sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Chuva de Riso

A seca, já se sabe, desperta os instintos mais primários nos desesperados filhos da nação. Há cerca de um mês, sorrimos todos perante a evocação de algumas missas rezadas aos céus a troca das sonhadas gotas de água, fórmula medieval bem útil para tempos de crise. O raciocínio envolvido nesta troca celestial de missas por chuva foi o mesmo da Idade Média: não cai chuva, não compreendemos por que motivo não cai chuva, pelo que, pelo sim pelo não, mais vale pedir clemência aos deuses. O resultado, porém, não foi diferente dos meses anteriores: nem uma gota. E os campos agrícolas cada vez mais áridos!... E a área de pasto cada vez mais estéril!... E os animais cada vez mais cadavéricos. Uma tragédia.
Warren Burkett, pedagogo e jornalista científico norte-americano, colocou sempre a ênfase das suas intervenções na necessidade de separar a ciência do mito, a racionalidade da fé. Tivesse ele assistido ao carnaval da última semana em Portugal e soltaria urros de protesto. Em causa, um projecto das Universidades Lusófona e de Évora baseado no "bombardeamento das nuvens" para forçar um aumento dos níveis de precipitação.
Começo por dizer que nada me move em particular contra o projecto. É uma experiência-piloto, ao que julgo já testada em 1999 e que assenta no princípio segundo o qual, se há nuvens, pode haver chuva. Basta «inseminá-las» (sic no artigo do "Diário de Notícias").
Não duvido da cientificidade da experiência, aliás já desenvolvida noutras paragens. Partículas de iodeto de prata e de cloreto de cálcio são projectadas para as nuvens, acelerando e tornando mais densa a formação de cristais. Mais pesados, estes tendem a cair, formando chuva (este ano, lançou-se apenas iodeto de prata). Não contesto, dizia eu, a validade do projecto, mas assisti de fora, divertido, ao aparato com que os meios de comunicação narraram a epopeia.
É certo que a ideia cativa o mais primário dos nossos instintos: controlar a atmosfera, provocar chuva, gerir a fúria dos céus. Desde tempos imemoriais que o homem quer manipular os elementos.
Ao mesmo tempo, os elementos químicos mágicos (e ainda por cima inócuos para pessoas e solos) reportam-nos para as artes da alquimia e da combinação química que tudo resolve. Iodeto de prata? O repórter não sabe o que é, mas soa-lhe bem. Cloreto de cálcio tem também a sua magia, mas parece menos potente ao ouvido!...
Ora, tudo isto, apesar de apelativo para a lupa jornalística, não pode ser pretexto para tornar leviana a notícia de um projecto académico.
Entendamo-nos: a experiência foi apenas isso - um teste. Deveria ter sido narrada com distanciamento e não com a honra que normalmente se dedica aos grandes avanços da tecnologia. Por vários motivos:
1) O custo absurdo da missão (que envolveu um avião C-130 Hércules e 240 cartuchos de iodeto de prata) torna-a impraticável.
2) A necessidade de cooperação com o Instituto de Meteorologia (IM), que teoricamente fornece informação sobre o tipo de nuvens mais adequado, torna a aplicação destes processos absolutamente inviável. Só quem nunca teve de colaborar com o anacrónico IM, pode esperar garbosamente que a instituição ceda o que quer que seja em tempo útil e de bom grado.
3) A escala de aplicação desta tecnologia é lamentavelmente mínima. Obtêm-se, de facto, níveis elevados de pluviosidade temporária, mas em micro-regiões insignificantes e, pior do que isso, durante períodos muito curtos.
4) A imprevisibilidade associada ao voo desmente a eficácia do processo. O avião quer seguir para Condeixa e passa no Cartaxo; o plano de voo diz Proença-a-Nova e a rota verdadeira transporta aviadores e fazedores de chuva para a Sertã.

Neste universo de informação de lantejoulas, como alguém definiu com propriedade os noticiários televisivos portugueses, o projecto cumpriu vários valores-notícia e foi por isso noticiado com destaque. Mas o mero enquadramento que lhe foi atribuído, invariavelmente relacionado com a vantagem tecnológica de fazer chover, é pernicioso para a percepção que o público retira. Este projecto não faz parte da equação para resolver o grave problema da seca em Portugal. Não tem a mínima hipótese de aplicação a grande escala. Não deveria ter sido enquadrado como «possível solução para mitigar a seca», como um locutor televisivo definiu.
Dir-me-á o leitor avisado que esse risco é mínimo e que o público distingue o folclore da notícia. Tenho sérias dúvidas. Se tivesse de arriscar, diria que a esmagadora maioria de leitores e ouvintes da notícia reteve a informação de que, a partir de agora, pode-se «bombardear» nuvens, «fazer-lhes inseminação artificial» (resta conhecer a posição da Igreja sobre esta prática genética!?!), obrigando-as a «deitar chuva» graças a «produtos químicos que não arruinam os solos». O problema da seca é agora portanto mais «fácil de resolver».
Da parte que me toca, perante tanta barbaridade, arrisco-me a dizer que teria sido mais barato patrocinar a vinda de dez índios cherookees americanos para fazer a dança da chuva. O folclore televisivo seria idêntico e, se calhar, o valor de precipitação seria mais concentrado. Bem dizia o Eça que Portugal é a França... em calão!

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Não Mexer, Não Dobrar, Não Esticar! (Parte 1)

«Não Mexer, Não Esticar, Não Dobrar! Sou um Ser Humano!»

Recordam-se destas palavras de ordem do movimento hippy norte-americano?
Ocorrem-me hoje, à medida que as águas vão acalmando depois da noite eleitoral. Nos próximos dias, parece-me fundamental quantificar o que não foi feito, o que é legado e sobretudo o que não deve ser perturbado.
Naturalmente, um governo que entra em funções terá legitimidade para intervir em todas as matérias de policy, mas seria absurdo que a nova maioria que tomará posse no próximo mês de Março procedesse à metódica terraplenagem de todos os instrumentos de governação entretanto levantados.
Até à tomada de posse do próximo governo, subordinarei ao título em epígrafe algumas notas sobre actos de governação ambiental desenvolvidos durante a legislatura que ora finda e que, em alguns casos, deveriam valer como alicerces do edifício. Começo hoje esse esforço com uma avaliação dos instrumentos de combate às alterações climáticas.
Entre a comunidade ambientalista, o Plano Nacional para as Alterações Climáticas foi recebido com algum cepticismo. Creio que resumo os blocos de críticas se apontar as seguintes objecções:
a) O PNAC não penaliza devidamente os combustíveis fósseis (embora admita programaticamente uma taxa sobre o carbono)
b) O governo não fez esforço algum para sensibilizar a população a reduzir o consumo de electricidade e combustíveis
c) O cálculo de referência para o aumento de emissões até 2006 é extremamente conservador, o que permite candidamente que Portugal vá ultrapassando o tecto anual permitido.
d) Deveria ter sido promovido um amplo trabalho de sensibilização pública, capaz de informar os portugueses das pesadas multas que o país terá de pagar depois de 2012. Quantos conhecerão o encargo que o país arcará a partir de então?
e) A pressão que deveria ter sido exercida sobre a indústria foi amolecida sob o argumento (verídico) de que colocar mais entraves à produção industrial num cenário de recessão provocaria ainda mais desequilíbrios. Mas forçosamente a indústria não aproveitou este período de purgatório até 2012 para se adaptar às exigências.
f) Os impulsos fiscais às energias renováveis não passaram ainda de projecto.

