Olha-se para a capa com um
arrepio. Os tons negros do fundo e a expressão pesarosa do biografado sugerem
uma homenagem póstuma, daquelas de que somos pródigos. Credo!
Hesita-se um segundo.
Folheia-se.
Causam estranheza os dois
prefácios — um do general Eanes e outro de Fernando Dacosta. (Vem à memória a
tara de T.S. Elliot com os prefácios). Eanes escreve com uma dívida de gratidão
a Letria em sete páginas bonitas, mas de execução militar – de tema em tema, como uma barragem de artilharia. Dacosta é igual a si próprio: seria
criativo mesmo se só tivesse um post-it.
Até a introdução da autora
produz uma sensação invulgar. Dá ideia de que as memórias de Joaquim Letria, em
formato de entrevista, são publicadas... apesar de Letria. Que o jornalista
acedeu a contragosto. E, no entanto, aqueles, como eu, que decidem comprar Joaquim
Letria, Sem Papas na Língua (Dora Santos Rosa, Âncora, 2014) têm pela frente uma
das melhores reflexões sobre o jornalismo das décadas de 1960 a 1980 que tive o
prazer de ler.
Com frequência, senti que o
livro-entrevista continua, com notável coesão, o trilho aberto por essa obra
extraordinária que é Jornalismo: do Ofício à Profissão (Fernando Correia e Carla
Baptista, Caminho, 2007), investigação sobre a ruptura profunda produzida nas
redacções do final da década de 1950 com a admissão de jornalistas com background
universitário
e formação política.
Letria parece ganhar alento depois das primeiras perguntas. Percebe que Dora Santos Rosa estudou a sua
carreira, sabe do que fala. Com algumas provocações, torna-se bonacheirão e
partilha sem reservas. Nalguns casos, como no relato sobre Moisés Tshombé, vai
obrigar-me a reescrever, mesmo que ao de leve, um episódio que aqui deixei há
alguns meses (aqui). Noutros, notoriamente exagera (posso desmentir, por conhecimento directo, a alegação de que os livros, no Estado Novo, não eram revistos pela Censura; ou que Jorge de Brito tenha sido detido em 1975 sem «ser acusado de coisa nenhuma»). E é altamente controversa a sugestão de que osjornalistas detidos pela PIDE foram-no sempre por actividade política clandestina e não por actividades jornalísticas.
Como Letria muito bem diz, percebeu que estava na fase de fazer e
dizer o que lhe viesse ao goto, como os malucos. O resultado é uma leitura que
flui sem buracos na estrada, como uma única grande conversa.
O jornalista partilha notas
preciosas sobre o ambiente do Diário de Lisboa, com destaque para Mário
Neves (curiosamente, quase não refere Norberto Lopes). Recupera uma dimensão
esquecida de Vítor Direito (pelo menos, para mim, que cresci numa casa onde o seu «De Vez em Quando» no Diário de Lisboa e a
sua «Visão Direita» no República eram a primeira rubrica lida todos os dias e onde a sua
transformação, ou monstrificação, no «Direito do Correio da Manhã» foi sentida como uma
traição). Aborda, sem rancores, a saga da RTP. A fundação de O Jornal, com uma traição à mistura. O
Tal & Qual,
de boa ou má memória, consoante as semanas (nunca esqueço que o mesmo semanário que revelou a Dona Branca ajustou contas com a direcção de programas da RTP,
lançando indecentemente Maria Elisa para a fogueira... Ou para a praia. Enfim,
quem se lembra dessa primeira página de 1983 sabe do que falo).
Letria foi Letria:
recordou sem papas na língua, contou histórias sem a tradicional discrição
portuguesa (com uma excepção, pois não nomeia directamente o judas que motivou
a sua saída de O Jornal). Apontou o dedo à instrumentalização política da RTP. Explicou o sucesso original de Tal & Qual com uma fórmula diabolicamente simples: num universo de imprensa estatizada, o jornal comprava histórias a repórteres que não as podiam publicar nos seus órgãos de comunicação. Divertiu-me. No
seu relato minucioso, há agora pistas para perceber melhor a evolução do
jornalismo português.
Faço votos para
que Baptista-Bastos, Fernando Dacosta, Joaquim Furtado, Mário Zambujal e
Adelino Gomes vão preparando as suas notas. Meus senhores, chegou a vossa vez!