terça-feira, julho 21, 2015

«Lá vem este Mínimo Gorki»



Tem um «feitio tão desligado, tão discreto, tão distante», como avisa no pórtico da 30.ª edição de Os Putos, que é natural que a fama literária o tenha banhado de forma tão efémera  como a rebentação de uma onda que logo recua para a posição original. «Sou avesso a tertúlias e, das raras vezes que aconteceu sofrer a vizinhança dos círculos onde se cultivam as chamadas ‘relações úteis’, logo tratei de fugir», continua Altino do Tojal, em jeito de explicação adicional. Mas o paradoxo persiste: Altino do Tojal (o nome próprio é real, o apelido é pseudónimo como avisa em A Minha Rua) produziu alguns dos volumes de contos mais poderosos da nossa literatura da segunda metade do século XX.

A culpa, reconhece-o ele em O Chato, é essencialmente do próprio. Fez-se «evitador de cerimónias, o que não vai a conferências, o que jamais deu uma entrevista, aquele que nunca aparece na televisão – eu, o esquivo, o solitário, o bicho do mato.» Poucos lhe conhecem o nome completo. Talvez nem todos saibam que foi durante sete anos jornalista no Jornal de Notícias (JN), de onde saiu com estrondo depois de publicar, em Maio de 1973, nas Edições Prelo, o volume Os Putos, que recolhia alguns dos seus contos mais controversos sobre a vida de um jornalista na redacção do JN. «Despediram-me sem ao menos me ouvirem», contou numa rara entrevista a Luís Souta em 2001, em A Página da Educação.
Entre os textos mais célebres da sua obra, conta-se A Homenagem, colectânea brilhante de contos sobre personagens do Porto que o acolheu. No conto que deu nome à obra, descreveu uma sessão de homenagem ao director do jornal (adivinha-se que seria Pacheco de Miranda), fazendo desfilar, com deboche e humor, os defeitos de uma redacção vista à lupa.
     Lá figura o chefe de redacção, «homem preparado para a vida, [que] sabe chorar quando é preciso»; o director que não consegue articular um discurso coerente e que, em privado, discorre entusiasmado sobre futebol e prostitutas; o repórter fotográfico que se gaba de ter puxado pelo choro de uma mãe enlutada para captar uma foto que «nem os tipos do Paris-Match teriam feito melhor»; o antigo chefe do Estrangeiro que convidou o director para padrinho de casamento e o subdirector para padrinho do primeiro filho; o subdirector que torturava os famélicos na escola; e o contínuo, voz da razão no meio da orgia de costumes, que aconselha o repórter Altino: «Vá por mim, chegue-se aos grandes, ria c’o eles. Olhe qu’eles fodem-no! Sigure o emprego.»