Perante este bloco de críticas (algumas justas, outras nem por isso), será o PNAC um instrumento inútil? Na minha modesta opinião, o PNAC foi a forma possível de começar a trablhar (tarde e a más horas) nesta área. A transposição da directiva comunitária para a legislação portuguesa foi um passo essencial e, convém não esquecê-lo, vários parceiros da União Europeia ainda não o fizeram! Importa desmistificar: não se impõem quotas sem instrumentos programáticos. Não se desenvolvem políticas e medidas sem um quadro programático de fundo, que coordene o processo (mesmo que, de 2002 a 2004, a coordenação tenha ficado a cargo do inenarrável José Eduardo Martins - o que é quase uma contradição de termos!).
Os ambientalistas reagiram com dureza essencialmente porque o PNAC e sobretudo o PNALE (Plano Nacional de Alocação de Emissões) poderiam ter sido mais ousados e até mais transparentes. Também o creio! Mas um passo em frente, mesmo que curto, é um passo em frente.
Membros do governo queixaram-se em demasia de má imprensa e de falta de eco para algumas políticas e medidas entretanto desenvolvidas. No caso dos mecanismos de mitigação das alterações climáticas entretanto implementados, creio que de facto a avaliação mediática do processo não foi inteiramente justa. Durante largas semanas, resumiu-se a intervenção portuguesa ao PNAC e às suas limitações. Pontualmente, foi lembrada a participação portuguesa no comércio de emissões - mas a óptica de análise chegou a ser opaca. Na minha opinião, a lacuna mais grosseira acabou por ser o esquecimento de uma curiosa iniciativa de aproveitamento dos mecanismos de flexibilidade previstos pelo Protocolo de Quioto e atribuídos aos países e empresas capazes de executar ou financiar projectos "limpos" noutros pontos do globo. O princípio de acordo obtido com o potencial mercado da América Latina deveria ter sido mais destacado. O Ministério do Ambiente defendeu que essa poderia ter sido uma ferramenta útil para financiar o anunciado Fundo do Carbono Português. Silêncio total nos media. Essa funcionalidade está prevista no Protocolo e Portugal lançou as bases para o seu aproveitamento. A notícia não valeria duas linhas?
Um último remoque: o Ministério do Ambiente admitiu que o PNAC tinha limitações (propositadas?) e aprovou um sistema de garantia e controlo da qualidade dos inventários nacionais de gases com efeito de estufa. Embora os ambientalistas suspeitem que os dados do controlo de qualidade nunca seriam publicados (um lamento pertinente), o próximo governo contará também com este instrumento técnico.
Recuperando a mensagem do "post" - que antecipo polémico -, afigura-se-me impensável que o próximo governo abandone as ferramentas entretanto criadas no campo do combate às alterações climáticas. Não acrescentar mais nada quando 2012 está à porta seria um acto irreflectido! Revogar o que foi feito neste domínio seria um acto criminoso.

domingo, fevereiro 20, 2005

Dia de Reflexão

Por definição, o dia reservado à reflexão do eleitorado deve ser respeitado. Por isso, hoje e amanhã não maçarei os meus leitores. A partir de segunda-feira, o Ecosfera voltará a emitir sinais de vida... Vida inteligente, espera-se.
Boas eleições!

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

Estrelas e Estábulos

"If two wrongs don’t make a right… try three" – Laurence J. Peter

A citação assenta que nem uma luva na recente decisão do secretário de Estado para o Ambiente, Jorge Moreira da Silva, relativamente ao túnel do Marquês de Pombal em Lisboa.
Começo por dizer que tenho respeito pela sua intervenção política nos últimos três anos, quer no Ministério da Ciência e do Ensino Superior, quer no Ministério das Cidades, do Ambiente e do Ordenamento do Território (MCOTA). Talvez por isso, a bitola seja mais elevada e o desconforto provocado pela sua recente intervenção seja maior.
Contextualizemos: no final de Janeiro, já com o fim da legislatura perfeitamente no horizonte, e quando a elegância mandaria que um governo de gestão se limitasse a… gerir, Moreira da Silva optou por deixar a sua marca no intrincado processo do túnel do Marquês. Fê-lo da pior forma, dispensando a avaliação de impacte ambiental (AIA) em curso, o que se traduz na consequência imediata da retoma da obra e da sua "legalização" artificial.
Argumentou o secretário de Estado que uma decisão do Supremo Tribunal considerava inútil este procedimento técnico, uma vez que a obra já seria irreversível. Ao mesmo tempo, como o MCOTA se debate com escassez de recursos humanos, a AIA iria ser um desperdício de tempo e de dinheiro, alega ainda Moreira da Silva.
A teia complicou-se quando José Sá Fernandes contestou a legalidade do despacho, uma vez que o mesmo, diz o advogado, assentou num pressuposto falso. A decisão do Supremo Tribunal não considera inútil o AIA, explica Sá Fernandes. Para além disso, há uma acção no tribunal administrativo que, essa sim, poderá pronunciar-se sobre a adequabilidade do AIA para uma obra desta natureza. Entretanto, para complicar mais ainda, o Instituto de Estradas de Portugal e o Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação identificaram riscos associados à gestão rodoviária da zona, ao risco sísmico e à capacidade de socorro em caso de acidente.
Como a acção ainda decorre no tribunal administrativo, mandaria a prudência que se aguardasse a decisão do mesmo antes de declarar improcedente a AIA. Suponham que esta instância jurídica considera no futuro que o AIA é indispensável para uma obra desta envergadura. Como ele foi iniciado mas não terminado nem aplicado, teoricamente poderia haver uma ordem judicial para destruir o túnel. O exemplo é grosseiro, mas a prática também o foi, e o próximo elenco camarário pode herdar um processo de indemnização colossal.
Mas concentremo-nos no essencial. O que levou Moreira da Silva a pronunciar-se de forma tão evidente num processo que deixará de gerir a partir de dia 20 (pelo menos, numa democracia, um governo só deve assumir a sua responsabilidade até ao sufrágio seguinte)? Lamentavelmente, tenho uma conclusão – creio que a única interpretação lógica para esta súbita blindagem da obra e dos seus promotores.
A partir de dia 20, se o governo mudar de cor, mãos mais hostis poderiam imediatamente cancelar a obra, questionar a sua legalidade e a sua incapacidade de cumprir os requisitos que um túnel desta natureza deveria ter cumprido desde o início.
Continuando este silogismo futurista, diria que Moreira da Silva se apressou a resolver um problema que se esperava de resolução complexa em 2005 e com potenciais impactes nas eleições autárquicas, agendadas para Outubro. Muito mais fácil é resolver o imbróglio enquanto se tem a faca e o queijo na mão. Pergunta-se: com que chapéu tomou Moreira da Silva a decisão – o governamental ou o partidário? A resposa parece óbvia.
Não partilho a posição da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, que associou a decisão do secretário de Estado (candidato a deputado, em lugar elegível, nas eleições de domingo) a um eventual regresso de Santana Lopes à Câmara Municipal de Lisboa. Não me parece possível, nem plausível, que o edil-que-se-tornou-primeiro-ministro venha agora a ser o primeiro-ministro-que-voltou-a-ser-edil.
Entristece-me apenas sentir que o legado de um secretário de Estado activo, que deixou trabalho feito no campo da adaptação da legislação portuguesa às alterações climáticas, será a chamada… herança italiana. Ou, por outras palavras, esta é a triste história de como um político passou rapidamente "dalle stelle alle stalle". Das estrelas aos estábulos.

