Declaração de interesses: dá-se o caso de
conhecer biógrafo e biografado da obra que pretendo recensear. A ambos devo
algumas gentilezas. Dá-se ainda o caso de a obra sair com a mesma chancela que
editou o meu último livro, tendo sido trabalhada por gente de quem muito gosto.
Há portanto aqui um gigantesco conflito de interesses, à portuguesa. Mas cá
vão, mesmo assim, as minhas impressões, sujeitas ao escrutínio de quem me lê.
Uma biografia
não autorizada retira sobre o autor o espartilho que o biografado certamente
gostaria de colocar sobre a obra da sua vida. Mesmo um jornalista liberal como
Francisco Pinto Balsemão tem compreensíveis reservas sobre as áreas da sua vida
que deveriam ser preservadas e seguramente que o patrão da Impresa não
subscreve todas as páginas de Francisco
Pinto Balsemão (Planeta, 2017), o livro que Joaquim Vieira agora publicou.
É inegável,
porém, que o biografado colaborou parcial ou integralmente na obra, fornecendo
acesso a arquivos restritos e fotografias. Os processos PIDE em seu nome na
Torre do Tombo foram consultados com autorização do visado – confirmei-o no
próprio ANTT. A troca de SMS em Agosto de 2015 entre Balsemão e Nuno
Vasconcellos, nos quais o patrão da Ongoing se desculpa perante o tio afectivo
(pg. 549) só podem ter partido de uma pessoa. Deixemos portanto cair a postura
de virgem ofendida e avaliemos o livro pelo padrão pelo qual ele deve ser
julgado – a biografia tolerada da personagem mais complexa do
jornalismo português de 1963 ao ano da graça de 2017.
Não quer isto
dizer que os capítulos mais íntimos não provoquem estranheza, para não dizer
repulsa ocasional. A biografia entra a fundo, de catana na mão, nos amores e
desamores do biografado, explorando com minúcia a vida de terceiros, expondo,
remexendo feridas velhas até elas soltarem pus. Nas suas primeiras memórias (Confissões de um Director de Jornal, Dom
Quixote, 2003, pg. 159), José António Saraiva diz de Joaquim Vieira que se
trata de «um enigma. Não é um homem frontal – mas, ao mesmo tempo, é capaz de
dizer as coisas mais terríveis a uma pessoa e fazer as perguntas mais
embaraçosas como se perguntasse: ‘Toma café?’.» Esta biografia comprova que
Vieira retira também um certo gozo disso e algumas passagens (como o trecho
sobre os meles no sofá do Expresso ou a opinião em segunda mão
sobre a devoção do patrão às pernas das senhoras (pg. 41)) são supérfluas, para
não dizer grosseiras.
A biografia,
porém, não se encerra nisso, como a recensão apressada (e triste) de Rosa
Pedroso Lima parece sugerir. Aliás, percebe-se na segunda metade da obra que as
zonas nevrálgicas dos divórcios e do processo de paternidade jogarão um papel
importante em decisões políticas futuras de Balsemão, que terá até receado o
uso destes processos contra si caso avançasse para uma candidatura
presidencial. Só por isso estão justificadas. Como Saraiva também escreveu:
«Vieira assume-se como um missionário da informação. Nunca recusou qualquer
serviço, mesmo arriscado» (opus cit,
ibidem)
Vieira escavou
até às profundezas da Terra para obter informação. Explorou arquivos
menosprezados e decantou-os como um alquimista veterano, embora lhe falte algum
critério na selecção da pertinência da informação. Não é particularmente útil apurar
se o aluno de liceu Balsemão poliu o seu registo académico para efeitos
propagandísticos, mas Vieira explora o tema com deleite.
Fiel ao legado
da sua carreira, falou com toda a gente (todos
mesmo, repito, com as excepções ruidosas de Marcelo e Cavaco). Articula os
depoimentos com mestria, cruzando-os com documentos e outros textos de época.
Explora contradições, obtém panorâmicas detalhadas. A par de Cunhal e Soares,
Balsemão torna-se, com esta obra, uma das personalidades políticas do século XX
em Portugal mais bem estudadas e isso não é um elogio menor.
Os episódios de
fundação da AD em 1974, da criação do Expresso
um ano antes ou os meses de governo pós-Camarate são reconstituídos até ao
mais ínfimo pormenor e constituem versões inatacáveis desses momentos
históricos, até porque reúnem, pela primeira vez, os contributos de quase todos
os agentes políticos envolvidos. O livro, terá a Rosa paciência, torna-se a
fonte de referência do futuro sobre a história do Expresso, da AD até 1983 e do governo português de 1980 a 1983 –
curiosamente, a fundação da SIC, embora narrada com o mesmo ritmo e profusão de
fontes, dá saltos temporais pouco compreensíveis.
Há testemunhos
irrepetíveis como os de Miguel Veiga e Baptista-Bastos (entretanto falecidos) ou de Ramalho Eanes (que
quase nunca abre excepções para comentar o seu percurso) e conversas francas (mesmo francas) com Freitas, Mota Amaral,
Santana Lopes ou José Alfaia.
