O legado de Mário Domingues, porém, desapareceu.
Socorro-me por
isso de um parágrafo das memórias de Luís Dantas para evocar este capítulo da
história do jornalismo que, se não tem outra validade, procura preservar o que
é efémero no mundo dos jornais: “Quando o conheci, por mero acaso, na redacção
do jornal O Século, não me percebi se o velho jornalista tinha desatinado.
Pareceu-me que andava por ali com olhar errante e coração fraquejado,
cumprimentando um ou outro colega com vénias para voltar a sair num choro
silencioso. Depois, agarrado ao bordão, retirava-se para as bandas da Ribeira
Nova, a São Paulo. Talvez fosse beber um bagaço e acender recordações de tempos
resplandecentes… E morreu assim, com essa mania, quase esquecido, em 1977.”
Mário Domingues em reportagem para a Repórter X, de que foi chefe de redacção (Repórter X, 1930, 19. A partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
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