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

A Talho de Foice

Por elementar justiça, importa salientar o brilhante trabalho do "Público" de hoje sobre o protocolo de Quioto. Enquanto a concorrência se limitou a descrever o protocolo, quem assinou e não assinou, os seus limites e vantagens, Ana Fernandes e Ricardo Garcia lançaram-se na tarefa muito mais difícil de analisar o falhanço do Plano Nacional para as Alterações Climáticas (PNAC).
Condensando a análise nos referenciais de Energia, Transportes, Impostos e Sector Primário, os repórteres traçaram um quadro muito mais negro do que aquele que o Ministério do Ambiente tem pintado do PNAC. Excelente trabalho, pois, do jornal.

Importa, porém, com esta análise em mãos, reflectir sobre o aparente fracasso deste instrumento de controlo e gestão. A priori, todos consideramos indispensável um plano aglutinador, que estabeleça objectivos e prioridades, medidas e programas. Sem ele, os esforços tendem a mostrar-se descoordenados.
À data, julgo que poucos criticaram o PNAC e o seu programa. Hoje, todavia, constata-se o seu falhanço aparente, o que transporta a discussão para a forma como actuamos no campo do Ambiente e como desenvolvemos esforços para actuar contra fenómenos continuados e globais. Por outras palavras, se o PNAC era o primeiro passo indispensável para cumprir as metas de controlo dos níveis de poluição atmosférica, por que razão a batalha parece cada vez mais perdida?
Em 1994, num texto emblemático ("Regressar à Terra", edições Fim de Século), Viriato Soromenho-Marques colocou a teste um modelo. Segundo o autor, teoricamente poder-se-ia falar de governação responsável na área do Ambiente a partir do momento em que um país cumprisse cinco referenciais, a saber:
a) a consagração dos direitos e deveres na área do ambiente no texto constitucional
b) a aprovação de uma lei específica relativa ao ambiente e à sua envolvência com a área económica e rural
c) a publicação regular, de preferência anual, de relatórios técnicos e científicos sobre diversos indicadores ambientais.
d) a criação de uma pasta específica governamental para as questões ambientais, de preferência dentro de um ministério e isolado de outras áreas temáticas
e) a implementação de uma autoridade ambiental, capaz de associar o governo e a sociedade civil, de coordenar a elaboração de relatórios e de servir de juiz nas disputas entre as várias esferas de poder, sempre que o ambiente cria contendas.

Ora, paradoxalmente, Portugal já cumpriu parcial ou integralmente estes cinco passos e nem por isso podemos hoje falar de uma intervenção mais coerente no campo do ambiente.
1) O texto constitucional de 1976 cumpre o referencial a).
2) A Lei de Bases do Ambiente de 1987 responde ao referencial b)
3) São produzidos, embora com regularidade discutível, relatórios sobre os principais indicadores ambientais, satisfazendo o referencial c)
4) Sob a égide de uma secretaria de Estado ou de um ministério, o Ambiente tem figurado continuamente nos executivos governamentais desde 1979 (com uma única excepção – o primeiro governo de Cavaco Silva). Também o referencial d) é respondido em Portugal
5) Existe, por fim, uma autoridade centralizadora, embora limitada. Já se chamou Instituto Nacional de Ambiente e depois Instituto de Promoção Ambiental. Hoje, é simplesmente Instituto de Ambiente. Também o referencial e) é satisfeito.

O que falha então? Ou, colocando a questão noutro plano, se construímos o edifício pelos alicerces, em que fase adulterámos o resultado final? No caso do PNAC, parece claro que o fraco incentivo dentro do próprio executivo, a crise económica que afecta o tecido industrial e que dificulta a imposição de metas reais, o poder fortíssimo de alguns "lobbies" energéticos e a escassa consciencialização individual para a causa funcionaram como forças de atrito, travando o que era genericamente uma iniciativa saudável.
Olhando de fora, diria também que parámos de nos preocupar no momento em que o PNAC foi publicado.

Ontem, entrou formalmente em vigor o protocolo de Quioto. Teria sido interessante escutar a opinião dos cinco candidatos a primeiro-ministro sobre o tema. Algum dos cinco políticos que se apresentaram ao debate conheceria sequer a efeméride?

terça-feira, fevereiro 15, 2005

Dois Remates à Barra

No espaço de uma semana, duas manchetes do jornal "Público" foram desmentidas pelos implicados. Naturalmente, a mera publicação de um desmentido não significa que as notícias estariam erradas, mas convenhamos que não é um bom sinal – sobretudo quando os implicados negam ponto por ponto a matéria de facto.
Caso 1: No início da semana, o jornal referia que Cavaco Silva apostava numa maioria absoluta do Partido Socialista. Perante o facto político que agitou as águas no seu partido e na oposição, o ex-primeiro-ministro foi forçado a desmentir a manchete que nunca concedera. Apropriadamente – e cumprindo a lei – o "Público" pediu desculpa na capa. Admitiu que Cavaco Silva não se pronunciou e que a manchete era uma extrapolação exagerada de contactos com fontes e de informações de "background". Por outras palavras, até é possível que Cavaco Silva acredite (ou mesmo deseje) uma maioria absoluta do PS. Simplesmente, nunca "apostou" publicamente nela. E esse pequeno pormenor faz toda a diferença.
Caso 2: No domingo, o jornal avançou com um "ranking" dos principais devedores do futebol português. No próprio dia, o primeiro e o terceiro clube da lista apressaram-se a desmentir a notícia e a mostrar certidões emitidas pela Segurança Social comprovativas do passivo aparentemente saldado.
Hoje mesmo, novamente em manchete, o jornal vem clarificar o que então escreveu: as dívidas até podem existir, mas, como o ministro Pina Moura emitiu um despacho permitindo a inscrição dos clubes e as repartições de finanças emitiram declarações de situação contributiva regularizada, o Estado terá mais dificuldade em cobrar. Por outras palavras, a dívida não parece ter sido saldada, mas é bem provável que nunca venha a ser, pelo que a notícia não era totalmente verídica.

