segunda-feira, abril 22, 2019

Como Tales de Mileto foi superado por José António Saraiva



Acabei. Devo ter sido o primeiro português a acabar o terceiro livro de memórias de José António Saraiva (Eu e os Outros, Gradiva, 2019), mas já está.
Deixo algumas notas soltas de leitura, pois o livro não justifica uma recensão formal:

1) O catálogo da Gradiva tem mais oscilações do que um veleiro no mar do Norte – ora vai acima, ora vai abaixo [caso tivessem dúvidas, com o volume em apreço, foi abaixo].

2) Não conheço mais nenhuma personagem histórica, incluindo Tales de Mileto e Cristiano Ronaldo, que tivesse produzido três volumes de memórias. Temos portanto um volume para cada 23 anos de vida do arquitecto. Parece-me pouco…

3) O autor está – lamento dizê-lo – seco como um limão. Não tem mais histórias para contar que tivessem ficado de fora do primeiro volume (não convencional, mas inquestionavelmente importante para historiadores e curiosos) e do segundo (mais cheio de fel, mas ainda com alguma polpa). O momento mais dramático do livro oscila entre o acidente onde nada aconteceu a nenhum dos envolvidos (pp 189-191, caso estejam interessados) e o estratagema ardiloso para evitar pagar bilhete no eléctrico da Cruz Quebrada (pp 132-133). Decidam os senhores que eu vou beber um copo de água para acalmar.

4) André Jordan, em entrevista à Visão desta semana, diz que quem escreve as memórias não tem de escrever a verdade, nem toda a verdade. Escreve a sua versão – aquela que quer contar e, idealmente, gostaria de ver perpetuada. Estou de acordo. Nas mais recentes memórias de JA Saraiva, porém, não há nada para reescrever, nem razão visível para publicar. Estas parecem ser as mais recentes memórias, no sentido em que foram os últimos pensamentos que passaram pela mente do autor, mas isso não costuma ser motivo para publicar livros. Pelo menos, lá fora.

5) Na capa do livro, há 15 rostos visíveis e dois tapados pelo sinal de trânsito para perigo. Posso assegurar que, à excepção de Marinho Pinto, nenhum foi mimoseado com mais de dois parágrafos. O único perigo, pois, é o de adormecimento ao volante.

6) Tratando-se de quem é, há, naturalmente, erros. O Maio de 1968 não foi «quase simultâneo» da Primavera de Praga (pp. 24). Passaram três meses entre o início de um e o início do outro. E tenho pena também, mas o Mariano Amaro, que o avô Virgílio salvou da tuberculose (pp. 16), não foi certamente uma das torres de Belém. Cresci a ouvir falar de Feliciano, Vasco e Capela, eles sim, as torres do Belenenses. Amaro foi um dos dois senhores que não levantou o braço para saudar os falangistas num Portugal-Espanha e cerrou o punho. Foi preso por causa disso. Tenho o processo e posso emprestá-lo.


7) Termino com uma inesperada nota afectiva. Em quase todas as intervenções anteriores, o autor foi sempre muito mais pródigo em elogios para o seu tio, José Hermano, do que para o pai, António José. Politicamente, estava mais próximo daquele do que deste e é natural que entre pai exilado em França e na Holanda e os filhos em Lisboa não se tenham estreitado laços. Mas gostei de ler. Nas memórias de José Hermano Saraiva (escritas a quatro mãos com o sobrinho), transparecia um carinho muito grande entre os dois velhos irmãos, mesmo quando a política os separou. Pela primeira vez, José António Saraiva escreve abertamente sobre o pai, com um carinho que me desarmou.

Aguarda-se agora o quarto volume, subordinado ao título Coisas de que Quase me Esquecia.

terça-feira, abril 16, 2019

«Em questões fiscais, ele ainda é mais burro do que eu»


