quarta-feira, junho 02, 2021

O historiador que era jornalista às escondidas

 


        Era, afinal, um segredo de polichinelo.    
       Em 1938, a Empresa Nacional de Publicidade, proprietária do Diário de Notícias, editou um livro muito curioso, único no seu género. Grandes Reportagens de Outros Tempos é um exercício de história e de jornalismo. Regressa aos momentos épicos da história de Portugal como se um repórter tivesse estado presente na época, usando a linguagem colorida dos homens dos jornais. São reportagens fora de tempo, com títulos provocatórios e descrições adjectivadas, embora recorrendo às fontes documentais de cada época. Reconhecem-se nelas as marcas de ourives do repórter, os tiques, os códigos profissionais. 
        As figuras históricas ou os observadores acidentais são entrevistados como no noticiário de crime dos periódicos. O marinheiro Artur Rodrigues, por exemplo, membro da expedição de Vasco da Gama, conta ao repórter, com as pupilas rebrilhando «de comoção», como foi a recepção real, empertigando-se «um tanto comicamente». 
        Em contrapartida, em 1667, o duque de Cadaval recusa-se polidamente a fornecer ao repórter um apontamento do pedido da princesa ao cabido da Sé de Lisboa para anular o casamento com Dom Afonso VI. «Sua Excelência negou-se, em termos corteses mas terminantes, a fornecer-me elementos sobre a petição ou mesmo sobre o andamento do processo». E, num exemplo precoce do uso da confidencialidade, «pessoa cujo nome devo ocultar passou-me para as mãos o papel, que me garantiu ser a expressão fiel da carta que Sua Majestade dirigiu ao cabido». 
        O repórter, por vezes, corre perigo. No enforcamento de Gomes Freire, «o Dr. Duarte, colérico, olhou-me com arrogância e convidou-se secamente a sair da torre». Noutras ocasiões, a sua presença é tolerada. Também acontece ser enxotado de uma sala para que os protagonistas possam falar livremente. 
        Por que motivo falo hoje deste livro? Prefaciado pelo historiador Caetano Beirão e ilustrado por Martins Barata (aliás, magníficas estampas que devem estar, se Zeus quiser, no arquivo do Diário de Notícias, a salvo de raposas e galinhas), o livro foi publicado em 1938 com a assinatura de Amador Patrício, um pseudónimo que já fora usado no século XVIII por um comentador da política lisboeta. Alguns autores defendem até que Amador Patrício escondia a pena do Marquês de Pombal (embora a tese mais consensual defenda que se tratava de Francisco José Freire).



        Desde a primeira leitura do livro que me questiono sobre a identidade do autor. No prefácio, Caetano informa que «o meu amigo Amador Patrício» pedira «algumas palavras para apresentação deste seu livro ao público». Conta também que o desafio partira de Eduardo Schwalbach, então director do Diário de Notícias, que encomendara as “reportagens” para publicação regular no jornal, mas que o próprio Caetano sentira que, sendo apenas «um obscuro investigador de coisas históricas» e não um jornalista, não podia aceder. «Lembrei-me então do meu amigo Amador Patrício.» 
        Não havia pistas aqui. Afinal, o próprio Caetano Beirão reconhecia que «numa reportagem de hoje ou de então, não importa conhecer quem a faz (…) Convém saber é se ela foi feita com probidade e interesse». 
        Na verdade, a resposta estava à frente dos meus olhos. No Dicionário de Pseudónimos, Albino Lapa não hesita em identificar Caetano Beirão com Amador Patrício. Cita aliás um texto do Diário de Notícias, de Fevereiro de 1938, altura em que o jornal terminou a publicação das reportagens históricas e anunciou discretamente a autoria. Pelo mesmo diapasão alinhou Adriano da Guerra Andrade no seu Dicionário de Pseudónimos e Iniciais de Escritores Portugueses
        Foi afinal Caetano Beirão quem prefaciou a sua própria obra. Sobrinho do professor Caetano Beirão da Veiga, também administrador da Empresa Nacional de Publicidade e grande impulsionador do novo edifício do jornal na Avenida de Liberdade, Caetano Beirão era chefe da secção de Correspondência do Diário de Notícias e historiador. 
        Talvez Caetano Beirão tenha tido para Amador Patrício a mesma ambição com que terminara a reportagem sobre a fuga do infante Dom Manuel em 1715. «Logo que tenhamos conhecimento do seu paradeiro, daremos dele conta aos nossos leitores que decerto ficarão ansiosos por conhecer a sorte de tão estimado e valoroso príncipe.» 
         Grato ao José do Carmo Francisco pela oferta de um volume que eu já julgava perdido.

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