Erros como estes podem acontecer todos os dias a quem lida com informação sensível. Todavia, no intervalo de uma campanha eleitoral, cada erro é potenciado, e cada facto político torna-se um gigantesco tsunami de proporções difíceis de controlar. Dois exemplos muito concretos:
1) Reagindo a quente à aparente "aposta" de Cavaco Silva no PS, Luís Filipe Menezes e Alberto João Jardim atacaram veementemente o ex-primeiro-ministro. Gostava de saber quão patetas se sentiram no dia em que o político algarvio desmentiu a notícia!
2) Clubes cotados em bolsa são necessariamente afectados por notícias reveladoras da sua insolvência. As cotações das duas Sociedades Desportivas citadas desvalorizaram na segunda-feira passada. Quem paga o prejuízo se a notícia estiver incompleta, como parece ter estado?

Ao expor os erros do "Público", não belisco o estatuto privilegiado do jornal na sociedade civil portuguesa – estatuto esse conquistado ao longo de muitas primeiras páginas e de muitas manchetes. Mas esta nota serve para lembrar que basta uma edição para quebrar a relação de confiança entre os leitores de um jornal ou revista. Como se volta a confiar em quem já nos enganou?

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

Morte Lenta

Aproveitando a agitada gincana em que as eleições se transformaram, cometeram-se algumas barbaridades nas últimas semanas. Por baixo da mesa, como um ilusionista que desvia a atenção da audiência para poder realizar o truque de "magia", vamos conhecendo, aos poucos, atropelos à lógica e à lei. É aliás bem possível que o que sobe à tona seja apenas a ponta do icebergue.
Recebi de um arqueólogo amigo a seguinte nota que, pelo seu interesse, partilho com os leiores do Ecosfera:


"Novas instalações para a Escola Portuguesa de Arte Equestre e Museu dos Coches
2005-02-10
Novas instalações para a Escola Portuguesa de Arte Equestre e Museu dos Coches
Numa cerimónia presidida pelo Primeiro-Ministro, Dr. Pedro Santana Lopes, foi assinado, esta quinta-feira, um protocolo que permitirá instalar o Museu dos Coches e a Escola Portuguesa de Arte Equestre no espaço das antigas Oficinas Gerais de Material de Engenharia, situadas na Avenida de Índia.
O protocolo entre o Serviço Nacional Coudélico, o Instituto Português do Património Arquitectónico e a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais permitirá igualmente restituir ao actual edifício do Museu dos Coches as suas funções originais de Picadeiro.
O plano de instalação prevê que todos os passos a dar permitam que a construção se inicie em 2007 e que o novo espaço entre em funcionamento em 2008.
Recorde-se que desde 1979 que as instituições em causa aguardam a sua instalação nas antigas Oficinas Gerais de Material de Engenharia."

Pois é, assim sem mais, a notícia surge com uma simplicidade tocante.
Mas, e há sempre um pequeno mas, as antigas Oficinas Gerais de Material de Engenharia não constituem propriamente um imóvel devoluto ou abandonado.
Entre outros serviços, eventualmente de menor expressão, do Ministério da Cultura, trata-se do local onde está sediado o Instituto Português de Arqueologia (o instituto público a quem compete o inventário e salvaguarda do património arqueológico nacional), o CIPA (Centro de Investigação de Paleoecologia, um organismo científico da maior importância para o estudo das realidades ambientais antigas, do espaço que hoje é Portugal), o CNANS (Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática, a entidade pública que vela pela salvaguarda do património histórico nacional, em meio subaquático). Como se não bastasse, é no IPA também que se encontra a mais importante biblioteca de Arqueologia existente em Portugal. Uma biblioteca que foi constituída com o fundo bibliográfico da antiga delegação de Lisboa do Instituto Arqueológico Alemão, cedida ao Estado português por um acordo de comodato, que implica obrigações por parte do nosso Estado. Este núcleo inicial, foi acrescentado em poucos anos, mercê de uma lúcida e eficaz política de aquisições e permuta de publicações. Tão importante é esta entidade que, em boa hora, foi decidido resguardá-la em novas e mais dignas instalações, justamente na Av. da Índia, que se encontram em fase de acabamento e onde, ironicamente, foi assinado o protocolo a que se refere a notícia em epígrafe.
No puro domínio do surrealismo, haveria a registar o facto de as instalações da dita biblioteca, ainda por inaugurar, terem servido para assinar um protocolo que ditará forçosamente a destruição dessas mesmas instalações. Tal diz muito sobre o conceito de boa utilização dos fundos públicos e de planificação estratégica das actividades dos organismos públicos.
Mas o que verdadeiramente interessa perguntar é:

1 – Para onde irá o IPA e se continuará a existir enquanto organismo autónomo?
2 – Naturalmente, também, para onde irão o CIPA e o CNANS e se continuarão a existir enquanto entidades?
3 – Para onde irá a Biblioteca e se o Estado português continuará a honrar os compromissos assumidos no passado?

Em suma, três questões relevantes e de superior interesse público.
Naturalmente, numa perspectiva cínica, poderíamos dizer que se trata tão-somente de mais uma iniciativa desastrada de S. Exª o Sr. Primeiro-Ministro e que nada disto fará sentido no dia 21 de Fevereiro.
No entanto, porque os assuntos são sérios, porque em eleições, como em tudo na vida, não há vencedores e vencidos antecipados, e porque estamos em campanha eleitoral, seria interessante saber o que cada partido tem a dizer sobre estes temas.