Por infeliz coincidência, li o volume Football Leaks (Planeta, 2019) na mesma semana em que preparei a documentação para apresentar a declaração fiscal anual. A sensação não foi muito diferente da do infeliz no restaurante que pega no saleiro em vez do açucareiro e polvilha os morangos da sobremesa com o condimento errado. Ainda pensei em pedir ajuda à Gestifute para tentar vender também os meus direitos de imagem à Tollin nas Ilhas Virgens Britânicas, na esperança de que a Tollin os cedesse depois à MIM na Irlanda, mas lembrei-me da frase de Cristiano Ronaldo na sessão de tribunal que o condenou: «Jorge Mendes ainda é mais burro do que eu» em assuntos fiscais. Talvez não valha a pena, portanto.
Pode não parecer, mas Football Leaks  é um livro sobre jornalismo e presta contas sobre um dos trabalhos mais exaustivos e sagazes desenvolvidos pela imprensa europeia desde 2016. Infelizmente, chegou cá distorcido e distante da mensagem original, embrulhado em camadas de hipocrisia (que melhor exemplo do que Lobo Xavier, advogado fiscal de CR7, caracterizar Rui Pinto, o assumido denunciante, como ladrão de bancos e arrumando simploriamente a discussão enquanto “comentador imparcial”?)
O livro é, acima de tudo, uma reparação das falhas da cobertura noticiosa dos nossos media sobre este caso que juntou uma coligação invulgar de empresas jornalísticas internacionais e implicou meses de trabalho árduo. Por cá, infelizmente, o Football Leaks foi construído como «o caso do hacker dos emails do Benfica» e pouco mais. Temo que muitos não consigam sequer explicar o motivo alegado pelas autoridades portuguesas para a prisão preventiva de Rui Pinto.
Há um século, o político republicano João Chagas queixava-se, com razão, que os portugueses que se limitavam à leitura do jornalzinho nacional viam o mundo por uma frincha, convencidos de que a frincha era o mundo todo. Não era então e não é agora. No Der Spiegel, no The Guardian, no El Mundo e, ocasionalmente, no Expresso, a história tornou-se muito mais complexa, muito mais cinzenta e, em última instância, forçou o difícil debate sobre o que vale mais num caso desta natureza – se o modo, porventura ilícito, como os documentos foram encontrados ou se as implicações que estes produzem superam esse desconforto.
Entendamo-nos. À excepção do negócio da cocaína e dos empréstimos da Dona Branca, o futebol parece ser a única actividade que permite decuplicar o investimento em menos de um ano. Não foi por isso que qualquer um de nós se apaixonou pelo jogo, mas é certamente por isso que gente pouco recomendável trouxe o seu dinheiro para a mesa verde do casino da UEFA.
Entre 18,6 milhões de documentos publicados online ou cedidos ao consórcio de investigação, o Football Leaks expôs dois ângulos do negócio do futebol – a imoralidade e a ilegalidade. Com a primeira, convenhamos, cada um lidará como entender, ora afastando-se do jogo, ora aceitando que o novo normal do mundo do futebol é um avançado receber bónus por marcar golos (Vide Lukaku, pp 269-270), ser premiado por fidelidade num novo contrato depois de romper unilateralmente o contrato anterior (Dembelé, pp. 263) ou – o meu favorito – receber um milhão de euros de bónus, como Ballotelli (pp.84), se não for expulso mais de três vezes na mesma temporada.
Com a ilegalidade, porém, a história é diferente. O Football Leaks expôs infracções flagrantes às regras de fair-play financeiro, aos regulamentos que proíbem a posse tripartida de passes de jogadores ou o controlo de mais de um clube pela mesma associação de malfeitores. E, sobretudo, para irritação de muitos, os delatores expuseram os esquemas mirabolantes de jogadores, treinadores e agentes para fugirem à tributação e colocarem dinheiro a salvo em paraísos fiscais. Essa é, para mim, a justificação que legitima o denunciante, mas também pode ser só a minha justificação para a frustração de não conseguir declarar as facturas do veterinário do gato e das permanentes da avó como deduções à colecta. Decidam os senhores.
Na página 159, um dos autores faz a pergunta decisiva do livro. Sentado na tribuna de um estádio cheio durante o Euro’16, o jornalista perguntava-se se as revelações sobre os negócios vorazes do futebol, frequentemente corruptos e quase sempre hipócritas, afectariam os adeptos. Se gerariam alguma repulsa.
Passaram meses sobre as grandes revelações e sobre as confissões de várias estrelas (que “voluntariamente” devolveram às autoridades tributárias milhões de euros em troca do não-cumprimento de penas prisionais). O mundo da bola continua a girar. O principal denunciante está preso em Portugal, acusado de ter ludibriado um fundo predador, representado por um empresário ao qual – sejamos honestos – nenhum de nós compraria sequer um carro em segunda mão. O Verão aproxima-se com a promessa de novos recordes no mundo desgovernado das transferências e certamente novas cláusulas mirabolantes (talvez um subsídio por cada ocasião em que o craque saudar as claques ou um prémio ao guarda-redes que defender mais de um remate por jogo).
Aos deuses do estádio, sabemo-lo agora, perdoa-se tudo.