segunda-feira, agosto 24, 2015

104 anos, oito décadas de carreira


A Manuela de Azevedo vai lançar novo livro na próxima segunda-feira, 31, dia em que também completa 104 anos de idade. São oito décadas de carreira da primeira jornalista portuguesa com carteira profissional. Seria bonito se a rapaziada conseguisse aparecer na Casa da Imprensa ao fim da tarde para assistir ao lançamento.

domingo, agosto 09, 2015

O jornalismo na ficção portuguesa (a minha lista)


Há meses, compilei (aqui) empiricamente as melhores memórias de jornalistas publicadas em Portugal. Era, e é, uma lista sempre em actualização, quer em função de obras que vou conhecendo tardiamente, quer em função dos novos volumes que se vão publicando. Na semana passada, em conversa por e-mail com um jornalista e escritor que muito respeito, surgiu a ideia de repetir o exercício para a ficção portuguesa dedicada aos jornais e aos repórteres, sem prejuízo de uma antologia mais consolidada e rigorosa.
Não foi tarefa fácil, nem será unânime. Comecei por excluir os livros que, embora coloquem jornalistas no papel de personagens, pouco têm que ver com jornalismo, misturando criptologia com prática detectivesca de segundo escalão ou secundarizando o papel do repórter no enredo. Na verdade, listo aqui apenas as obras que se deram ao trabalho de pintar as redacções com as cores de cada época, retratando mundo reais e tensões verosímeis. Fiquei, claro, com uma lista curta, mesmo não tendo feito a destrinça entre contos, romances e peças de teatro… Pior: o ranking corresponde praticamente a obras publicadas antes de 1974, como que validando o jornalista embriagado de Lavagante (2008), que José Cardoso Pires coloca a beber ao balcão do bar A Lanterna, enquanto lamenta: «Viciámo-nos. Agora temos a Censura a escrever por nós. E amanhã? Quem sabe escrever amanhã quando a censura acabar?»
       Esta será portanto a minha lista. Completem-na se vos parecer que cometi injustiças.

1) Os Insubmissos, Urbano Tavares Rodrigues (1961)
Livro notável e íntimo de Urbano que ficciona o fracasso do jornal Diário Ilustrado, projecto editorial nascido em pleno Estado Novo e liderado pelo seu irmão, Miguel Urbano. Na obra, o jornal chama-se Acção Cultural, e Miguel Urbano é Ernesto, o chefe de redacção. Consumido por constantes tensões entre a redacção e a administração, o jornal fracassa quando um dos redactores é acusado de um crime menor. Ernesto demite-se, a redacção sai em bloco (os insubmissos), com algumas traições pelo meio. Nunca mais me esqueci do diálogo entre Ernesto e o administrador, o Dr. Fernandes, cujo rosto se «jesuitizava» nas discussões. Ernesto explica ao proprietário do Acção Cultural que foram eles, os jornalistas, os tipógrafos, que fizeram o jornal. Friamente, o administrador contrapõe: «Com o nosso dinheiro, senhor doutor. Não se esqueça por favor desse pormenor, que tem a sua importância.»

2) O Código de Hamurabi, Artur Portela (1962)
Descobri-o há pouco tempo e fiquei encantado. É um livro íntimo e incrivelmente provocatório escrito por Artur Portela aos 25 anos. Descreve a experiência do jornalista no Diário de Lisboa, desde a sua entrada, poucos meses antes da morte do pai (Artur Portela, ícone do vespertino de Joaquim Manso), até à sua demissão na década de 1960. Os nomes são ficcionais e tornou-se um exercício obsessivo atribuir identidades aos Sales, Tancredos, Maias, Cunhas, Rochas que vão emergindo. Julgo que descobri mais de metade, mas o Artur Portela não teve a bondade de me confirmar se acertei. Numa carta aberta ao autor, José-Augusto França confirmava em 1962 que o livro era uma pedrada no charco e, se gerara azedume no jornal da Rua Luz Soriano, isso devia-se ao acerto das caricaturas. A vida jornalística de Artur Portela quase terminou com a publicação deste livro e o próprio autor teve noção disso, quando registou: «Estou liquidado, nos jornais estou liquidado, sou um maldito, lepra, pelo menos por enquanto, meses, à portuguesa, humildemente, enquanto se lembrarem, antes que isto acabe em abraços porque há uma maçonaria sem regulamentos, é claro, e eu estou cuspido, ando a monte.»