Aceitam-se comentários.

sábado, fevereiro 12, 2005

A Causa das Coisas

Estranho período eleitoral, este. Olhando para a campanha sob o prisma ambientalista, haveria bons motivos para aspirar que o Ambiente regressasse à agenda polítia com a força de outrora. Mesmo o mais empedernido ambientalista admite hoje tristemente que esta causa perdeu força, perdeu capacidade de motivação. Não entusiama as massas ergo... não capta a atenção dos políticos.
E todavia esta era uma oportunidade de ouro. José Sócrates, principal líder da oposição, tinha um currículo praticamente realizado na arena ambiental, como secretário de Estado e como ministro. Acidental ou propositadamente, esta também foi a primeira ocasião em que o PSD investiu recursos nesta área e aceitou uma coligação com o Movimento Partido da Terra, que valerá ao MPT provavelmente dois deputados na próxima legislatura. No outro lado do espectro, tínhamos ainda o Partido Ecologista os Verdes, com as suas décadas de historial e um nível interessante de participação nas duas últimas legislaturas.
Ora, com estes condimentos todos, a receita, mesmo assim, falhou. Assisti, com interesse, a praticamente todos os debates e entrevistas com os candidatos de partidos já com assento parlamentar. Lamentavelmente, o Ambiente - com todas as suas especificidades e prioridades - foi resumido à co-incineração (co-inceneração na versão de Nobre Guedes!). Nada mais interessou, nada mais logrou furar barreiras e merecer discussão. Com tantos pólos já sintonizados para a causa, mesmo assim, o Ambiente foi sinónimo exclusivo de co-incineração.
No início de 2005, a Quercus lançou um repto, traduzido na definição de sete prioridades para a próxima legislatura (ver comunicado aqui):
1) A definição de um Plano Nacional de Ambiente e Saúde
2) A discussão de Zonas Livres de Transgénicos (não partilho deste ponto de vista - algum dia escreverei sobre ele)
3) Reformulação por completo da estratégia de conservação da natureza e reavaliação da importância do ICN
4) Definição e defesa dos instrumentos de ordenamento do território, com a blindagem da REN e da RAN à cabeça. Criação de um Programa Nacional de Política de Ordenamento do Território e implementação dos Planos de Ordenamento da Orla Costeira
5) Discussão e apresentação de soluções para o tratamento de resíduos perigosos e urbanos
6) Publicação do há muito esperado Plano Nacional da Água e transposição imediata da directiva para a legislação portuguesa. Fundamentação dos Planos de Bacia Hidrográfica.
7) No campo das alterações climáticas, vigilância da aplicação do Plano Nacional de Alterações Climáticas, com especial relevo para a sua adaptação progressiva a um problema que ainda vai piorar, antes de melhorar.

Estes sete desafios (todos urgentes, todos essenciais) foram pulverizados pelo rolo compressor das campanhas eleitorais. Apenas o tratamento de resíduos da zona centro foi discutido e com pouca nobreza e sinceridade. Confundiram-se alhos com bugalhos e soluções prontas em tempo real com projectos ainda por desenvolver. Até ontem, repito, o Ambiente estava reduzido à dimensão que lhe dávamos nos anos 1960 em Portugal: sinónimo de luta contra a poluição. É pouco, muito pouco. Até ontem, porém, essa foi a sua única dimensão.
Ontem, acordámos com uma notícia partilhada, fenómeno moderno traduzido numa fonte muito altruista, que oferece a vários (quase todos) os meios de comunicação uma informação aparentemente exclusiva. E o que diziam as notícias? O governo socialista aprovara o projecto Freeport para Alcochete nos últimos dias do seu mandato, à revelia do estatuto de Zona de Protecção Especial de que grande parte da área gozava. Ou seja, depois de dois chumbos, o Conselho de Ministros (o último de todos presidido por Guterres!?!), excluiu a área do Freeport do perímetro da ZPE.O ministro do Ambiente, à data da polémica aprovação, era José Sócrates.
Não cederei à tentação de considerar apenas que a intervenção da Polícia Judiciária é suspeita nesta altura, a sete dias das eleições. É óbvio, porém, que esta coincidência temporal não deve ser esquecida.
Ontem à tarde, quer a Procuradoria Geral da República, quer a Polícia Judicária, comentaram o caso (que já levou à apreensão de documentos e material informático da CM Alcochete e da Reserva Natural do Estuário do Tejo) e afirmaram que José Sócrates, por ora, não é suspeito. Este por ora é diabólico. Permite todas as interpretações, todas as suspeitas. Mas é também um mecanismo de defesa das instituições.
O PS defende que esta questão se limita à escala autárquica, uma vez que foi a edilidade que aprovou o projecto. Mas o processo foi decidido em instâncias mais altas e, sobretudo, nos últimos dias de um governo. A suspeita é legítima e atinge Sócrates num ponto vulnerável: a sua imagem de ministro do Ambiente combativo e impoluto.
De repente, a martelo, entrou na arena mediática a discussão de mais um relevante tópico ambientalista: o ordenamento do território. Veremos o que a próxima semana nos revela. Seria irónico que um candidato que fez grande parte da sua carreira política na esfera ambiental fosse chamuscado precisamente por uma intervenção dúbia num processo conduzido nessa arena...

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

Vamos a Eles

À distância e com um inevitável retardamento, escutei as propostas do ministro demissionário Nobre Guedes sobre José Sócrates, Coimbra e a co-incineração. Embora já com atraso, permitam-me que ilumine o vasto auditório com mais alguns detalhes do arrojado plano do ministro das Cidades, do Ordenamento do Território e do Ambiente.

