«Já lhe contei aquela vez em que…»
As nossas conversas começavam sempre assim. O Luís Alberto Ferreira sabia que eu me pelo por uma boa história e ele tinha-as com fartura, fruto de uma das mais longevas carreiras do jornalismo português. Tinha uma generosidade sem limites. Partilhava pelo gosto de partilhar. E era um contador de histórias insuperável.
«Já lhe contei aquela vez em que Marcelo Caetano me chamou filho da puta?» Ligou-me no dia a seguir ao Natal para me contar isto. E desbobinava pormenores sobre o dia de 1971 em que o Presidente do Conselho cuidara que estaria a sós com o embaixador americano em Lisboa e fora surpreendido por uma equipa da RTP – «mais oficial do que nós não havia» – à porta do local secreto de encontro por indiscrição de Manuel Maria Múrias. Irritado, Caetano, o catedrático, o pai do constitucionalismo, soltara o vernáculo. E o Luís Alberto ria, com aquela voz rouca.
Cultivava as palavras e fugia às escolhas óbvias como os matadores de Córdova que aprendera a estimar nas praças de touros do país vizinho. A reportagem escrita, para ele, implicava a recusa do atalho e o culto da expressão erudita. Ligou-me uma vez só para me dizer que tinha gostado muito da maneira como descrevi Jules Sauerwein: «um homem humilhado por não ter mais altura, que empertigava a cabeça para não perder um único centímetro da sua estatura». «Essa foi de antologia, meu caro Gonçalo.» E ria.
Fez quase tudo no jornalismo. Chegou muito cedo a Lisboa, vindo de Luanda. «Ainda a cheirar a navio», tentou a sorte em A Bola, onde chegou a assinar textos apenas como Alberto Ferreira, mas percebeu que, naquele contexto, no fim dos anos 1950, o jornal já estava servido com a nata dos repórteres do país. Fez o mais difícil: foi para Espanha. Durante uma década, viveu entre Sevilha, Madrid e Barcelona, familiarizando-se com a fina-flor da tauromaquia, do futebol, da ciência e dos jornais.
«Já lhe contei aquela vez em que entrevistei o cirurgião Gregório Marañon?» Tremera como varas verdes perante o grande homem da medicina espanhola e fora Marañon, achando graça ao miúdo mulato, que lhe pusera a mão sobre o ombro e lhe dissera: «Começa quando estiveres preparado.» Depois disso, «nunca mais tive medo de entrevistar ninguém.»
«Já lhe contei que estava no gabinete de Santiago Bernabéu quando a assistente dele entrou para alertar que o avião que transportava a equipa do Manchester United caíra?» Mais uma história. Mais uma aventura. Adorava Espanha e a abertura hispânica para pensar o mundo e tinha honra em ter desbravado caminho, encontrando nos jornais espanhóis o espaço que lhe faltara aqui. Por isso também sentiu, com uma ponta de orgulho, o dia em que lhe comuniquei que seguia as pisadas dele e tentaria a minha sorte na imprensa do país vizinho. «Meu caro Gonçalo, não se esqueça de me contar as suas aventuras nas inesquecíveis ramblas da Cidade Condal!» Tornou-se a senha das conversas dos últimos três anos. «Conte, conte, como está a mudar a face da Barcelona!» E eu corava.
Em textos já publicados, relatei vários episódios que lhe aconteceram. Tenho para aqui, em discos externos, horas a fio de gravações sobre tudo e nada.
A primeira entrevista em Portugal com Alfredo di Stefano e o dia em que se atreveu a aconselhar o monstro sagrado do futebol.
O dia em que, despeitado com a pressão exercida pelo director de uma corrida de touros junto da administração da RTP, fez a locução tauromáquica em silêncio – 120 minutos sem dizer uma palavra a ponto de os espectadores ligarem para a 5 de Outubro perguntando se o problema estaria no seu receptor.
A entrevista com o subcomandante Marcos, líder dos zapatistas, no México, depois de uma saga na montanha para fugir às tropas do governo.
O texto provocatório contra Boavida Portugal, director do Mundo Desportivo, que lhe valeu o cancelamento da colaboração com o jornal.
As aventuras com Kapuscinski em Angola, guiando o prestigiado jornalista por terrenos minados – literal e figurativamente – do novo regime.
A proibição de frequentar o balneário do Estádio das Antas e a resposta na ponta da língua: «Mas eu algum dia tomei banho no vosso balneário?»
Os galanteios e os piropos às mulheres bonitas.
«Já lhe contei aquela vez em que estive a um dia de entrevistar Saddam Hussein e disseram-me que não valia a pena?»
Nas conversas, não faltavam invariavelmente os filhos da puta com que também teve de lidar em jornais e televisões. Com nomes e currículos.
Em 1974, Luís Alberto Ferreira assinou uma série de 13 crónicas no jornal A Bola sobre racismo no desporto angolano. Chamou-lhes «futebol a preto e branco» e são monumentos à crónica. Ofereci-me há uns anos para as transcrever e passá-las ao nosso editor comum, na esperança de que os textos ganhassem uma perenidade bem merecida. Riu-se. «É prosa velha, mais gasta do que os pneumáticos de um camião de longo curso.» Não era. Não é.
A partir de agora, cabe-me a mim – e a um punhado de outros – falar do Luís Alberto Ferreira, um jornalista que me deu a honra de ser meu amigo.
«Já vos contei aquela vez em que ele…»
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