domingo, setembro 26, 2021

A mosca Peter Pan


 

        Era perfeita de mais. Os entomólogos chamavam-lhe a mosca Peter Pan porque 38 milhões de anos de evolução pareciam não ter afectado a morfologia do insecto. Até que se descobriu que era uma fraude da época victoriana, embora já constasse em todas as bíblias da entomologia. 
    
        É uma pena que o Museu de História Natural de Londres já não tenha em exposição a peça que, durante sete décadas, foi uma estrela da colecção de referência de insectos. A mosca Fannia scalaris, capturada em âmbar, chegara ao museu londrino com a indicação de que provinha do Báltico Foi estudada e valorizada por ser, de longe, o exemplar mais antigo conhecido da família Muscidae, a das moscas domésticas. Era apontada como uma irregularidade – um exemplo de um organismo que permanecera quase idêntico ao longo do seu percurso evolutivo, sem deixar descendência e adquirindo características que os membros da sua família tardaram milhões de anos em adquirir. Era o Peter Pan das moscas, eternamente jovem. 

    Certo dia de 1993, o estudante Andrew Ross examinou-a ao microscópio. Apercebeu-se então de algo que nunca ninguém notara: uma linha de fractura corria ao longo de toda a peça de âmbar. Compreendeu que tinha em mãos uma fraude: no século XIX, uma peça genuína de âmbar do Báltico fora cortada ao meio por um ourives, que depois escavara um pequeno orifício para depositar a mosca. Infiltrou a mosca e preencheu a cavidade com resina. A fase derradeira da burla foi colar de novo o âmbar, de forma suficientemente credível para enganar um dos muitos coleccionadores daquela época. 

    Não se sabe quem comprou a peça, mas poderá ter sido o entomólogo alemão H.F. Loew, que a referiu pela primeira vez em 1850. Em 1922, o Museu de História Natural comprou trezentos espécimes do espólio de Loew e a mosca veio nesse lote. Foi citada desde então. 
    
 Se eu fosse curador de um museu de história natural, não deixaria de expor exemplares como estes. Um fóssil que não é fóssil é um testemunho da avidez com que, no século XIX, se procuravam espécimes raros sem as precauções mínimas. Estou certo de que, nas nossas colecções, também existem fraudes destas. Fósseis que não são fósseis; peças arqueológicas fabricadas em laboratório; documentos medievais escritos na véspera. À sua maneira, também contam a história da ciência.

quinta-feira, setembro 23, 2021

Ensaio sobre um arqueólogo apaixonado pelo que fazia


 

    Por José de Encarnação, soube agora que faleceu o arqueólogo Manuel Maia e, com ele, vai também uma época especial da arqueologia portuguesa – não discuto se pior ou melhor, se mais ou menos empenhada, se mais ou menos politizada. Esse debate pertence à esfera dos especialistas e dos praticantes da disciplina. 

     Direi apenas que me entendi com Manuel Maia por sinais de fumo. Tinha um faro de perdigueiro, um jeito natural para as descobertas retumbantes. Bem sei que a arqueologia se faz mais de regularidades do que de excepções, mas o casal Manuel & Maria Maia foi, à sua conta, responsável por algumas das mais notáveis descobertas dos últimos trinta anos no Sul de Portugal. E isso, tenham a paciência, terá de constar em qualquer obituário escrito sobre Manuel Maia. 

     Os detractores (porque os também os tinha) revoltavam-se com a sorte. Em vários pontos do país, ouvi gente a barafustar com a facilidade com que, à primeira cavadela, os Maias encontravam um filão. Foi assim por exemplo com o signário de Espanca, a pedra de Roseta da escrita do Sudoeste – o único exemplar conhecido de uma estela onde um mestre escreveu o abecedário dessa escrita invulgar e um aprendiz tentou replicar os signos. A peça da Idade do Bronze deverá ter estado colada a uma parede com barro e caiu durante as escavações de 1996. A seus pés. “Sorte é estar lá e perceber a importância do que se encontra”, disse-me em 2005 ou 2006. Bem à sua maneira, ouvi-o esbracejar mais tarde: “Evito este termo de escrita do Sudoeste que por aí anda. Prefiro escrita turdetana.” 