3) O Homem dos Mil Segredos, Rocha Júnior (1935)

Este conto de Rocha Júnior é uma das primeiras obras de ficção que satiriza os jornais e as redacções. Não há em O Homem dos Mil Segredos nobreza nem repórteres à moda de Albert Londres. Há uma constelação de figurões que compõem um vaudeville sarcástico que causou aborrecimentos a Rocha Júnior, pois alguns camaradas reviram-se na caricatura. A personagem principal é Mateus Bernardes, o repórter da Arcada, que conseguia que os colegas lhe redigissem as notícias para O Globo porque estava impossibilitado de escrever. 
 – Tem paciência. Estou com isto – dizia, condoído. 
E apontava para o punho direito, «sempre fechado como um ouriço, por vezes embrulhado no lenço». 
Entrando na confidência de Mateus, o autor (Baltazar) acompanha-o na narrativa. Escuta as teses inverosímeis sobre os grandes líderes mundiais invariavelmente com «longo cabelo corredio», pois «a carapinha, fique você sabendo, é um estigma de estupidez e de baixeza». Investiga as superstições boçais como a que defende que a mera presença do Palma, um colega jornalista, é prenúncio da desgraça. E vai pintando de Mateus um quadro de analfabetismo galopante e esquemas de sobrevivência apesar do sucesso na carreira. 
Mateus, por fim, muda de vida. Adere ao Partido Redencionista. É nomeado governador civil. Continua aterrorizado com a perspectiva de, ao escrever um ofício, colocar uma cedilha inoportuna, mas mantém a esperteza de sempre. Namora a filha do maior industrial de conservas do Algarve. Funda o jornal, O Anzol, ao qual paga para o atacarem: «Tu hás-de convir que este sistema do elogio na imprensa já não dá nada», explica ao amigo. Por isso, O Anzol ataca-o furiosamente, deixando cair aqui e acolá pormenores sobre a suposta fortuna do atacado. 
No final, a fraqueza de princípios de Mateus fica bem explícita na sordidez com que encara a nobreza do sacrifício da esposa e dos colegas. Como Rocha Júnior conclui: «A vida não é um romance.»

4) O Secreto Adeus, Baptista-Bastos (1963)
Fiquei espantado quando constatei que três dos quatro primeiros volumes desta lista foram publicados entre 1961 e 1963, período de aventuras jornalísticas, redimensionamento da infalibilidade do império português e de inevitáveis repressões sobre as redacções. Os três constituem actos de coragem, mas este será o volume que arriscou mais, até porque, à época, BB encontrava-se em situação laboral precária em O Século. O protagonista é um jornalista rebelde, por quem a filha do administrador se deixa tentar, surpreendida pelo desprendimento com que este lida com a Censura e os constrangimentos ao seu trabalho. Ao longo do romance, o repórter vai perdendo a ilusão, vendendo-se aos poucos à lógica institucional, deixando-se formatar pela máquina. Não é uma história feliz, mas é uma história real, «sem sentimentalismo, sectarismo ou doutrinarismo», como escreveu Rodrigues Miguéis numa recensão. Um ano depois da publicação, Baptista-Bastos entrou para o Diário Popular.

