Bem sei que o tema hoje é incómodo e
politicamente incorrecto, mas a caça da baleia foi, durante décadas, o
ganha-pão das famílias do Pico, arrancado do mar à força de músculo, coragem e
dor. Costuma ser citado um artigo do jornalista Rodrigo Guerra, publicado em
1910 na Ilustração Portuguesa (de
onde aliás provêm estas imagens), mas encontrei recentemente uma belíssima
descrição da baleação no Pico em 1930 na fonte mais improvável – as memórias do
líder sindical Mário Castelhano, exilado entre 1927 e 1931 em Angola, Açores e
Madeira e, após a sua segunda detenção, no Tarrafal, onde morreu. Em Quatro Anos de Deportação, Castelhano
observa o quotidiano das possessões coloniais do império. No Pico, claro, é
espectador atento da baleação.
«Os marinheiros do Pico são conhecidos pelo
seu arrojo. Dedicam-se à pesca da baleia, hoje um pouco abandonada, pelo ínfimo
resultado obtido com o seu óleo.
É interessante apreciar o movimento no cais
na hora da largada para a pesca da baleia.
Sinal convencionado são três foguetes,
lançados logo que ao longe se avistam os enormes cetáceos. Dos vários pontos da
localidade, acorrem marinheiros e, reunidos, decidem os barcos que hão-de sair.
Começa a lufa-lufa. São gritos de chamamento por alguém que já devia ter
chegado e se atrasou no caminho. Afinidades que se vislumbram e que os junta na
hora da alegria e também na do perigo. Portas que se escancaram para que
compridos e esguios barquitos possam escorregar na laje, empurrados por mãos
quase pretas, queimadas pelo sol. Já estão dentro os arpões, as lanças, cordas
e demais utensílios indispensáveis.
Espraiamos a vista, a meio do canal pouco
mais ou menos a uns dez quilómetros de terra, a água de vez em quando agita-se,
elevando-se em grossos e brilhantes borrifos. São os monstros que vêm quase à
superfície e, numa pequena viragem, produzem a efervescência que se enxerga
mesmo a olho.
Andam à procura de alimentação, de boca
enorme aberta, onde as lulas e outros peixes se vão meter inconscientemente… É
a armadilha.
Entram os barcos na água. Um rapazito traz
um ou dois pães para a viagem – sabe-se lá a que horas voltarão – e o gasolina apressa-se para a largada como
guarda-costas das frágeis embarcações.
E os marinheiros, instantes passados,
alegres, de boina enterrada até à nuca, em mangas de camisa, casaco atirado
para um canto, mãos aos remos, já vão longe; a remada é larga e não há tempo a
perder.
De terra assestam óculos. Velhos pescadores
ou mesmo outros habitantes entretêm-se tardes inteiras acompanhando com a vista
os movimentos dos animais e a luta do homem para os conseguir lançar.
É curioso então observar as suas
exclamações: “É o barco de fulano (o nome do arrais) que lhe vai na peugada”,
“Agora é beltrano”, “Já lançou”, etc.
E a perseguição continua. O lançamento do
arpão só é feito muito perto do bicho. Se ficou bem enterrado e o ferimento é
mortal, a baleia, sentindo a profunda e repentina dor, submerge ao mais fundo
possível. De bordo, vão acompanhando essa descida, largando a corda que pega ao
arpão, até que o animal exausto, perdidas as últimas forças, é trazido acima
pelo mar. Está morto. É depois arrastado até ao cais.
Mas, se surgem dificuldades e o lançamento
não se faz com a rapidez desejada, o perigo é grande.
A um golpe da baleia, arremessado pela sua
cauda, pode virar-se a embarcação e os seus tripulantes caírem à água.
Contam-se cenas de tragédia onde alguns
perderam a vida e outros, para se salvarem, lutaram denodamente com as ondas.
No cais, procede-se à autópsia. O
esquartejamento é demorado. Há animais de 11 e outros de 18 metros de
comprimento. A cabeça é que produz maior quantidade de óleo. Pastas enormes de
toucinho envolvem-lhes o corpo. Os dentes são enormes, possuindo os maiores
marfim nas pontas, mas de qualidade inferior aos do elefante. As vísceras são bem
examinadas por causa do âmbar, que é constituído pelas concreções intestinais
dos cachalotes e originadas pela tinta, como é vulgar chamar-se aos moluscos de
que se alimentava.
O derretimento das banhas provoca um cheiro
desagradável. O óleo é metido em barris e exportado para o estrangeiro.
Cais do Pico exporta também gado, laranjas
e manteiga. (…) Se de facto é pequeno nas suas dimensões e no seu movimento, é
grande na generosidade da sua população.»
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