domingo, março 25, 2018

A voz que sussurrava


Já me disseram que as recensões aqui vertidas são por vezes ríspidas. Há um fundo de verdade nisso sobretudo quando escrevo sobre obras que poderiam mostrar-se mais cuidadas e rigorosas. Façam-me a justiça de reconhecer, porém, que raramente há maldade.
1968-1969. A Voz de uma Geração. A Capital. Memórias de um Tempo (Âncora, 2018) é uma obra coordenada pela jornalista Edite Esteves sobre um biénio muito especial para uma geração de jornalistas e universitários. É, em primeiro lugar, um acto de amor e de saudade por um jornal já extinto (em 2005) e, como todos os actos póstumos de amor, tende a sobrevalorizar os instantes carinhosos da vida da pessoa/instituição amada, empurrando para o canto mais escuro os vícios e fraquezas. É da natureza humana.
Começo com uma historieta para sublinhar o meu ponto de vista, recurso inábil do cronista para desviar a atenção. Em Alexandra Alpha, romance notável de José Cardoso Pires (1987), conta-se a certo ponto a história de Waldir, amante carioca da personagem principal. Figura clandestina, com uma aura romântica de guerrilheiro, é certo dia abatido da pior forma: enquanto plana de asa delta sobre Ipanema, é confundido com uma ave de rapina. Não é morte digna de guerrilheiro e a imprensa que lhe é afecta imagina todo o tipo de versões para vestir com o apropriado dramatismo o que foi, na verdade, um acto fortuito do acaso. Perdoe-me a autora, mas foi essa a imagem que me guiou durante a leitura da obra sobre A Capital.


Constituída por um prefácio admirável de Luís Almeida Martins, algumas notas introdutórias e pela republicação do excelente trabalho que o jornal conduzira em 2003 durante as comemorações do 35.º aniversário da refundação do periódico, a obra é percorrida por uma ideia central. Edite Esteves e a maioria dos restantes autores procuram estabelecer uma relação directa entre o espírito da segunda série de A Capital e a geração que, no final da década de 1960, contesta a guerra colonial, manifesta-se contra a guerra do Vietname e a Primavera de Praga, vive o Maio de 1968 e integra as fileiras das greves universitárias de Coimbra e Lisboa de 1969.
A Capital, recorde-se, fora um produto da Primeira República, fundada por Manuel Guimarães em 1910 – figura injustamente esquecida nesta evocação que teima em sobrerepresentar o papel de Hermano Neves, grande repórter de facto, mas de forma alguma o motor do jornal. Extinta em 1926 por incapacidade de combate à ditadura militar, permanece no limbo até 1968. O título pertence à família Covões, que o mantém por quatro décadas, garantindo as exigências pedidas pela lei e, a partir de 1952, retoma o projecto como folheto de promoção das actividades do Coliseu. Em 1968 (ver documento do fundo do SNI sobre A Capital), aceita cedê-lo a Norberto Lopes e Mário Neves que formam uma nova sociedade editora (Cf. a este propósito também o processo do arquivo PIDE sobre Norberto Lopes).
Secretariado Nacional de Informação, 12 de Março de 1968
(Arquivo Nacional da Torre do Tombo)