5) A Homenagem, Altino do Tojal (1974)
Já descrevi este comovente volume de contos numa ocasião anterior (aqui), salientando que a coragem do autor lhe valeu o despedimento do Jornal de Notícias. O conto A Homenagem é um exercício sarcástico e impiedoso dos vícios de uma publicação autoconvencida da sua reputação, apreciada por um narrador que, a espaços, teme pelo destino do redactor de Estrangeiro, o próprio Altino. «É corrente dizer-se que o jornalista mata o escritor; mas receio bem que, neste caso, o escritor dê cabo do jornalista», refere premonitoriamente. Ao contrário do chefe de redacção, que chora copiosamente em honra de Sua Excelência, o Director, «o repórter de Estrangeiro não chora». Ou melhor: «Esse morcão só as derrama para dentro. A Natureza não o equipou devidamente para triunfar neste planeta.»

6) Fotomontagem, Artur Portela (1978)
Fotomontagem é a saga de Artur Portela e José Sasportes (o João e o Souzela, responsáveis pelo novo diário Hoje) ao leme do Jornal Novo, projecto jornalístico que emergiu um ano depois da Revolução de Abril e foi congelado logo após o 25 de Novembro. É uma obra de ficção sobre uma derrota real – durante menos de um ano, o projecto nocturno Jornal Novo tornou-se o diário mais vendido em Lisboa, acumulando cachas sobre o processo revolucionário (foi aqui que se publicou em primeira mão o «Documento dos Nove»; foi aqui que Luís Vasconcelos publicou algumas das fotografias mais icónicas de 1975), mas o triunfo profissional rapidamente foi superado pelas manobras da empresa proprietária, que alinhara temporariamente os seus interesses com os de João e Souzela. Ou, se preferirem de outra maneira, o tempo de Artur Portela e José Sasportes esgotou-se em busca de uma terceira via socialista para a revolução que nunca chegou a emergir.
Há dezenas de episódios memoráveis e bem-humorados no livro. A reunião dos dois jornalistas com o séquito de Mário Soares é deliciosa («homem, já lhe disse, é um café e um chá!»); a recepção do senador americano a um grupo de jornalistas portugueses mais confusos do que o visitante é reveladora, sobretudo graças ao impagável “Nuno Reis”, que transforma a sessão num quadro patético de subserviência, para alegria de “Manuel de Sousa Rebelo”, que ri a bandeiras despregadas. O título Fotomontagem homenageia o recurso mais usado na primeira página do Jornal Novo – a sobreposição de fotografias de políticos em imagens de cartoons. Afinal, foi por causa de uma fotomontagem de Mário Soares na primeira página que "Mário Mesquitela" pediu a demissão do Hoje.

7) Os Implicados, Sarah Adamopoulos (1998)
Este volume da jornalista Sarah Adamopoulos completa aquilo a que chamaria a trilogia das biografias não autorizadas de jornais do século XX, a par do livro de Artur Portela sobre o Diário de Lisboa em 1962 e dos contos de Altino do Tojal sobre o Jornal de Notícias em 1974. Esta ficção sobre uma década de trabalho em O Independente é dura, mas realista; divertida, mas incrivelmente comovente; agressiva, mas engajada. É a história de um jornal com «jornalistas-betos, católicos, vagamente nobres, conservadores-liberais, todos jovens promissores que nunca foram para Paris exilar as ideias e que percebem afinal muito pouco de um Antigo Regime que os fascina sobremaneira». É a história de um encantamento profissional que se desvanece. É um livro de uma grande escritora (recensão aqui).


8) O Cavalo a Tinta-da-China, Baptista-Bastos (1995)

Publicada já em democracia, a obra descreve o artifício de Francisco José, revisor de A Voz, diário monárquico e católico, para superar os constrangimentos de censura e entregar-se à produção de um manuscrito críptico sobre Salazar e a solidão do poder, «um político que historicamente se transforma em manuscrito». A tarefa é transferida para os ombros do filho, Manuel, que se debate com receios sobre a sua real capacidade literária e sobre a repressão que inevitavelmente cairá sobre si. A acção oscila entre a Lisboa do pai e a do filho, temperada por figuras literárias e jornalísticas que marcaram a cidade. É muito provável que as palavras que Baptista-Bastos coloca na boca de Reinaldo Ferreira, o repórter X, constituam a sua verdadeira declaração de interesses literários: «Não escrevo para leitores-rãs, os que atravessam um livro sem engolir uma gota de água.»


