Esta semana, em jantar animado com alguns colegas, um deles lembrou um dos mais infames escândalos jornalísticos modernos – a publicação dos (falsos) diários de Hitler.
No final da década de 1970, uma das vedetas da revista Stern, fascinada com a história do nazismo e proprietário de uma pequena colecção de memorabilia do III Reich, foi contactado por um alegado general da RDA. A fonte dizia ter diários redigidos pelo punho de Hitler, material perdido após a queda de um avião em Dresden em 1945, semanas antes do fim da guerra. Os diários – dizia o “general” – tinham sido guardados num celeiro e agora, com um incentivo para subornar os guardas na fronteira, poderiam ser comprados pela revista.
O que se seguiu nos três anos seguintes foi a receita de como não gerir um “exclusivo”. A revista decidiu que quanto menos pessoas soubessem, melhor (como resultado, o maior especialista em Hitler na redacção não foi consultado); decidiu-se fazer apenas peritagem à caligrafia e não exames químicos à tinta e ao papel, que teriam de imediato provado a impossibilidade da autoria. Os exemplares usados para a comparação da caligrafia provinham da colecção de memorabilia do jornalista e também tinham sido adquiridos ao falsário. A caligrafia, de facto, correspondia. Mas não era de Hitler.
Nas semanas que antecederam a publicação, em Abril de 1983, a Stern tentou vender o exclusivo a Rupert Murdoch, ao Paris-Match, à Newsweek e ao Grupo Zeta. Cada grupo editorial trouxe os seus peritos…
Como fonte, o falsário usara uma obra em dois volumes, com todos os discursos de Hitler, de forma a poder situar no tempo cada informação. Polvilhava algumas datas com comentários picantes (“a Eva Braun diz que tenho mau hálito”, “razão tem o Stalin que despediu e matou toda a cúpula militar”).
Como acontece tantas vezes em ciência, o primeiro especialista guiou-se – por azar –pela obra de referência consultada pelo falsário e validou os diários. Os seguintes seguiram a matilha. Alguns apostaram a reputação na veracidade. Outros validaram e recusaram a autoria hitleriana em 48 horas. Os dois que colocaram dúvidas e reticências foram ignorados.
A Stern foi em frente. Já gastara 9 milhões de marcos na compra de 60 diários (o falsário chegou a produzir um novo diario em três dias para satisfazer a procura) e não podia recuar. Hitler vende e um “furo” é um doce irrecusável numa redacção, tolhendo o juízo e o bom senso.
A edição infame foi publicada na última semana de Abril de 1983. Os parceiros internacionais também publicaram. E três dias depois tornou-se dolorosamente óbvio que se tratara de uma fraude. Prendeu-se o falsário e o jornalista que negociara a venda (e que arrecadara comissões). A Stern foi humilhada. Em Inglaterra, curiosamente, mesmo sabendo que publicara uma peça de ficção, Murdoch não perdeu dinheiro — vendeu uma barbaridade de cópias e ainda recebeu o dinheiro que pagara à Stern.
Hoje, os diários são peças de museu. Ajudam a explicar o fascínio da cultura moderna com a figura de Hitler.
Lembrei-me disto quando um colega de uma revista de História me disse que nada vende melhor na capa do que Hitler ou Salazar.
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