     Em 1994, durante uma escavação em Santa Bárbara dos Padrões, um dos estudantes envolvido numa escavação de emergência (a autarquia entrara de bulldozzer no terreno contíguo a um velho cemitério) entrou na vala e saiu de lá com meia lucerna. “Nesse dia, trouxemos cinco sacos de supermercado repletos de fragmentos.” A escavação que seria de poucos dias transformou-se numa campanha de quatro meses. Apareceu uma vala cheia de lucernas, um depósito do mundo romano. Cinco, cem, mil... “Terão sido dispostas em cestos, como as chávenas numa máquina de lavar moderna”, explicou, com a habitual paciência do divulgador de ciência que também era. Com o tempo, apareceram 20 mil lucernas, a maior colecção do mundo, naquilo que terá sido um importante santuário do mundo romano. “E há mais para escavar, Gonçalo” – disse-me em Fevereiro de 2018. “Há mais...” 



     Tinha curiosidade genuína sobre os assuntos que estudava. Sabia também as suas limitações. Nunca hesitou em chamar peritos de outros campos, como o géografo que o ajudou a extrair sentido do Itinerário de Antonino Pio, ou a química que lhe pediu para colher amostras das lucernas para tentar perceber que substâncias se queimariam na Antiguidade (veio a descobrir-se que, além do azeite, também a cera de abelha e a resina serviriam). 

     Perdeu-se por vezes em polémicas e não esquecia as afrontas. Nunca escondeu por que não foi aceite para doutoramento nem as causas que (achava ele) tinham estado subjacentes à decisão universitária. Batia-se pelo princípio de que concederia o ponto se lhe provassem que não tinha razão. Morreu convencido de que Castro Verde fora Aramis, dos aramitanos, citados por Plínio. Adorava mostrar as Larnakés encontradas no sítio de Neves I como prova da influência evidente das culturas do Mediterrâneo Oriental na Península Ibérica. Propunha a tese da proliferação dos castelos no Sul do país como marca da presença romana não exclusivamente militar. Com dois elementos, fazia conjecturas e explorava hipóteses. Essa predisposição para a imaginação valeu-lhe alguma sátira. Nunca se ralou. Era um franco-atirador e os francos-atiradores também falham tiros.



     A morte da esposa foi um golpe rude. Houve um ano em que não consegui sequer contactá-lo. Recompôs-se. Pôs-se de pé e fez, no Museu da Lucerna, um pequeno altar com as recordações da carreira da mulher. 

    Fascinava-me sobretudo pela memória. Foi com ele que debati o fascínio dos pides pela arqueologia no Alentejo e as figuras controversas de Manuel Heleno, Farinha dos Santos e Caetano Beirão, que ainda fora seu mestre. “Gonçalo, parece que ainda o estou a ver nas viagens de carro, quando se irritava”, contou-me. “’Vocês não percebem nada do meu bom e amado Führer.’ Era a frase que Caetano usava – provavelmente mais para nos irritar do que sentida.” Mas, ideologias à parte, também reconhecia que a questão da escrita do Sudoeste ficara a dever muitíssimo às recolhas exaustivas de Caetano Beirão. 

     Terei saudades de Manuel Maia, um arqueólogo apaixonado pelo que fazia, um excelente divulgador de ciência e um tipo divertídissimo.
(as fotografias são do António Cunha, outro amigo de Manuel Maia, a quem peço desculpa pelo abuso)

terça-feira, setembro 07, 2021

Talvez em 2022

 