Aliás, o jornalismo é tema comum na obra de Altino do Tojal. Emerge em Os Emigrantes com Teobaldo que procura na redacção de Altino financiamento para «ir prás estrelas, numa viaige de valão», com pena de não poder levar consigo o porco. Figura em O Quarto, conto delicioso sobre o seu despedimento e o conselho que o jornal lhe deu: «No livrito que escreveu, V. Exª não nomeou ninguém; mas desgraçadamente para si, todos nos reconhecemos. Que desastrado V. Exª é! Porque não tomou por modelos os contínuos, ou mesmo, vá lá, os repórteres-estagiários? Soltávamos umas boas gargalhadas cá nas nossas poltronas e a coisa morria aí.»
Figura igualmente em Judite, conto delicioso sobre uma menina que todos os dias limpa o campo de pedras porque lhe disseram que o avião do pai aterrará ali se o campo estiver limpo – Altino regressa à sua redacção desejoso de escrever um apontamento humano sobre a petiza. É recebido com sarcasmo e total indiferença pelo chefe de redacção: «Lá vem este Mínimo Gorki foder-me outra vez o juízo! Deixe-se de minhoquices, homem. Fale-me de coisas sérias. Assuntos sólidos, dinâmicos, de promoção económica, de impacte geral. Fale da barragem», aconselha. «Olhe, sente-se, escreva umas linhas folclóricas; sublinhe a necessidade de se desenvolver o turismo em região tão dotada pela natureza e meta pelo meio umas referências ao hotel (…) Pertence ao cunhado do nosso director. (…) Ponha uns adjectivos vistosos. Uma coisa compostinha, ham? Você, se quiser, até sabe.»
      No final da Primavera de 1973, Altino foi despedido do Jornal de Notícias. Embora o rasto documental desta vingança administrativa não abunde, há notas circunstanciais muito curiosas. Numa  carta de 14 de Junho de 1973 da jornalista Maria Helena Lima Policarpo para João Gomes, redactor da República (fotocopiada pela PIDE e anexada ao processo do jornal), conta-se que o JN estava então em apuros: «Não mete agora ninguém porque despediu o Altino [do] Tojal por causa do livro que escreveu, onde, segundo parece, relata gente lá de dentro de uma forma 'ridícula' e o director [Pacheco de Miranda] disse-me que, por agora, queria refazer-se dos cem contos que lhe tiveram de dar.»
Quando saiu do Jornal de Notícias, Altino foi integrado na redacção de O Século em Lisboa, onde acompanhou o processo revolucionário e permaneceu até ao fecho do jornal. Viria ainda a escrever durante 17 anos para O Comércio do Porto, definindo-se sempre como um contador de histórias, um incansável coleccionador das peripécias do quotidiano. Em A Homenagem, aliás, regista: «Felizmente, trago sempre esferográfica em tudo quanto é bolso.»
Na Torre do Tombo, subsistem fragmentos da sua carreira literária e jornalística. É por essa a fonte (e pela vigilância que a PIDE lhe atribui) que sabemos que foi escriturário na biblioteca e arquivo de Braga, onde permaneceu até Julho de 1962. Voltou a ser notado pelo regime num processo-crime contra a tipografia de um amigo que imprimira o manifesto de Henrique Galvão aos portugueses, mas desconhece-se se teve, de facto, um papel concreto na operação. E, em Janeiro 1969, não se fez rogado e assinou igualmente uma carta aberta a Marcello Caetano, exigindo a concessão de maiores liberdades – já trabalhava então no JN desde 1966.
      É no entanto um singelo documento de uma página que capta mais a imaginação. Trata-se do relatório dos Serviços de Censura sobre a primeira edição de Os Putos, datada de 18 de Maio de 1973. A obra foi autorizada a circular… por motivos inesperados. Em primeira leitura, o funcionário Ernesto de Moura Coutinho anotou que, em quase todas as histórias, «há uma intenção política negativa», por vezes com uma «certa violência», indício da prática de crimes previstos e puníveis por lei, recomendando por isso a sua apreensão. A apreciação porém foi revogada pelo parecer de Manuel de Almeida Rino Júnior [uma raridade segundo o estudo exaustivo de Joaquim Cardoso Gomes sobre a Censura e os seus mecanismos], que rabiscou: «Parece-me não dever dar-se a uma obra de baixíssimo nível literário a míngua de atenção de qualquer leitor medianamente cultivado; a valorização e propaganda clandestina não deixariam de se verificar».
     A obra de «baixíssimo nível literário» foi autorizada. Hoje, vai na 30.ª edição e é lida por estudantes de todos os níveis de ensino. Na sua carreira, Altino do Tojal, nome literário de Altino Martins da Costa (1939), não fez fortuna: dividiu-se entre o jornalismo, por necessidade, e a literatura, por paixão, acalentando o sonho de sobreviver apenas com a segunda. «Ilusão, pura ilusão», lamentou a Luís Souta em 2001.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
(Serviços de Censura/SNI)
Tanto quanto é possível saber, Altino do Tojal está vivo. Resiste como sempre aos pedidos de entrevista (que também solicitei). Tem uma rua com o seu nome na aldeia da Beirã, em Portalegre, mas vive entre o Minho e Lisboa. Percorreu o mundo e descreveu-o na sua brutalidade, com tons inegavelmente carinhosos e esperançosos desde o dia do final do Verão de 1961 em que, enfiando as mãos nos bolsos, atravessou a fronteira por Lindoso «descontraído, a assobiar, sem passaportes, sem dinheiro, mas com a cabeça fervilhante de projectos literários», contou a Luís Souta.
      «A minha aventura correu mal. Fui detido e devolveram-me à procedência, por etapas, com algemas nos pulsos. Entre as prisões espanholas que conheci avulta a de Valladolid. E avulta porquê? Porque o meu carcereiro achou que devia levantar-me a moral revelando que na cela pegada à minha tinha estado enclausurado Cristóvão Colombo.» 
      Perdeu o jornalismo, ganhou a literatura, embora o nome de Altino do Tojal merecesse um lugar mais destacado no pedestal dos escritores portugueses do século XX. Nada que o preocupe excessivamente. Como ele refere em Nós, Os Brácaros, «felizes são os povos que não precisam de heróis!» 

