sexta-feira, novembro 21, 2014

Coragem e cobardia em versão real



A estupenda reportagem que Ronaldo Ribeiro e Maurício de Paiva assinam na edição deste mês da NationalGeographic presta tributo ao esforço e ousadia das autoridades e cientistas brasileiros que decidiram submeter os restos mortais do rei Dom Pedro IV (Dom Pedro I do Brasil) ao escrutínio forense. Da investigação, já resultou uma tese de mestrado de Valdirene Ambiel, que estuda agora com mais profundidade os resultados no âmbito do seu doutoramento. Como boa cientista que é, Valdirene partiu para a investigação sem preconceitos nem ideias feitas. Os resultados falariam por si, sem mitos nem carga ideológica. E a reportagem reflecte as virtudes e defeitos do primeiro imperador do Brasil, sem que com isso os alicerces da nação brasileira tenham baloiçado.
Uma das (des)vantagens de trabalhar nesta revista há treze anos é a memória acumulada, uma espécie de mochila que nunca sai das costas. Enquanto lia o relato do Ronaldo sobre a investigação em São Paulo, a minha mente flutuou momentaneamente até ao ano de 2006 e à cidade de Coimbra. Tínhamos então um acordo com a mais extraordinária antropóloga forense da academia portuguesa, a professora Eugénia Cunha. Após meses de diligências administrativas e de negociações dolorosas para obter financiamento, Eugénia Cunha teve finalmente autorização para abrir o túmulo de Dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, e conduzir uma moderna investigação forense. O túmulo não era aberto desde o reinado de Dom Miguel, no século XIX, e Eugénia Cunha, como Valdirene Ambiel, não excluía nenhum cenário. Seria o rei alto como sugeriam as lendas ou baixo para os padrões actuais? Poderiam a sua dentição e constituição óssea revelar pistas sobre a sua alimentação e os seus hábitos de vida? Teria mesmo sido ferido em combate e guardaria o seu esqueleto provas dessas lesões? Quais seriam as marcas que 45 anos de reinado teriam deixado no corpo do velho monarca? Mais importante do que qualquer outra questão: teríamos finalmente provas de que as urnas da Igreja do Mosteiro de Santa Cruz guardavam efectivamente os esqueletos de Dom Afonso Henriques e de Dona Mafalda? É que nem isso está garantido.
Muitas coisas correram mal naquela semana de Julho de 2006. Montou-se um circo mediático ávido de informação e que, numa nota muito pessoal, ameaçava romper a nossa ideia de exclusivo. Um jornal de referência fez queixa ao presidente do IPPAR de que era inaceitável conceder "acesso exclusivo a uma publicação estrangeira" (palavra!) que, ainda por cima, só publicaria a reportagem meses depois. O nosso repórter no local, o António Luís Campos, não se atemorizou e recuou um passo para captar em filme a agitação mediática em torno de um projecto forense. Todos os meios reunidos pela antropóloga estavam a postos para a abertura do túmulo às 17 horas.
Entretanto, chegou o balde de água fria. A tutela voltou atrás e proibiu a intervenção. O IPPAR disse que nunca autorizara, mas nós vimos um documento formal de autorização. Sussurrava-se que a ministra Isabel Pires de Lima ficara pessoalmente ofendida por não ter sido convidada. Os argumentos foram tontos e precipitados. Os especialistas da Universidade de Granada que tinham participado na abertura do "túmulo de Colombo" nem queriam acreditar na carga ideológica daquele dia. A máquina burocrática defendeu-se com burocracia e ficámos todos sem conhecer uma página importante da nossa história.
Imagem inédita de António Luís Campos. A antropóloga Eugénia Cunha desdobra-se em telefonemas depois de tomar conhecimento da recusa de abertura do túmulo.

Nestes oito anos, Eugénia Cunha já falou várias vezes com classe e elegância sobre a recusa. Catalogou-a como um acto de medo, de receio pelas respostas que estejam contidas na urna de Coimbra – receio até de que tenhamos prestado tributo a um mito que, vistas bem as coisas, era tão humano como qualquer um de nós.
Cairia o regime se se descobrisse que o primeiro rei de Portugal tinha a altura do Lionel Messi, que coxeava ou que morrera de uma doença moralmente censurável? No Ministério da Cultura, pensou-se que sim.
Portugal caminha para o seu 900.º aniversário, mas ainda olha para páginas da sua história como um adulto que censura a leitura de passagens de um livro aos seus cidadãos com medo de que ele contenha cenas moralmente censuráveis. Enquanto não chega o glorioso dia em que poderemos saber mais sobre o primeiro rei de Portugal, deliciem-se com o que a ciência brasileira descobriu sobre o primeiro imperador tropical!

sábado, novembro 08, 2014

Um crime nunca solucionado


Rebelo Carvalheira, de camisola clara, em primeiro plano.
Fotografia retirada daqui.