O ministro da República propôs a uma rádio da zona centro uma intervenção mais proactiva da população de Coimbra, destinada a travar a entrada literal do secretário-geral do Partido Socialista na próxima ocasião em que este pretendesse deslocar-se à Lusa Atenas. Depois de ampla pesquisa, cabe-me fornecer mais pormenores deste ousado, repito, ousado plano estratégico do candidato do CDS/PP por Coimbra.
1) Pretende-se, em primeira instância, criar uma zona desmilitarizada, num perímetro de pelo menos cinco quilómetros em todas as direcções, criando assim uma malha impenetrável de acesso restrito. O modelo de Guedes seria obviamente a DMZ da Coreia.
2) Impõe-se, nesta fase, recrutar toda a população activa da cidade, nobre e temente a Deus, para o esforço de vigilância - não vá Sócrates pretender infiltrar-se disfarçado.
3) Até dia 20, todos os fornos da cidade devem ser mantidos em lume brando, de forma a permitir o aquecimento de óleo rapidamente. Se o secretário-geral ousar aproximar-se da muralha da cidade, deverão os militantes do "não à co-incineração" projectar caldeirões de óleo fervente na sua direcção.
4) Para garantir o respeito pela DMZ, é fundamental montar uma linha de catapultas, que permita arremessar contentores de resíduos domésticos urbanos, indigentes, Carlos Encarnação, funcionários empobrecidos do Instituto da Conservação da Natureza e ecopontos até uma distância de pelo menos vinte quilómetros. Será, desde logo, disponibilizado um fundo de contingência, caso uma das catapultas acerte involuntariamente na povoação de Taveiro ou outra vizinha.
5) Situações de guerra como esta exigem naturalmente estados de excepção. O recolher obrigatório garantirá que nenhum coimbrão conspirará contra a vontade colectiva do Grande Líder. Eventuais prevaricadores serão deportados para as minas de Canas de Senhorim, palco de uma inesquecível prestação política do ministro nesta legislatura.
6) Em locais estratégicos, como o Arco Almedina, a Sé Velha, o pátio das escolas e a Via Latina, montar-se-ão "check points" ao estilo de Berlim Oriental. Exigir-se-á a cada cidadão que apresente documentação reveladora do seu repúdio pela solução de Souselas. Cidadãos que apresentarem cartão de militante do PP ou autocolante afim receberão prémios-surpresa e cópias do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida (ainda por publicar).
7) Para aumentar o moral dos sitiados, promover-se-ão sessões de récita do documento "As 80 Medidas que Eu Tinha Para Cumprir", de Luís Nobre Guedes. Serão severamente punidos os cidadãos que soltarem gargalhadas durante a enunciação de intenção de destruir habitações ilegais no Parque Natural da Arrábida!?!
8)Pequenas sessões teatrais serão ensaiadas com o Grupo Dramaturgo de Biólogos e Técnicos do ICN, que representarão a comédia dramática "Sem Luz, Água ou Cêntimos: Conservação ao Relento"
9) Para financiar o movimento de contestação, é fundamental promover a venda de "merchandising". Lápis com a figura delgada do ministro, réplicas da cimenteira de Souselas e da refinaria da Galp e "kits" com cursos intensivos de ambientalismo serão as prendas mais procuradas da estação. Nas prateleiras, encontrar-se-ão também gramáticas editadas por Nobre Guedes e resumidas para abranger apenas os pronomes da primeira pessoa do singular: eu, meu, me e afins...

Com tudo isto, garanto-vos, Sócrates não ousará entrar em Coimbra. Esmagado pela força das convicções, o líder socialista recuará para lá do Mondego e deixará a cidade para as suas limpas cimenteiras, aterros e toneladas de resíduos acumulados.
(pausa)
Informam-me que o ministro alegou que não disse literalmente o que nós ouvimos na rádio. Queiram considerar sem efeito esta linha estratégica.

domingo, fevereiro 06, 2005

Ao menos aqui há rumo


Caldeira Velha - São Miguel

(Açores) Suponho que quem vive no continente, como eu, sente frequentemente que o barco da conservação da natureza não leva ninguém ao leme. É um imenso "Holandês Voador" à deriva, sem rumo, guiado pelas correntes até chocar algures. Não se sabe quando, mas chocará.
Ora, acabo este périplo açoriano com a distinta sensação de que aqui, em pleno oceano Atlântico, as trapalhadas da República não perturbam tanto. É certo que ainda há um ministro da República para os Açores, espécie reciclada de governador manuelino e figura colonial muito invectivada. Mas talvez a distância geográfica tenha a vantagem de impermeabilizar os Açores. É longe, é remoto, o Ministério do Ambiente praticamente não mete o bedelho aqui e concede autonomia às secretarias regionais para gerir patrimónios naturais com parcimónia. Seguindo o mesmo raciocínio, as ONGS também aqui são mais engenhosas, contestam mas também propõem, refilam mas também agem. Dois exemplos:
1) Há três anos, estive na Caldeira Velha de São Miguel e fiquei desgostoso com o que então vi. Lixo acumulado em jeito de «bibelots» paisagísticos; caminhos sulcados pela chuva, que pareciam crateras lunares; uma imundice de bradar aos céus; e as estruturas de madeira, que marcavam os caminhos e delimitavam estruturas, há muito tinham sido predadas para a construção privada de galinheiros e obras afins. Em Agosto de 2004, as caldeiras foram classificadas como monumentos naturais, e todo o espaço de visita foi arranjado, limpo e barrado ao trânsito. Hoje, dá gosto ir ali. Já lá vão seis meses desde a inauguração e a estrutura permanece nobre e apetecível. Ora verifiquem da próxima vez que ali passarem.
2) Assisti praticamente ao nascimento de uma organização sem fins lucrativos - o Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores (OVGA). Desde 2001 até hoje é verdadeiramente notável a actividade do jovem OVGA e dos seus dirigentes. Edita livros (não percam o "Atlas Básico dos Açores", obra que embaraça a Madeira e faz o continente corar de vergonha ). Emite pareceres. Realiza investigação e torna-a acessível ao público (um milagre para quem se habituou a (des)esperar pelos relatórios do Instituto de Meteorologia). Mais importante ainda, construiu uma sede na Lagoa (São Miguel), espaço museológico sem bafio, obra moderna e pioneira, que se arrisca a fazer parte de todas a visitas turísticas à ilha.
Desde a réplica de um túnel lávico ao bar "Treme Treme", a sede do OVGA foi pensada para desmitificar os vulcões, para aproximar visitantes e populações locais do fenómeno que gerou o arquipélago e que continuará ciclicamente a fazer parte do quotidiano.
O conceito associado ao espaço é pioneiro. Imaginem um museu pensado para não aborrecer, pedagógico mas não exaustivo. E, clato, a paisagem também ajuda. De frente, a lava solidificada contextualiza a visita; por trás, dois cones vulcânicos recordam a génese da vulcanologia.
Por isso digo que há vantagens por estar longe de Lisboa. Há dias, um político reformado dizia-me, desapontado com a política centralista da capital, que nos territórios onde há calores de ananases, como Portugal continental, normalmente não se dá a civilização. Sendo assim, viva a neblina e a insularidade!