quinta-feira, julho 16, 2015

O que viu José de Freitas da janela de um comboio chinês? – Parte 2


Não é comum, mas aconteceu desta vez. No ano passado, publiquei uma crónica sobre a viagem do jornalista do Diário Popular José de Freitas à China de Mao em 1964 [texto original aqui]. Para os camaradas de Freitas no jornal, as reportagens, mais tarde reunidas no livro A China Vence o Passado, ficaram muito marcadas pela observação de um fenómeno nos céus que Freitas pensou resultar de uma experiência atómica. Meses mais tarde, descobri que, no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros (antigo Ministério do Ultramar), existia uma pasta do mesmo ano, codificada apenas como “José de Freitas, do Diário Popular, visita à China Continental” e marcada como “Secreta”. Pedi acesso e esperei pela desclassificação dos documentos.
Aqui fica a adenda à história original recomeçando no ponto exacto onde deixei a narrativa anterior.

Terminada a visita chinesa, José de Freitas regressa a Macau, tradicional porta de entrada portuguesa no Império do Meio. Está apreensivo. Guarda um segredo e, em terras de Mao, nunca sentiu confiança em nenhum dos seus interlocutores para o partilhar. Estava igualmente fora de questão telefonar para Lisboa. No dia 23 de Abril, pede de imediato uma reunião com o governador da província de Macau, António Lopes dos Santos. É provável que sentisse uma ponta de orgulho pelo seu papel de correio diplomático.
Num relato simples e objectivo, Freitas confessa ao governador as gentilezas de que foi alvo em toda a viagem e o percurso gizado pelos chineses para dar a conhecer o seu país. As ambicionadas entrevistas exclusivas com Mao Tsé-Tung e Chu-En-Lai foram frustradas, «muito delicadamente», mas com firmeza. O seu propósito de enviar uma mensagem de boa vontade através da Rádio Pequim foi igualmente negado.
A China, explicou José de Freitas ao seu interlocutor, sentia-se pressionada, entre o seu apreço histórico pelo país que governava Macau e o seu apoio aos movimentos africanos de libertação. Um passo em falso poderia criar «embaraços ao governo de Pequim», embora o problema do Ultramar português nunca tivesse sido aflorado directamente com nenhum dos seus entrevistados. Excepto num jantar de gala. Era isso que Freitas tinha a comunicar.
Em certo jantar em honra do convidado português em data não esclarecida, uma senhora «brindou pela extinção do colonialismo». Freitas sentira-se na obrigação de ripostar, pedindo para rectificar o brinde em honra da «paz entre os povos». A proposta foi aceite, mas Freitas interpretou-a com «a impressão de que a China Continental estaria à espera de qualquer atitude por parte de Portugal». 
Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros
Lopes dos Santos apressou-se a transmitir a informação a Lisboa, ao director-geral dos Negócios Políticos e da Administração Interna. Seguiu-se depois a inevitável filigrana diplomática, com a missiva transmitida de gabinete para gabinete no ministério então tutelado por António Peixoto Correia. Chegou ao Gabinete de Negócios Políticos (GNP), que Pedro Feytor Pinto considerou, em Na Sombra do Poder, uma espécie de Ministério de Negócios Estrangeiros específico, dada a sua dependência directa do ministro. E aí o processo não evoluiu como José de Freitas sonhara.

