Cioso como era da imagem que a posteridade guardaria dele, Artur Portela provavelmente não gostaria de ler este obituário. Foi um dos gigantes do jornalismo do século XX, mas sempre ligeiramente desfasado do contexto histórico, como um bailarino sem sintonia com o resto da companhia de dança. Começou cedo nos jornais. Frequentou a escola ao fundo da Rua Luz Soriano e o Diário de Lisboa foi o prolongamento natural da escola tradicional. Entrou ali de bibe. Era o Arturzinho, o filho de Artur Portela, cronista jactante das artes e letras desde a fundação do jornal. Esse rótulo aborrecia-o. Para muitos, um apelido famoso seria uma bênção, um abre-latas de oportunidades. Para Artur Portela Filho, implicou durante décadas o ónus da comparação.
Poucos conheceram tão bem o jornal fundado por Joaquim Manso como Artur Portela. Passou por todas as secções. Viu o jornal composto à mão. Conhecia os tipógrafos tão bem como o director. Podia ter sido o sucessor natural de Norberto Lopes que, por sua vez, sucedera em 1956 a Joaquim Manso. Bastar-lhe-ia para isso o exercício da paciência e da subserviência ao doutor Norberto, virtudes (ou defeitos) que Artur Portela cedo demonstrou não ter.
Não era um repórter no sentido operário do termo. Aborrecia-o a reportagem quotidiana e anónima com que se constrói um jornal. Queria os serviços nobres, a crónica literária, a apreciação de espectáculos e de luces. Foi esse o motivo para a espectacular ruptura que Portela, José Sasportes, Urbano Tavares Rodrigues, Veiga Pereira, Renato Boaventura e o jovem imberbe Vasco Pulido Valente promoveram, no final de 1961, no Diário de Lisboa. Os meninos só queriam relatar espectáculos e fazer literatura. O atendimento de telefones, o pequeno incêndio, o roubo de faca e alguidar não lhes servia. Exigiram horas extraordinárias para relatarem a actividade nocturna da Lisboa das Artes – uma exigência inédita num jornal operário onde até Norberto Lopes atendia telefones e falava com os quartéis de bombeiros. Esbarraram no muro da intransigência de Mário Neves. Até final, Portela dedicaria a Neves – em muitos aspectos um correligionário político – as palavras mais duras que lhe ouvi.
Bateram com a porta, um gesto romântico, quixotesco e – contou-me ele em entrevista – errado. Julgavam que, na mesma rua, o administrador do Diário Popular lhes abriria a porta. Não abriu e os dissidentes experimentaram na pele o destino dos imprevidentes: perderam o emprego e ganharam ficha na PIDE por dissidência perigosa.
A carreira jornalística de Artur Portela foi, em muitos aspectos, uma repetição desta história – uma repetição de oportunidades perdidas. Em Fevereiro de 1960, fora enviado pelo jornal a Agadir para cobrir o terrível sismo que devastara a cidade marroquina. Ficou no hotel, prudente, como outros. Só Urbano Carrasco e Artur Agostinho se aventuraram pelos escombros. Trouxeram novidades e partilharam-nas com os restantes correspondentes. Para surpresa de todos, Portela mandou para o Diário de Lisboa um relato presencial, dramático, da tragédia. Foi uma farsa, como tantas outras na pequena história do nosso jornalismo. O logro ficou durante anos restrito no seio da famiglia que estivera em Marrocos. As coisas tratavam-se assim nos anos 1960. Era uma diatribe do Arturzinho.
Nas redacções por onde passou, recolhia admiração e ódio. Bastava uma crónica para se perceber que estava ali um pequeno génio. Dominava a língua e as figuras de estilo como poucos. Fez-se cronista ímpar, talvez o melhor do século – o que não é pouco. Mas zombava dos que não conseguiam escrever como ele. Tinha uma altivez irritante ao primeiro contacto. Manuela de Azevedo, também ela uma flor com espinhos, chamava-lhe o «filho do Artur» só para o irritar. Vera Lagoa apodou-o de «órfãozinho». Nenhuma tinha, claro, a verve literária de Artur Portela. Nem a coragem no Portugal fascista de atacar tudo e todos. Sobre Vera Lagoa, Portela dirá a José Vilhena: «Nada tenho de especial contra ela, só não me parece justo respirar o mesmo ar que ela respira. Acho que devíamos viver em planetas diferentes.»