A Noite das Comadres

(Açores) Não conhecia a tradição e não fiquei com muita vontade de repetir a façanha. Na quinta-feira anterior ao Carnaval, os Açores vivem a noite das comadres. Meninas e senhoras de todas as idades engalanam-se e saem à rua para jantar sem os «homes».
Infelizmente, fui apanhado desprevenido pela efeméride, pelo que, quando dei por ela, já era tarde. Tudo - mas realmente tudo - estava lotado na ilha onde me encontrava. Restaurantes de luxo, restaurantes de hotel, «drives-in», tascas. Elas tomaram conta de tudo («Elas comem tudo e não deixam nada», diria a música de Sérgio Godinho). O ruído no interior de cada estabelecimento de restauração fez certamente disparar os sismógrafos da ilha.
Lá jantei, tarde obviamente, e com a desagradável sensação de estar a invadir o espaço que não era para mim e mirado de soslaio por quem sentia que aquele dia era só para comadres - descrição em que, naturalmente, não encaixo!
E o que pensam eles do fenómeno? Questão pertinente e muito séria. Pelo que pude apreciar, embora hesite em traçar conclusões sociológicas, eles... amuam. Ficam em casa a resmungar, a tratar dos filhos (se os há), a arrumar cozinhas (bem feito!) e a praguejar contra a libertinagem e a abertura de espíritos!
Diz um jornal local que desembarcaram numa das ilhas do grupo oriental 20 «strippers» masculinos para animar as comadres. Não vos conto o que ouvi de alguns pais, maridos e irmãos! Nenhum tinha imaginado que a igualdade de oportunidades pudesse ser levada até este extremo. E é ver, nestas ilhas que Mota Amaral quis "moralizar" e impor a santa e ímpia ética dos puros de espírito, comadres de todas as idades a gozar a liberdade recém-adquirida.
Da minha parte, digo-vos que, só por ver as carantonhas que eles fazem, incapazes de encontrar motivos racionais para justificar que elas não possam gozar os mesmos privilégios dos «homes», valeu a pena estar cá durante a noite das comadres. Mesmo jantando às dez da noite!

sábado, fevereiro 05, 2005

Energia, Energia!

(Açores, 5 de Fevereiro) Lembram-se do «Estebes», personagem inolvidável de Herman José? De vez em quando, o bonacheirão locutor virava-se para o público, mexia os dedos e pedia «energia, energia»! A imagem não me sai da cabeça enquanto folheio a intensa e activa imprensa regional.
Apesar de as distâncias serem hoje mais curtas, é evidente que a insularidade será sempre uma limitação da economia açoriana. O custo acrescido de transporte e a dispersão populacional por nove ilhas trava economias de escala e encarece praticamente todos os produtos. Há, porém, excepções. O mercado energético merece alguma reflexão.
Em mais nenhum ponto do território nacional, é possível fornecer cerca de um terço do consumo eléctrico doméstico e industrial por vias renóváveis. Em São Miguel, a ousada geotermia consegue-o. É certo que o valor percentual já foi mais alto, até já rondou 35% do consumo eléctrico da ilha, mas os micaelenses, como todos os portugueses, consomem cada vez mais energia eléctrica e a percentagem é hoje mais baixa. Mesmo assim, o parâmetro enunciado continua verdadeiro: São Miguel é o melhor exemplo de aplicação de energias renováveis que temos para mostrar ao mundo!
Pasmo por isso com a anunciada segunda fase de privatização da Electricidade dos Açores (EDA). Não a consigo conceber nem justificar. Aqui está um bem estratégico, que deveria servir de ferramenta económica para repor a justiça competitiva entre empresas locais e concorrentes nacionais. Tudo é mais caro na cadeia comercial de cada empresa micaelense (ou açoriana) - a água, o gás, as matérias-primas. Ora, a electricidade é gerada localmente por fonte renovável e é precisamente esse capital simbólico que o governo da República vai continuar a alienar.
Por aqui, dizem-me que o processo de venda nem sequer é muito preocupante. Na verdade, a electricidade nunca foi mais barata em São Miguel. Por um incrível e inexplicável processo de tabelação de tarifas, as centrais geotérmicas não cumprem a sua principal mais-valia: gerar electricidade mais barata para consumidores privados e comerciais.
Poderá o leitor argumentar que a geotermia tem custos de investigação e manutenção e que porventura a EDA terá as contas no "vermelho". O argumento é pertinente, mas é prontamente desmentido por notícias recentes. No "Açoriano Oriental" de anteontem, escreve-se que a EDA apresentou resultados líquidos de 7,4 milhões de euros, mais de 100% face à última demonstração de resultados. Caramba! Isto não são sinais de um negócio em regressão.
Neste cenário, vale a pena lembrar o «Estebes». Energia, pessoal, energia para alumiar os centros de decisão do Governo da República!

Tanta Civilização Também Não!

(Açores, 4 de Fevereiro) Conto a história certo de que, com esta narrativa, fujo um pouco às premissas do blog, mas, afinal, como se queixava um colega na semana passada, neste empreendimento mediático, eu sou proprietário, editor e ditador vitalício. Faço a gestão do blog sem mandato, representatividade, contraditório ou sequer provedor dos leitores. Sou o Mobutu do Ecosfera!
Sexta-feira de manhã. Com reuniões agendadas apenas para o fim da manhã, lanço-me à estrada, na belíssima marginal de Ponta Delgada. Afinal, a meia maratona de Lisboa está à porta e exige preparação adicional. Pensei, orgulhoso, que ao trocar o sinuoso Estádio Universitário de Lisboa (onde evito buracos, lombas e troncos a cada passada e corro ao lado da poluída Segunda Circular de Lisboa) pela calma marginal micaelense melhoraria as condições de treino. Puro engano! Enquanto percorri cerca de seis quilómetros à beira-mar, devo ter inalado mais dióxido de carbono do que em Lisboa. A poluição sonora já faz parte também da tradição cultural da ilha e condutor que se preza buzina a velhinhas, escuteiros e carrinhos de bebé. Juntemos-lhes os ruidosos carros de campanha e a sua fanfarra interminável. Visualmente, fui agredido até à exaustão pelos cartazes repetidos de Santana, Sócrates e Mota Amaral!
Quanto à brisa marítima, narrada com tanta eloquência por Nemésio e Natália Correia, esteve... um pouco forte de mais. Desde a hora de almoço que espirro abundantemente graças à suave maresia. No meio de tudo isto, há uma atenuante (há sempre...): já tenho desculpa para justificar um eventual mau resultado na meia maratona de Março! Ainda não será desta que estilhaço o recorde da prova!