O PUXÃO DE ORELHAS
Em carta longa, de sete páginas, Pereira Monteiro, funcionário do GNP, retirou qualquer utilidade a um esforço diplomático que pudesse aproximar o governo português da posição que a França já tomara, reconhecendo o governo chinês. «Mais ou menos veladamente», escreve a certo ponto, «a China já nos tem feito saber que apreciaria uma modificação da nossa atitude oficial para com ela. Houve uma diligência junto do Governo de Macau no sentido de uma aproximação por altura da viagem de Chu-En-Lai à África, e neste continente o líder chinês não enveredou pelo caminho dos ataques, pelo menos públicos, a Portugal, muito embora não tenha perdido a oportunidade de condenar o colonialismo.»
O governo português aceitava então a retórica da colonização, mas não do colonialismo, insistindo que, em África e na Ásia, praticava processos de integração nacional, «de carácter aculturador, conseguindo criar uma superestrutura comum de valores de patriotismo que assegura a unidade da nação». Passava-se assim à crítica impiedosa de José de Freitas que, «embora não represente o ponto de vista oficial português (…) também não foi recebido na China na qualidade de uma pessoa qualquer».
Se à frente do jornalista brindaram ao fim do colonialismo, pois que Freitas brindasse também, explicando «de seguida os motivos por que o fazia, já que a posição portuguesa não pode ser nunca imperialista, como é de fácil demonstração (…) Deveria igualmente ter explicado a fase em que se encontra a nossa política de integração e realçar (…) [que] o mesmo estatuto de direito político [se aplica] a todos os portugueses, em toda a parte do território nacional em que se encontrem».
Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros
 Terminando como um mestre-escola no final de um puxão de orelhas a um aluno demasiadamente impetuoso, Pereira Monteiro rematava: «Depois, que brindasse pela paz entre os povos porque é a paz que nós queremos como todos os demais, já que não se vê onde a extinção do colonialismo merecesse ser substituída pela frase que empregou.»
Por outras palavras, nada se faria sobre o recado informal que José de Freitas trouxera da China – apenas um puxão de orelhas ao repórter. Que certamente aprendeu que, em diplomacia como nas salas de aulas, às vezes, é melhor ficar calado do que intervir.

O Programa Literatura Aqui, da RTP2, de 20 de Outubro de 2015, dedicou atenção a esta viagem de José de Freitas, incluindo um depoimento meu. Ligação disponível aqui.

quarta-feira, julho 15, 2015

Uma pequena relíquia

Diário Popular, 30 de Junho de 1951
(A partir de microfilme da Biblioteca Nacional)
Uma pequena relíquia da história dos jornais. 
Uma crónica de Baptista-Bastos (então ainda sem o hífen), publicada no Diário Popular, com ilustrações do igualmente enorme José de Lemos. Data de 1951, mas o futuro repórter assinou ali contos desde pelo menos o ano anterior.
BB teria 17 anos e assinava então textos nas rubricas "Um Conto por Dia" e "Página Infantil". Depois disso, trabalharia em O Século, antes de regressar ao Popular em 1964.

sábado, julho 04, 2015

Falando de castelos

Publicamos este mês uma edição especial sobre os Castelos e Muralhas do Mondego, rede que une municípios na zona centro que tutelam património directamente associado à formação da nacionalidade. Entre os vários monumentos da Rede, fiquei perdido por este castelinho em Penela. Lindíssimo. Bem conservado. Com uma história rica e atribulada. A Anyforms Design de Comunicação ilustrou. O Antonio Luis Campos fotografou. O Paulo Rolão escreveu. A professora Luísa Trindade, da Universidade de Coimbra, esclareceu todas as dúvidas e forneceu informação preciosa. Esta e outras surpresas estão nas bancas este mês.