sexta-feira, janeiro 29, 2016

Escreva a sua própria crónica de Vasco Pulido Valente sem recorrer a Vasco Pulido Valente


Talvez o Público não desconfie, mas está a pagar a mesma crónica de Vasco Pulido Valente (VPV) há mais de uma década. Que, por sua vez, é a mesma crónica que o autor escrevia para o Diário de Notícias. E que, por incrível coincidência, foi em tempos publicada em O Independente pelo mesmo autor.
Para poupar despesas à SONAE, apresento-me como voluntário para que o jornal possa construir a sua crónica de VPV sem necessitar de VPV, o que, convenhamos, dá muito menos maçada.
Passo 1 — escolhe-se um tópico, sempre genérico, para não implicar pesquisa. Como qualquer estudante lhe poderá afiançar, a pesquisa é enfadonha e indigna e a recolha de dados é tarefa para gente menor. Se o diabo está nos detalhes, VPV foge-lhe – ao diabo e aos detalhes – com o virtuosismo de um doutorado em Oxford
Passo 2 – estabelece-se à partida o momento em que o tópico (o Estado social, o socialismo, as obras públicas, o PCP — riscar o que interessa) descambou. Por incrível coincidência, qualquer tópico descamba sempre no século XIX, circunstância feliz pois poupa muita reflexão. Não deixa de ser curioso que, embora todo o mundo para lá de VPV seja obviamente dogmático, VPV retribua com a publicação sistemática do mesmo dogma.
Passo 3 — define-se um protagonista (Olof Palme, Mário Soares, Duarte Pacheco, Álvaro Cunhal — riscar o que não interessa) ao qual se aponta o dedo pela sua “ingénua ignorância” (hipótese a) ou pela “ignorância ingénua” (hipótese b) na gestão do dito tópico. É importante não cair no erro de apresentar factos. Todas estas alegações são feitas com a despreocupação de quem não tem dúvidas. Um doutorado em Oxford nunca tem dúvidas.
Passo 4 — tudo, repito, tudo está relacionado com os investimentos em obras públicas de Fontes Pereira de Melo, feitos com dinheiro emprestado, que nos valeram “três décadas de pastoreio despreocupado” até “obviamente nos apresentarem a conta”. O verbo pastorear deve ser utilizado pelo menos uma vez por crónica. Se possível, associado a criatura  e desmiolados. No pensamento de VPV, ora são as criaturas que pastoreiam os desmiolados, ora são os desmiolados que pastoreiam as criaturas.
Passo 5 — o indigenato. VPV fez mais pela causa indígena do que a FUNAI no Brasil. Todos os problemas portugueses justificam-se pelas características do indígena nacional, ocioso, ingénuo e dado a esquentamentos revolucionários. Escusado será dizer que o indígena não frequentou Oxford.
Passo 6 — o parágrafo final deve sublinhar, como os adventistas do sétimo dia, que o fim está próximo. Se possível, com a arrogância de quem sempre o soube. São muito úteis muletas como “como não poderia deixar de ser”, “qualquer pessoa que não tenha estudado nas escolas indígenas adivinha” ou “a tonta cabeça do Dr. (inserir nome) não lhe permite ver que isto vai acabar mal”.
E é isto! Experimente em casa com amigos e em breve publicará também as suas crónicas de Vasco Pulido Valente num divertido jogo interactivo. 
Se tiver mesmo sorte, o engenheiro Belmiro paga-lhe uma avença.

quinta-feira, janeiro 28, 2016

O fim do programa de incentivo à edição de obras de comunicação social

Saltitando de porta em porta, tudo indica que o programa de incentivos do Estado à edição de obras sobre comunicação social desapareceu na voragem do decreto-lei 24/2015, que extinguiu o Gabinete para os Meios de Comunicação Social e dividiu as competências deste por outros organismos, como as CCDR ou a Direcção-Geral de Política para os Media da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros. De acordo com o que me transmitiram nesta instituição, o novo diploma (23/2015) é omisso sobre a continuidade do programa, focando-se apenas no apoio directo a órgãos de comunicação de social, pelo que provavelmente terminou essa experiência de mais de uma década de apoios à publicação de dissertações e outros estudos. É pena!