9) Os Memoráveis, Lídia Jorge (2014)

Se algum estudante de literatura em 2050 quiser recuperar o estado de espírito em 2014 da geração que protagonizou, para o melhor e para o pior, a Revolução de 1974, provavelmente não encontrará um romance tão adequado como Os Memoráveis. É um volume correspondente aos Vencidos da Vida do século XIX – na política, nas aspirações e no jornalismo. Lídia Jorge dispôs a acção entre 2004 e 2010,  recriando os passos de uma equipa portuguesa de jornalistas televisivos, em serviço para a CBS, com a missão de produzir um documentário sobre a revolução de 1974 e «encontrar entre as pedras da calçada miudinha os restos dos cravos, a única metralha de que se socorreu o seu povo para derrubar os velhos tipos e também para se entenderem entre si». Estas palavras foram colocadas na boca do antigo embaixador americano em Lisboa, que "sugere" o documentário a Ana Maria Machado. As aspirações de documentar jornalisticamente o golpe nobre e romântico, sem emoção nem subjectividade como a CBS ensina, são rapidamente desmembradas no contacto com os protagonistas, vencidos pela realidade, pela traição e pelo facto de se terem apaixonado por 1974 e recusarem o regresso à banalidade da rotina.  Pelo meio, a escritora dá voz a um personagem secundário comovente, António Machado, jornalista com dezenas de anos de carreira, uma voz venerada nos anos quentes e entretanto devorada pelo seu jornal de sempre. É impossível não sentir empatia com António Machado, que já não conhece o seu jornal, que se irrita com o jovem director que o trata por você, com os estagiários que não sabem quem foram Hitler e Roosevelt, com a sua mesa e computadores ocupados sem respeito. Por isso, um dia arruma a pasta e nunca mais volta. Devorado. Vencido – como os românticos da sua geração.

10) A Noite, José Saramago (1976)

A melhor das duas peças de teatro desta lista é uma obra injustamente negligenciada na bibliografia de José Saramago. Toda a acção decorre na noite de 24 para 25 de Abril de 1974 num jornal não discriminado de Lisboa. O chefe de redacção, Abílio Valadares, há muito que se rendeu aos constrangimentos do cargo, à censura, à repressão, ao escrutínio da administração e à adulação do director, Máximo Redondo. Os seus contrapontos são Manuel Torres, repórter de província, Cláudia, uma estagiária, e Jerónimo, o linotipista. Dois modelos de jornalismo são discutidos na mesma redacção na noite em que tudo se modifica no país, enquanto o jornal se mantém imperturbável. Ao tomar conhecimento da revolução, Valadares paralisa. Recusa publicar uma linha sobre ela. Talvez imagine que, se não lhe ligar, a revolução esmorecerá. Afinal, como diz no primeiro acto, tudo se resume a uma máxima: «O senhor director nunca atrasa o jornal, o senhor director é o jornal!» Saramago tem o mérito de incluir, no diálogo secular entre jornalistas e administradores, um terceiro grupo de personagens, os tipógrafos, aos quais concede um carácter decisivo na relação social do interior da redacção.

11) O Despojo dos Insensatos, Mário Ventura Henriques (1968)

Como boa parte da obra de ficção de Mário Ventura Henriques, este volume de 1968 é um tratado de cepticismo e de descrença, sublinhando a convicção do autor, após a sua prisão na década de 1960, de que pouco ou nada mudaria na política portuguesa se dependesse da consciencialização da população. Ventura imagina uma vila algarvia, a Açoreira, radicalmente transformada com a chegada em massa de turistas  estrangeiros. Tudo na vila gira agora em torno dos três meses de Verão, da necessidade de não hostilizar o forasteiro e de filtrar a "triste" imagem dos pobres da vila. José Álvaro, repórter de um grande diário lisboeta (com currículo semelhante ao do próprio autor), encontra-se na Açoreira em gozo de férias, martirizado pelos textos que não escreve, pelas notícias que não regista, pela ideologia que  não combate. Quando um grupo de pescadores inicia uma greve, o repórter acentua a sua divisão íntima entre o «alheamento voluntário (…) que empurra para a desumanização» e a adesão ao protesto. Acaba por encontrar uma terceira via, agredindo as forças policiais e sofrendo pena de prisão – não pactua assim com a omissão nacional do protesto, mas também não se vincula à sua lógica.