    Comemora-se hoje mais um aniversário da independência do Brasil e estamos portanto a 365 dias do segundo centenário do país irmão. Talvez seja a altura de debater a possibilidade de Portugal fazer melhor figura do que fez no primeiro centenário. 
    Na verdade, o ano de 1922 até começara bem. A chegada apoteótica de Sacadura Cabral e Gago Coutinho à costa brasileira, em Junho, com sucessivos voos comemorativos entre cidades costeiras marcara uma aproximação cultural entre os dois países. Era o mundo latino que reivindicava destaque na corrida da aviação, uma vez que as grandes proezas aeronáuticas até então tinham sido entre países anglófonos. 
     António José de Almeida, o Presidente da República, foi convidado a comparecer nas cerimónias de 7 de Setembro. A partir daí, correu tudo mal. No Verão, foi declarado estado de sítio e recolher obrigatório – circunstâncias que aconselhariam contenção dos principais órgãos de Estado. A depauperação dos cofres recomendava igualmente uma missão modesta. Debalde. Toda a gente foi. 
     Acompanhando os preparativos da viagem pelas páginas da imprensa da época, constata-se a sucessão de incidentes embaraçosos. Começou com a escolha da missão intelectual que acompanharia o PR. À boa maneira portuguesa, todos os nomes estavam mal escolhidos. O Século ridicularizou o arabista David Lopes. O Dia não queria que o filósofo Leonardo Coimbra chefiasse a missão. Como na canção dos Deolinda, «há trolhas escritores, / Letrados estucadores e serventes poetas / E poetas que são verdadeiros pedreiros das letras.» 
     No Diário de Lisboa, Joaquim Manso ironizou: os ases da pátria são sempre os que ficam cá. 
     Seguiu-se a escolha dos repórteres que deveriam acompanhar a missão. O governo cometera um erro com a viagem dos aviadores, atribuindo a um único jornalista (Paulo Freire) a missão de informar todos os jornais. Fora severamente criticado por isso e agora fora decidido que uma dezena de repórteres poderia subir a bordo, com as despesas pagas. Protestou a imprensa monárquica, tomando a medida como os tiques dos fidalgos arruinados.
     Depois, foi o problema naval. António José de Almeida confiou num velho navio apreendido aos alemães na Grande Guerra (o Porto) e temeu mais críticas de despesismo caso exigisse o regresso do couraçado Vasco da Gama ao continente. O Porto, porém, já não estava em condições. Demorou semanas em reparações. Era bafiento e malcheiroso. Partiu tarde de Lisboa e demorou de mais. Por essa altura, os críticos do regime já não poupavam nas chalaças. O navio era o Enguiço; a missão presidencial era leopárdica
     Assim, no glorioso dia 7 de Setembro de 1922, quando a missão portuguesa já deveria estar no Rio de Janeiro, a Nau Catrineta, como lhe chamou O Dia, ainda estava em Cabo Verde e decidiu comemorar ali, no mar, o centenário, com récita e champanhe. «Chegará trop tard como os clássicos carabineiros de opereta», ironizava Moreira de Almeida. «No segundo centenário, deve chegar a horas…» Chegou ao Brasil no dia 9 de Setembro.
     Só para lembrar, portanto, que há uma imagem a limpar no próximo ano.

sexta-feira, setembro 03, 2021

Mulheres jornalistas

 



       Na primeira metade do século XX, eram raras as mulheres nas redacções portuguesas. Tão raras que, da dúzia de senhoras que se destacaram, já deveria haver biografias mais substanciais sobre cada uma. 
       Maria Augusta Seixas deu-nos uma boa tese de mestrado sobre Virgínia Quaresma, a pioneira das pioneiras (embora não editada em livro). 
       O Wilton Fonseca descobriu um filão na brilhante Alice Oram, luso-britânica que relatou golpes e revoluções para os jornais ingleses. Começou também a identificar o papel de Joe Schercliff na política e no jornalismo portugueses de 1940-1960. 
       Com imodéstia, acho que dei a conhecer um pouco mais sobre a luso-brasileira Fernanda Reis, que saltou de pára-quedas na guerra da Coreia como enviada-especial de O Globo e foi redactora do Diário Popular, entre outros jornais. 
       Manuela Azevedo ditou memórias (falíveis e sinuosas, mas memórias) a Luís Humberto Marcos. 
       Maria Antónia Fiadeiro dedicou a sua tese a Maria Lamas em todas as suas dimensões – política, literária e jornalística. 
       Dina Botelho tratou a vida de Maria Archer. 
       Há dois anos, Isabel Baltazar publicou um primeiro opúsculo, com apoio da CM Arganil, sobre Irene de Vasconcelos, a primeira portuguesa licenciada na Sorbonne e correspondente do Diário de Lisboa durante quase uma década, cobrindo as sessões da Sociedade das Nações e entrevistando Mussolini e Briand. Julgo que esse trabalho está a ser continuado pela autora (encontrei, num arquivo que exploro, cartas inéditas de Irene que terão talvez alguma importância). 
       Faltam naturalmente outras. Carmen Marques, fundadora do Diário de Lisboa; Oliva Guerra, cantora e crítica musical; Francine Benoit, indecemente travada no Conservatório, mas com uma persistente acção corajosa de crítica de música no D. Lisboa; Aurora Jardim, cronista do Jornal de Notícias; Marta Mesquita da Câmara, primeira redactora de O Primeiro de Janeiro; e até Carlota Serpa Pinto, a Clarinha do "Chá das Cinco". 
       Há trabalho para fazer nesta área. Um bom ponto de partida é este livrinho e esta senhora, que tratava Indalécio Prieto por tu antes de este partir para a aventura da república espanhola.