Declaração de interesses: em 2005 e 2015, tive dois projectos ali aprovados.

segunda-feira, janeiro 11, 2016

Almada, os Painéis, A Geometria e Tudo



Com alguma discrição, a Assírio & Alvim editou, no último quadrimestre de 2015, Almada, os Painéis, a Geometria e Tudo, obra organizada pelo jornalista António Valdemar, baseado nas entrevistas que conduziu com o pintor modernista no início da década de 1960 e em profunda recolha documental sobre aquilo que José de Bragança, némesis de Almada, chamou no Diário Popular o «Problema dos Painéis».
O livro revela um Almada humanizado, procurando, na última década de vida, assegurar o seu lugar na história da arte – com os seus defeitos e vícios, obsessões e irritações, mas sobretudo sempre fiel ao programa artístico que apresentara aos portugueses em 1915 e que lhe valeu uma vida de pobreza, quando não escárnio, ao contrário de vários dos seus contemporâneos, menos ciosos da identidade artística e mais aferrados à cultura de massa. Como no poema de Frost, Almada escolheu, de dois caminhos, o mais duro e árduo e isso fez toda a diferença. Mas teve também um preço.
No prefácio, José Manuel dos Santos diz, com muito acerto, que «este é um livro que desfaz a nossa falta dele», formulação brilhante para explicar uma obra que recupera quarenta anos de dedicação de Almada Negreiros aos painéis do Museu Nacional da Arte Antiga e aos primórdios de uma escola portuguesa de pintura. Através de Valdemar, confidente e discípulo, Almada fala dos «Painéis das Janelas Verdes como se os tivesse visto pintar.»  Talvez até mais: «Como se ele, muito antes dele, os tivesse pintado.»
Aqui figuram, para memória histórica, as premissas do pensamento de Almada Negreiros. Entendendo os painéis como expressão máxima de uma escola primitiva de pintura portuguesa que nada deveria ao Gama navegador e ao Camões lírico, Almada recusa qualquer outro documento de suporte. Os painéis são o único documento que lhe interessa, início e meta da investigação. Das relações geométricas entre tábuas, extrai conclusões controversas, mas nem por isso dispiciendas: é ele que encontra a ordem certa do políptico como hoje o conhecemos, organizando os painéis em função dos ladrilhos do chão; é ele também que sugere que os seis painéis fazem parte de um conjunto mais amplo de 15 tábuas, duas das quais perdidas e as restantes dispersas, que deveriam figurar na Capela do Fundador no Mosteiro da Batalha, destino histórico da obra.
Valdemar não esquece que, por estas ousadias, Almada foi duramente vergastado pela crítica. Por imperativo ético, figuram também no livro as controvérsias com José de Bragança, cujo zénite redundou numa cena de pancadaria à porta da Brasileira. As crónicas zombeteiras de Leitão de Barros, o Barros da moral sinuosa e consciência artística volátil. As críticas mordazes de António Soares, talvez as mais dolorosas e pessoais. A célebre votação na Junta de Educação Nacional, que validou em 1940 a proposta de organização da obra-prima de acordo com a premissa de Almada (mas com voto contra de João Couto), depois de 14 anos de lutas e conflitos insanáveis. As caricaturas de Valença sobre a polémica intelectual. E até o suicídio trágico de Henrique Loureiro, «ludibriado por um documento falso, introduzido num códice da Biblioteca Nacional».
O miolo do livro é constituído pelas oito entrevistas que Almada concedeu a António Valdemar e ao Diário de Notícias na Primavera/Verão de 1960 – esforço singular de divulgação do «trabalho de uma vida», só publicado por inegável cumplicidade entre entrevistador e entrevistado e benevolência da direcção do jornal (Augusto de Castro) e da coordenadora do suplemento de Arte & Letras (Natércia Freire). Um nono trabalho, datado de 1963 e até aqui inédito, empresta valor acrescentado ao esforço compilativo.
Por vezes, em esforços semelhantes, o biógrafo não evita o endeusamento do biografado. Não é o caso aqui. Valdemar não esconde os deslizes de Almada, nem ignora o supremo acto de derrota de 1966, quando Almada, o iconoclasta, Almada, o anti-Cristo, Almada, o indefínivel, se ajoelhou perante a Academia Nacional das Belas-Artes e aceitou o título de sócio honorário por aclamação e unanimidade. Como Pessoa zombou um dia de Marinetti, o escritor italiano que zurzia na elite institucional até aceitar a «ribalta da Cave Velha», também Almada se vergou ao tilintar do metal da comenda. 
       Por cansaço, talvez. Mas vergou.

Valdemar, António. Almada, os Painéis, a Geometria e Tudo. Lisboa, Assírio & Alvim: 2015. 222pp.
Almada em caricatura de Gomes Ferreira, Sempre Fixe, 17 de Dezembro de 1958
(a partir de microfilme da Biblioteca Nacional) 
Um resquício da controvérsia em 1931: caricatura de José de Figueiredo, primeiro director do MNAA, por  Francisco Valença, Sempre Fixe, 1931
(a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)