Fragmento da colecção do Museu Regional de Beja. Imagem recolhida em "Ártemis Efésia na Lusitânia", de Graça Cravinho |
Tudo começou com uma descoberta fortuita em
Fevereiro de 1943. Na herdade do engenheiro Mira Galvão em Beringel, perto de
Beja, encontrou-se por acidente durante trabalhos agrícolas o fragmento de uma
estátua nobre. O Diário de Lisboa reportou
o achado e a oferta do mesmo ao arqueólogo Abel Viana, um homem do Minho há
muito radicado no Alentejo.
Sagaz, Viana intuiu que se trataria de uma
representação de Vénus Afrodite e assegurou a peça para o Museu Regional de
Beja. Conhecedor da natureza humana, assegurou também que o engenheiro
florestal (e futuro deputado na Assembleia Nacional) receberia igualmente
crédito pelo acto de filantropia.
Os anos avançaram. No Museu Nacional de
Arqueologia, Manuel Heleno, uma das figuras mais complexas da ciência
portuguesa do século XX, tomou posse desta disciplina como um governador
provincial romano. Em breve, criaria anticorpos de Norte a Sul, como a
correspondência entre Abel Viana e O. da Veiga Ferreira (publicada por João
Luís Cardoso) eloquentemente demonstra. Viana designava Heleno
depreciativamente como “o Grego”, juntando normalmente outros qualificativos
como "o traste" ou "o invejoso do Heleno"
Beringel voltou ao mapa da arqueologia
portuguesa uma década depois. Em 1953, Abel Viana voltou a ser alertado para
uma descoberta fortuita numa herdade de Beringel. Tratava-se de uma ara votiva
dedicada a Apolo e, desta feita, o artefacto nem estava enterrado: «Se o
invejoso do Grego adivinhasse que estava a um canto de um lagar de azeite em
reconstrução, que nem porta tinha…», brincou.
Repetiu o processo. Lisonjeou o filantropo (ao
tempo, vice-presidente da autarquia de Beja) e levou a ara para o Museu. Em
carta para O. da Veiga Ferreira datada de 1 de Janeiro de 1954, deixou estes
pensamentos menos nobres sobre os motivos para o seu contentamento: «Descobri
uma coisa raríssima, uma importantíssima peça arqueológica. Mas não vai para
Belém, não senhor! Se aquele idiota não procedesse da maneira infame de que tem
usado para comigo, já lá teria muitíssima coisa. Assim, não chupa nada. O
homenzinho vai ficar sem pinga de sangue... Mas há-de gramar o desapontamento.»
Lembrei-me desta história na semana em curso
ao assistir a uma luta de demarcação sobre quem tem direito a investigar uma
certa área. Ao investigador reprimido, recomendo uma resposta semelhante à que
Abel Viana proferiu então: «Que diabo quer esse homem? Então ninguém em
Portugal pode estudar arqueologia? Teremos todos que andar a rastejar perante o
cavalheiro? Tenho a certeza de que o aleijo!»
Carta inserida em "Correspondência Anotada de Abel Viana a O. da Veiga Ferreira 1947-1964", de João Luís Cardoso, Oeiras, 2001/2002 |
3 comentários:
Três anos depois (em 1947) haveria outro achado arqueológico muito importante no Alentejo - a descoberta dos mosaicos romanos de Torre Palma. Mas esses Manuel Heleno não deixou escapar e estão hoje nas reservas do Museu Nacional de Arqueologia...
Nos 70 anos da descoberta publicámos um pequeno texto sobre esse achado. Se tiver curiosidade em ler está aqui: https://coisasinfungiveis.wordpress.com/2017/05/29/apareceu-monforte-mosaico-romano-com-figuras-ha-setenta-anos/
Muito obrigado! Vou ler com muito interesse.
O título do meu pequeno artigo/informação que refere, que está publicado online no Academia.edu, dá bem a entender que esse fragmento escultórico não pertenceria a uma estátua de Vénus, MAS SIM A UMA ESTÁTUA DE ÁRTEMIS EFÉSIA!
Aliás, acho inconcebível como arqueólogos credenciados a identificaram com Vénus... Só mesmo quem não sabe nada de Iconografia Clássica é que comete erros desses...
Agradeço que faça a devida correcção neste blog.
Obrigada.
Graça Cravinho
Enviar um comentário