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

Quem Espera Sempre Alcança

(Açores, 3 de Fevereiro) O vulcanismo açoriano merece ser apreciado e estudado. Passada a fase do medo respeitoso e da superstição, urge integrar os vulcões do arquipélago na sua dimensão real, aceitando-os, desmitificando-os e, claro está, protegendo-os.
Ora, por solicitação do Governo Regional, datada já de 1998, um grupo de investigadores terminou há não muito tempo o trabalho hercúleo de inventariação das grutas açorianas. Ao longo de sete anos de trabalho, foram identificadas mais de duas centenas e meia de cavidades vulcânicas (metade das quais concentradas na fantástica ilha do Pico). Ironicamente, até Janeiro deste ano, apenas três estavam classificadas e protegidas regionalmente (juntamente com a pedreira do Campo, em Santa Maria)
- O algar do Carvão, na Terceira, é uma estrutura grandiosa, trabalhada e melhorada à mão e que impressiona o visitante, reduzindo-o a uma escala ínfima;
- A gruta das Torres, no Pico, é um prolongado túnel, quase lúgubre, que mantém o traçado original no seu estado quase prístino e que garante ao turista a sensação perturbadora de percorrer o mesmo caminho que a lava já trilhou em direcção ao mar. Sem interferências, nem efeitos cénicos;
- A furna do Enxofre, na Graciosa, única no mundo, apresenta o dramatismo próprio de uma estrutura que pode matar o visitante (devido às emanações gasosas), mas que vale muito mais do que o folclore dramático dessa raridade.
Até ao ano passado, repito, estas eram as grutas classificadas de um leque de duas centenas e meia. Durante anos, investigadores e ONG solicitaram a classificação da gruta do Carvão, em São Miguel, uma estrutura de três túneis lávicos, que viaja por baixo de Ponta Delgada (imaginem uma gruta subterrânea, com acesso urbano!) e que tem a particularidade de contar também parte da história da colonização.
Alguns trechos foram utilizados como adega; outros foram bloqueados por sedimentos, por desmoronamentos e por construções humanas. Sabe-se, pelas crónicas de Gaspar Frutuoso, no século XVI, que a gruta chegaria ao mar, pelo que se estimam que os 1.600m já identificados correspondam apenas a um terço da dimensão real.
Em meados de Janeiro deste ano, um dos três túneis foi finalmente classificado pela secretaria regional do Ambiente. Durante anos esquecida e vandalizada (o lixo acumulado numa das entradas é uma vergonha para a cidade e para o arquipélago), a gruta do Carvão foi agora classificada pela mão da nova secretária regional, Ana Paula Lopes (curiosamente, uma dirigente política com passado ambientalista). Há portanto mais um geomonumento regional nos Açores que merece uma visita, mas a lentidão do processo e os anticorpos que o travaram durante décadas merecem alguma reflexão.
Como o poeta Wallace Stevens escreveu, "Depois do 'não' final, vem sempre um 'sim'. E é desse 'sim' que o futuro do mundo depende!"
Uma lição para outras lutas ambientalistas: vale sempre a pena esperar pelo "sim" que pode ficar no fundo de uma longa lista de "nãos".

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Património da Humanidade... porquê?

Ponta Delgada (2 de Fevereiro) - Admito que a premissa é polémica, mas creio que o fenómeno de classificação de património da humanidade se vulgarizou e, por isso, perdeu parcialmente o crédito. Em Portugal, há treze monumentos, locais ou regiões já classificados pela UNESCO. Todos os anos, há pontapé de meia noite entre autarcas, governo central, organizações não governamentais e outros grupos para decidir qual a nova candidatura nacional a este estauto. Isto porque países como o nosso, já beneficiados largamente pelos favores da UNESCO, já só podem apresentar uma candidatura anual.
Por motivos profissionais, acompanhei de perto o processo de candidatura da paisagem vinhateira da ilha do Pico e devo começar por dizer que nada me move contra este ícone picaroto. Admito que os maroiços são fantásticas estruturas de pedra, erigidas à custa de força de braços (e provavelmente de muita chicotada) e valem como testemunho da capacidade de domesticação da paisagem. Reconheço também que o responsável pelo «dossier», o arquitecto Nuno Lopes, é porventura a pessoa que melhor compreende em Portugal o funcionamento da UNESCO, as suas exigências, os seus parâmetros. Quando o Governo Regional o recrutou, Nuno Lopes tinha no peito as medalhas de honra recolhidas pela fantástica operação que foi a gestão e transformação do centro histórico de Évora, também ele património da Humanidade.
As minhas críticas dirigem-se muito mais para a utilidade e oportunidade da classificação. Há cerca de dois anos, em pleno centro de Madalena, escutei quase todos os transeuntes dizerem o mesmo: «A candidatura, se aprovada, vai prejudicar-nos. Não via trazer turismo, nem vai gerar apoio financeiro. Vai simplesmente classificar áreas e terrenos, nos quais não poderemos mexer mais!»
É irónico que seja este o pulsar popular. Sabe-se que a UNESCO não concede (e faz muito bem) apoio financeiro directo aos locais protegidos. Ao invés, a organização estabelece critérios, vistoria os locais e concede esta aparente mais-valia turística que é a classificação universal. Duvido seriamente queo Pico já tenha tido, ou venha a ter, impactes directos em virtude da classificação. Ela não é suficientemente apelativa para justificar as hordas de turistas. E, se me permitem uma opinião pessoal, também não é isso que salvaria a frágil economia do Pico, cada vez mais despovoado, cada vez mais envelhecido, cada vez mais esquecido.
Por outro lado, custa-me também a aceitar a oportunidade destas classificações. No ano passado, um congressista queniano queixava-se de que mais de 70% do património protegido se encontrava nos Estados Unidos, na Europa ocidental, na Oceânia e no Japão/Coreia. Que imoralidade é esta? Pela própria perversão do sistema de votação, os países mais «industrializados» acabam por aceitar as candidaturas dos parceiros e negam o apoio técnico - muito mais necessário - a África, a Ásia e à América do Sul.
Há alguns anos, a situação inverteu-se ao ponto de as votações actuais serem decididas de forma muito mais internacional (em oposição a europeísta). Em virtude disso, confesso que sempre vaticinei um futuro negro para a candidatura do Pico. Não estava sozinho nesse receio: um responsável português do gabinete local da UNESCO assegurou-me dias antes que o Pico perderia o processo (felizmente, não publiquei o aparente exclusivo!?!) Que mérito especial tinha a paisagem vinhateira sobre um pedaço de savana sul-africana ou uma floresta tropical gabonesa? Por que motivo a lista de locais classificados (quase 800) apresenta uma clara predominância de paisagens culturais (com traço humano) sobre as paisagens naturais? Atrevo-me a dizer que tal discrepância se deve apenas ao facto de as primeiras predominarem no «mundo civilizado», ao contrário do «mundo bárbaro»!
Com esta longa introdução, não quero deixar de mencionar que, à primeira vista, o Pico não mostra nada hoje que não tivesse há dez anos. A actividade turística divide-se hoje entre as escaladas e caminhadas e o famoso «whale watching». Ao que me dizem, a gruta das Torres, impressionante cavidade vulcânica que já visitei, estará também aberta ao público durante 2005. Estas, sim, são as oportunidaes turísticas da ilha do Pico. O resto, desculpem que o diga, é... paisagem!

Do Continente aos Açores


Até sexta-feira, estarei nos Açores, pelo que a actualização do blog não está garantida. Se encontrar rede para ligar o computador, escreverei "posts" como... enviado-especial do Ecosfera. Caso contrário, os meus estimados e muito pacientes leitores terão de esperar mais alguns dias. As minhas desculpas.
Em jeito de apresentação de telenovela, não percam as cenas dos próximos capítulos!