Calhou passar esta semana na Rua Carlos Mardel, no coração de Lisboa, a meia-dúzia de passos da Alameda Dom Afonso Henriques, da Rua Guerra Junqueiro e das lojas sumptuosas onde o risco de síncope aumenta à medida que nos informam dos preços em vigor. Nesta transversal pacata, contudo, só há comércio tradicional. Pequenos cafés, cabeleireiros, farmácias, uma resistente loja de ferragens – um espelho do comércio repetitivo e sofrido de Lisboa. E, no entanto, as ruas guardam memórias durante gerações. Sobretudo dos traumas.
Colegas de jornais de outros tempos contaram-me que nesta rua morreu um dos nossos. Alguns nunca mais conseguiram passar por aqui, evitando-a discretamente, sem uma razão palpável. Outros nunca evitaram uma olhadela para o número 117, para a fachada, agora mais gasta, e para as janelas onde decerto vivem agora famílias mais felizes. Foi aqui que morreu brutalmente, em Junho de 1983, Rebelo Carvalheira, o “Recas” como a equipa de “A Bola” o conhecia. E isso ficou gravado na memória dos jornalistas da época.
Nascido Em Angola em Nine, trabalhara no Banco Comercial de Angola antes de a seta do cupido jornalístico o viciar para sempre. Trabalhou em jornais angolanos – no “ABC” que revelara Roby Amorim, e no “Província de Angola”, onde chegou a chefe de redacção depois da Revolução de 1974. Foi correspondente em Luanda de “A Bola” e, um dia, foi convidado a fazer parte da equipa de Vítor Santos na Travessa da Queimada. De adjectivo reticente, era um jornalista tarimbado, daqueles que não falhavam serviços, que cumpriam sempre as missões. No Sporting, João Rocha respeitava-o e, normalmente, guardava para ele e para “A Bola” alguma informação exclusiva – a pequena notícia de que se fazem os jornais.
Na madrugada do dia 3 de Junho, sexta-feira, Rebelo Carvalheira despediu-se dos colegas no jornal à uma hora da madrugada. Carlos Alberto Alves, colega em “A Bola”, conta (aqui) que estranhou o silêncio, atípico nele. «Achei-o muito esquisito no jornal, pouco falava, ao invés do que era habitual
Carvalheira folgava no sábado, dia 4, e, para domingo, tinha-lhe sido atribuída a reportagem de um jogo do Boavista com o Salgueiros no Estádio do Bessa. Planeava seguir para Famalicão na manhã seguinte, onde morava a mãe. Mas nunca lá chegaria.
No Bessa, o repórter Simões Lopes foi o primeiro a notar a ausência do colega. Descansou o espírito, pensando que talvez Carvalheira tivesse escolhido outro ponto do estádio para ver o jogo. Debalde. O jogo começou e acabou e, do repórter, não havia sinal. Não era habitual no Rebelo Carvalheira. Informou-se a chefia de redacção em Lisboa na noite de domingo e Vítor Santos temeu o pior. Esperou ainda essa madrugada, «sem conseguir pregar olho», como contou a Neves de Sousa do “Diário de Lisboa”, mas, na manhã seguinte (segunda-feira, dia 6), face ao continuado silêncio do colaborador, informou a polícia.
Acompanhada pelo marido da telefonista de “A Bola”, velho amigo do jornalista, e por um sobrinho de Carvalheira, a equipa policial arrombou a porta do apartamento e encontrou um quadro dantesco. O jornalista jazia, sem vida, assassinado. Fora agredido com uma garrafa de vidro no crânio e o resto do corpo mostrava sinais de agressões continuadas. A perícia posterior apurou que o homicídio ocorrera provavelmente na própria sexta-feira. Os salpicos de sangue indiciavam uma luta feroz pela sobrevivência.
Férteis em boatos e semi-verdades, as redacções exploraram várias hipóteses. O apartamento já fora assaltado no passado. Teria Rebelo Carvalheira entrado à hora errada em casa? O seu passado em Angola foi esmiuçado: sem pudor, houve quem associasse o crime ao tráfico de diamantes e a informação que o jornalista guardaria desde os tempos de Luanda. O seu estilo de vida solitário (o eufemismo da época), sem companheira, foi também questionado, até porque o corpo fora encontrado seminu. Na rua, entretanto, desaparecera o seu Honda Civic (de matrícula FR-64-04), bem como alguns objectos pessoais.
Em 31 anos, nunca se descobriu a identidade do assassino de Rebelo Carvalheira, morto aos 47 anos, numa rua pacata de Lisboa.