No Jornal do Fundão, por cortesia de António Paulouro, Portela encontrou abrigo para manter o seu nome à tona de água, enquanto leccionava em escolas secundárias. A Funda, colecção de crónicas semanais publicadas no jornal beirão, é um extraordinário repositório de crítica ácida e corajosa. Foi chamado à DGS (a outra, a da Segurança e não a da Saúde) por culpa desses textos. Foi representado por Francisco Balsemão que mostrava mais medo do que Artur Portela no confronto com os polícias. Contava o Artur que Balsemão ficara azul quando o seu representado disse ao agente que não assinava a declaração porque ela estava cheia de erros ortográficos e de português. Era assim o Artur. Tinha uma coragem deslocada.
No início dos anos 1970, por amizade com Carlos Eurico da Costa, Artur Portela entrou no mundo da publicidade e do dinheiro. Tinha um talento nato para essa arte. Foi dele a frase «Expresso, o jornal dos que sabem ler», apelando à leitura nas entrelinhas do novo semanário. Na Ciesa, ganhou dinheiro, algum dinheiro. Não foi totalmente leal com Artur Agostinho.
A revolução de 1974 apanhou-o com 37 anos e tomou-a como o sinal de ruptura por que tanto esperara. Interpretou-a mal ou, se preferirem, escolheu o lado que poucos escolheram. Fundou o Jornal Novo, com José Sasportes, pago pela Confederação da Indústria, desejosa de mostrar credenciais revolucionárias ao novo regime. Durante meses, foi o cronista mais lido e respeitado do país. A sua crónica e a fotomontagem associada, na primeira página de um jornal simples, vendia-se loucamente. Algumas edições fizeram tiragens superiores a cem mil exemplares. Ao contrário de tantos outros que se pintaram de esquerda em Abril de 1974, Artur Portela tinha credenciais impolutas e não estava amarrado a um partido.
Dois incidentes marcam a curta vida do Jornal Novo com Artur Portela (o jornal prosseguiu sem ele, em 1976, sem qualquer prestígio ou influência e chegou a ser dirigido por Proença de Carvalho…). Em Agosto de 1975, no auge do calor revolucionário, o grupo de Melo Antunes, já em ruptura com Vasco Gonçalves, distribuiu um comunicado pelas redacções. Era o «documento dos Nove». Foi pedido embargo até à manhã do dia seguinte. Portela pegou no comunicado e publicou-o numa edição da noite do Jornal Novo. Um escândalo. A irreverência de Artur Portela estava sempre à espreita. Talvez se tenha esfumado aí o fantasma do pai.
No 25 de Novembro, o Jornal Novo escolhe mal os aliados. O país está a mudar e Portela não lê bem a situação. Como as crónicas de Afonso Praça sobre a Linha Férrea do Sabor, espera um comboio da terceira via que já não vai passar. A Confederação da Indústria paga o compromisso de Artur Portela no jornal com o despedimento sumário. «Fiz-me difícil, sabe?», contou-me. «Andei dias fugido para não ser notificado.»
Escreveu um livro (Fotomontagem) sobre o caso, que se lê num jacto, tal como, em 1963, fustigara Norberto, Mário Neves e todos os outros com Código de Hamurabi, um romance em código sobre o seu afastamento do Diário de Lisboa. Para mim, são os seus melhores trabalhos literários, embora ele preferisse Rama, Verdadeiramente, um dos primeiros livros do nouveau roman em Portugal.
Escreveu muito. Ninguém interpretou Eça como ele. Ninguém quis ser Eça como ele.
Depois da aventura na revista Opção, as portas dos jornais fecharam-se. Artur Portela institucionalizou-se. O estilo de A Funda, críptico, com meias palavras, já não fazia sentido no Portugal democrático, onde, em teoria, podiam chamar-se os bois pelo seu nome. Foi desaparecendo do espaço público, apesar de algumas crónicas dispersas pelo Tal & Qual (A Feira das Vaidades foi o título que escolheu) e por O Jornal. A sua intervenção pública passou a ser feita através de livros-entrevista (maravilhoso o volume com José Cardoso Pires) e da ficção (nem sempre bem recebida pela crítica).
Ficou a dever-nos um livro de memórias.
Ficou a dever-me uma chave para confirmar todos os nomes encriptados no Código de Hamurabi.
Ficou a dever-me mais um café na Versalhes.
Foi um gigante contrariado, um jornalista que criou o seu próprio carril, que mais nenhuma locomotiva conseguiria trilhar. O que não é pouco.