12) Ave do Paraízo, Carlos Selvagem (1929)
    Cheguei a esta obra cataclísmica por acidente. Ou melhor dizendo, cheguei ao sismo provocado pelo livro após tropeçar na réplica publicada pelo crítico e jornalista do Diário de Lisboa, Norberto de Araújo, que por sua vez desencadeou uma tréplica do autor, semanas mais tarde.
Militar (a alcunha Selvagem provém precisamente do Colégio Militar onde se formou) céptico, após a participação na frente africana da Primeira Grande Guerra, Carlos Afonso dos Santos foi um dos mais veementes críticos da aventura portuguesa no confronto, denunciando as fortunas e carreiras feitas com a guerra. Acolheu o 28 de Maio de 1926 com expectativa, tal como o amigo Henrique Galvão. Batalhou inclusivamente pela pureza de princípios da ditadura e, na sua trincheira jornalística, exigiu em 1927 uma punição exemplar para os envolvidos nas edições clandestinas de jornais no início de Fevereiro desse ano. 
Ave do Paraízo é a denúncia da devassa moral da sociedade lisboeta da década de 1920. Acompanhando Marcela, uma cocotte que seduz sucessivos amantes até estes deixarem de lhe ser úteis, traça um retrato impertinente e impiedoso dos jornais e jornalistas, dos banqueiros e industriais, dos deputados e chefes de governos. Todos se vendem e todos se rendem. A nação paga. 
Num assomo moral deslocado, Norberto de Araújo tomou as dores colectivas «após ler o livro com repugnância» recusando qualquer contacto com a realidade: «É mentira que na sociedade portuguesa os políticos sejam assim e sejam assim os oficiais aviadores e sejam assim as mulheres e seja assim o ambiente social». Não é totalmente verdadeiro, muito menos que «não há, nem nunca houve na vida política ou literária de Portugal um jornalista como o tal Higino Alves». 
No contra-golpe, repleto de ironia e agradecendo a Araújo por esfolar «assim viva a minha pobre Ave do Paraízo», Carlos Selvagem retorquiu: «Nem dava conta das aleivosias que ia lançando sobre a imaculada reputação das requintadas elites que, por honra de todos nós, têm guiado os destinos desta gloriosa grei – grei em cujo seio jamais a ressaca de fantasiosas revoltas de caserna e alfurja arrojou à lama das valetas carcaças de ministros e chefes de Estado, onde jamais homens públicos jogaram no tabuleiro de apetites pessoais a moeda-falsa das convicções, onde jamais lídimos heróis (v.g. Mouzinho, Cândido Reis, outros mais próximos) sucumbiram envenenados pelo ambiente social, onde jamais cupidos financeiros mancharam as mãos em torpes negociatas, onde se imprimiram jamais papéis para camuflar traficâncias, onde jamais senhores e senhoras de boa cepa fizeram da sua vida e desse alcance fulcro de gravitação social». 
Fica a dúvida, no final, se Norberto de Araújo tanto se indignou pelo indecente retrato moral «da sociedade portuguesa através daqueles símbolos» irreais ou, se pelo contrário, reconheceu bem de mais as caricaturas de camaradas de profissão e até administradores do seu jornal...