Como seria de
esperar, há testemunhos de personalidades reconciliadas com a vida – o fair-play de Saraiva, depois de tantos
livros de alfinetadas, fica-lhe bem, tal como é muito curioso ouvir agora Ângelo
Correia ou Freitas do Amaral admitirem as repercussões duradouras das medidas
tomadas pelo governo de Balsemão. Em contrapartida, há gente que faz pouco
esforço para esconder afrontas (reais ou imaginadas) com 30 anos.
Confesso que
esperava o registo ressentido de Vicente Jorge Silva, mas não estava à espera
de tanto fel (v. pg. 84, 245-247, 307-398). Não fica bem, não se engole nem
bate certo com o que se sabe da biografia de ambos. Mais do que Marcelo,
Vicente parece obcecado em matar o pai que lhe deu a mão no Diário Popular quando o Comércio do Funchal foi travado.
Mesmo com a
pesquisa exaustiva de Vieira, há falhas e problemas insolúveis no trabalho. Ao
abordar fases em que foi igualmente actor (como director-adjunto do Expresso, como possível director da
informação da SIC ou no peculiar episódio que levou à sua saída do Expresso), o historiador tem dificuldade
em emergir e separar-se do actor. Um dos diálogos com Saraiva deixa até
transparecer o desconforto de colocar frente a frente o director que sugeriu à
administração a demissão do adjunto («tu depois tiveste aquela coisa de
acrescentar», diz-lhe Saraiva com notório desconforto, na pg. 465). E nós,
leitores, assistimos.
Em episódios
pontuais, Vieira (escrupulosamente meticuloso na referência das fontes) deixa
igualmente no ar insinuações incomportáveis, como no depoimento de Alexandre
Patrício Gouveia sobre Camarate, que faz um ataque virulento ao patrão da
Impresa («a hipótese teórica é que o Balsemão, no dia do atentado, já sabia que
estava em preparação a operação da CIA», pg. 460). Na crise da Impresa de 2008
a 2012 e no choque com a Ongoing em 2014 e 2015, abundam fontes anónimas –
compreensíveis, naturalmente, mas que dificultam o apuramento da validade de cada
afirmação.
Embora poucos,
há erros factuais na biografia, sobretudo no capítulo sobre o Diário Popular, porventura o menos bem
sucedido. Ignora-se o processo de fundação do jornal em 1942, fortemente
apoiado por Caetano apesar das reticências de Salazar (ver a esse propósito Salazar-Caetano, Cartas Secretas 1932-1968,
1993, pg. 145, 154-159, 187, 219, 280-282), bem como a tentativa de assimilação
pelo Diário de Notícias uma década
depois, que levará um membro da nova administração a entrar nas instalações do jornal de
pistola na mão. E, para minha tristeza, subestima-se o papel de Brás Medeiros,
um dos dois pilares da evolução que levará o jornal aos píncaros no final da
década de sessenta e ao recorde mítico de tiragens na imprensa portuguesa.
A participação de
Balsemão no jornal não foi vendida na «Primavera de 1971» (pg. 121), mas sim em
2 de Fevereiro e noticiada dois dias depois. Aliás, no dia em que a notícia dos
novos corpos sociais da Sociedade Industrial de Imprensa vê a luz, Balsemão já partira
em viagem para Macau para desanuviar a mente.
Não é igualmente
verdade (e aí o erro parte do testemunho de Maria Antónia Palla, pg. 79) que Palla,
Margarida Silva Dias e Maria Armanda Passos tenham sido directamente admitidas
no âmbito do concurso organizado em Abril e Maio de 1966 pelo administrador
para contratar jornalistas. Como escreveram Fernando Correia e Carla Baptista
em obra negligenciada pelo autor (Jornalistas:
Do Ofício à Profissão, 2006, pg. 411-415), o concurso levou à admissão dos
quatro primeiros classificados — Botelho Tomé, José Manuel Teixeira, Silas de
Oliveira e Fernando Correia – prevendo-se que, mais tarde «os seguintes
melhores classificados pudessem também, eventualmente, vir a ser convidados.»
Como sucederia nos anos seguintes.
Por fim, não é
igualmente verdade que Mário Bento Soares tenha sido o primeiro chefe civil da
censura (pg. 189). José Fernando Quesado Pastor, Eduardo Homem, Guilherme
Lourenço Pinheiro, António Neves Martinha e Rui Alvim precederam-no, como
Joaquim Cardoso Gomes (Os Censores do 25
de Abril: o Pessoal Político da Censura à Imprensa, Jornalismo e
Jornalistas, 57, pg. 21) já documentou.
Francisco Pinto Balsemão é um livro que, em reflexão e passada a
fúria, o patrão da Impresa talvez subscreva. Faz-lhe justiça e humaniza-o. Sem
coroas de louros ou auréolas santas. Só como um homem.