13) Grandes Reportagens de Outros Tempos, Amador Patrício (pseudónimo de Caetano Beirão) (1938)

Obra já recenseada aqui, constitui uma proposta diferente das restantes. A acção não é propriamente ficcionada. É o narrador, jornalista transportado de época em época, que é imaginado. Recorrendo à caixa de ferramentas do repórter do quotidiano, Amador Patrício (ou melhor, Caetano Beirão) apresenta diversos episódios da história de Portugal com humor e drama. Recusa prudentemente entrar nos episódios do século XX, demasiado frescos e controversos, e expõe o inevitável odor da época  – triunfalista e épico – nas vésperas da grande Exposição do Mundo Português. Precede em cinquenta anos as tentativas posteriores que Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada farão de tornar digerível a história antiga para um público juvenil e tem o enorme mérito de recriar o repórter nos solavancos do seu quotidiano. 

14) Torel-Norte, 5853, Artur Inês (1935)
    É seguramente o livro mais frágil da lista. Já o recenseei aqui. Escrito por Artur Inês, um antigo tipógrafo que fez a transição, como Norberto de Araújo ou Luís Derouet, da oficina para a redacção, é um livro apressado que faz o culto do repórter-polícia à maneira de Albert Londres. Envolve espiões ingleses ao serviço dos alemães, uma princesa que não chega a ser princesa, a mulher promíscua de um embaixador, um capitão-aviador e muitos jornalistas. Como seria expectável, o jornalista Rui Galvão salva o dia, recuperando para a nação os documentos da invenção do capitão-aviador que permitirão resgatar do fundo do oceano os submarinos afundados por desastre, apenas com o toque de um botão. A descrição do invento, que será fulcral para os crimes e para a história, é uma boa metáfora do empenho que Artur Inês empregou na sua obra: «Basta premir um botão eléctrico ligado a um dispositivo simples, mas de complicada concepção, para que um submarino afundado volte à superfície.» Pena é que não baste premir um botão para fazer um romancista.

15) Rotativa, Artur Portela Filho, 1962
      

–    Isto não é um café de literatos – desabafou o chefe da redacção. É um jornal! (…) O que há de novo?
–    Foi no Rato, o autocarro voltou-se.
–    No Rato, um autocarro. Há mortos?
–    Ia toda a gente a correr, como louca – balbucia o estagiário. E eu apanhei, consegui apanhar o boné!
–    E mortos, há?
–    Foi o boné que eu consegui ver. Estava no passeio, no chão, cuspido.
–    Sim, sim, um belo padrão, xadrez, escocês, um belo boné. Mas há mortos?
–    Parece que sim.
–    Parece? Parece que sim…
–    O boné impôs-se-me, invadiu-me (…)
–    E o acontecimento? – pergunta, desesperado, o chefe da redacção.
–    O boné é uma síntese – diz o tonto.

       Esta peça de teatro foi escrita em 1962 (integrada no volume colectivo Teatro 62) e trazida a cena uma única vez, em 1986, no II Congresso dos Jornalistas, com encenação de José Martins.
       A peça é Portela no seu melhor. Um caos de ideias, uma avalancha de erudição, a eterna zombaria das figuras de poder. O chefe da redacção consome-se com a ideia de perder uma notícia importante enquanto pede a tesoura para cortar e copiar o que a concorrência já publicou. Os redactores entretêm-se em jogos literários e só não fazem o trabalho de rotina. Os tipógrafos são a voz da razão, na loucura diária de uma redacção.
       Portela escreveu a obra num momento difícil da carreira. Acabara de bater com a porta no Diário de Lisboa, em protesto snob contra as más condições de trabalho. Arrastara Sasportes, Urbano e Vasco Pulido Valente numa bravata de que se arrependeu mal saiu da porta do jornal. Cuidou – disse-mo mais tarde – que encontraria de imediato abrigo três portas mais abaixo, no Diário Popular. Não foi assim. Penou durante a década que se seguiu, forçado a dar aulas de ensino secundário e agarrado ao barco do jornalismo pela bóia ténue de salvação que António Paulouro lhe estendeu no Jornal do Fundão.
       Também por isso vale a pena ler Rotativa.

Haverá seguramente mais obras. Tenho na calha a leitura da novela Dois Jornalistas, de Teixeira de Pascoaes, mas estas são, para já, as minhas escolhas [em actualização].