Note-se, no entanto, que nem Norberto Lopes, nem Mário Neves (nem Carlos Ferrão, nem Maurício de Oliveira, nem Fernando Soromenho…) refundam o vespertino sob a bandeira trémula dos ventos da liberdade. Carlos Ferrão assinará até, entre Maio e Junho de 1968, comentários mais reaccionários sobre o Maio de 1968 em França do que os colunistas do Diário de Notícias ou de O Século. Como o planador Waldir imaginado por Cardoso Pires, a verdade parece mais crua e arbitrária – os demissionários do Diário de Lisboa saem no final de 1967 por desavenças com Ruella Ramos e Lopes Souto relativamente ao rumo do jornal e à decisão de o imprimir em offset. Do arrufo, sai uma cisão. A cisão alimentará novo título, criado em primeiro lugar para derrotar o Lisboa. São assim os homens e histórias idênticas percorrem o século XX (os demissionários de O Século fundam O Diário; demissionários do Diário de Notícias estão na génese do Diário Popular; antigos jornalistas do Expresso passam para as fileiras do Público e sai igualmente do Expresso a faúlha fundadora do Sol).
Não se nega, de forma alguma, o carácter inovador dos jornalistas que constituíram a redacção de A Capital. De Rodolfo Iriarte a Manuel Beça Múrias, de Daniel Ricardo a Edite Esteves e a António Valdemar, passaram pelo periódico jornalistas de aço inoxidável (expressão de Valdemar), gente de fibra e consciência social. Gente que, com honrosas excepções, passara pelos bancos da faculdade e ganhara bagagem intelectual, como nota Luís Almeida Martins no prefácio, sobretudo em comparação com os outros, os alienados. Mas contesta-se veementemente que tenha sido caso único. O mesmo processo foi documentado por Fernando Correia e Carla Baptista (Jornalistas, do Ofício à Profissão, 2007), no Diário Popular, no Diário de Lisboa, na Flama, no próprio República. O holofote de A Capital foi ligado em Fevereiro de 1968, mas integrou-se numa linha costeira de faróis que, a custo, já projectava a luz possível. E que, por cruel que possa parecer, vista à distância, não seria mais do que um borrão de luz num regime que duraria mais seis longos anos.
O prefácio de Luís Almeida Martins é um documento precioso. Testemunho digno, humano e quente, permite-nos entrar no velho edifício do jornal como num documentário, escrutinando vozes e diálogos. Pelas janelas, entra frio. Das portas fechadas, escutam-se gritos. E nomes há muito esquecidos ganham cor e textura, recuperam vida e complexidade.
Com Appio Sottomayor, recolhemos algumas anedotas imprecisas (já lá iremos…), mas testemunhas de um ritmo e fraternidade próprios numa equipa que vestia a camisola do jornal. António Valdemar conta, no seu jeito característico, a saga das três noticias que teve de escrever sobre a morte de Salazar, lembrando que já Raul Brandão, em Húmus, recomendava que se matasse segunda vez os mortos para garantir o desfecho final. António Borges Coelho, numa entrevista imperdível, recupera o espanto dos guardas do Forte de Peniche, onde estivera detido, quando o avistam ao lado de Américo Tomaz em serviço para A Capital. São essas as histórias que humanizam os maços bolorentos das colecções dos jornais depois do último suspiro. É esse o espírito encapsulado do jornal. A nota final de Edite Esteves, publicada originalmente na última edição do jornal em 2005, é um documento comovente e a prova de que, embora feitos de papel e tinta, os jornais têm, como as guitarras de Carlos Paredes, «gente lá dentro».
Pequenos erros de edição não retiram mérito ao projecto. Não é Roby de Andrade na página 48 (é Roby de Amorim), nem Armando Neves na pg. 143 (é Hermano Neves). O jornal no qual Fialho de Oliveira foi integrado em 1979 não foi A Tarde de Nuno Rocha (pg. 179) – foi O Tempo. Appio conta que a notícia adulterada sobre a refeição de Salazar no Hospital da Cruz Vermelha foi publicada com escândalo no jornal (pg. 69-70) – não foi, como me contou Daniel Ricardo e as colecções do jornais certificam. Foi apanhada à boca da máquina na tipografia antes da impressão (Cf. Parem as Máquinas!, Lisboa, Parsifal, 2015).
Não subscrevo igualmente a ideia de Alberto Martins de que a entrada em campo da equipa da Associação Académica de Coimbra (AAC) na final da Taça de Portugal em 1969 «foi a primeira manifestação política em Portugal num estádio» (pg. 96). Vale a pena lembrar por exemplo que, 32 anos antes, num Portugal-Espanha, os jogadores Amaro, Simões e Quaresma não fizeram a saudação fascista e foram por isso punidos. Quanto à entrevista que José Carlos Vasconcelos fez a Alberto Martins, então presidente da Associação de Estudantes da AAC, para o Diário de Lisboa parece-me que há um certo exagero retórico. Conta o livro que a entrevista encriptada sobre futebol dava, na verdade, para ser lida como um comentário sobre a situação dos estudantes em Coimbra. Bom... A peça em causa foi publicada no dia 21 de Junho de 1969 e tem três perguntas. As respostas são, de facto, sobre futebol [ver recorte em baixo].
 
Diário de Lisboa, 21 de Junho de 1969
(a partir de arquivo da Fundação Mário Soares)
É precisa alguma imaginação para ver ali mais do que o conteúdo explícito, com excepção talvez do título. Não há qualquer paralelismo com outro texto críptico famoso, esse sim, passível de leituras adicionais – a crónica de um Sporting-FC Porto no República de 18 de Março de 1974, logo após o fracasso do golpe das Caldas, disfarçado como um apelo à calma por parte dos futuros revoltosos.

Queixo-me com frequência que não há tradição memorialística entre os vultos das artes e letras portugueses. 1968-1969. A Voz de uma Geração. A Capital. Memórias de um Tempo é um passo nesse sentido – uma carta de amor a um jornal perdido, uma mensagem numa garrafa lançada no oceano dos títulos fechados. É bem verdade que os jornais são como os entes queridos: permanecem na memória e nas fotografias das estantes até ao último suspiro do derradeiro familiar que os viu vivos.

quarta-feira, março 21, 2018

O incêndio do Reichstag


Mais uma anedota do livro de memórias de Dick Beeston, correspondente de guerra do Daily Telegraph.
Sefton Delmer era um dos mais respeitados jornalistas ingleses da década de 1930. Em Fevereiro de 1933, estava em Berlim e assistiu ao incêndio do Reichstag, incidente decisivo para a consolidação dos nazis, graças à propagação da teoria de que os comunistas e anarquistas conspiravam contra a estabilidade da Alemanha.
Delmer assistiu a tudo. Acompanhou Hitler na visita às ruínas calcinadas. Percebeu de imediato que o episódio seria aproveitado pelos nazis. Contactou a redacção de Londres e ditou uma das mais dramáticas reportagens da sua carreira. Num eufemismo desnecessário, perguntou se o Telegraph tinha tudo o que precisava. A telefonista de Londres transmitiu a pergunta ao editor de fecho. E o idiota, habituado às notícias quotidianas sobre incêndios e crimes, sem compreender a importância histórica do que se passara em Berlim, remeteu para Delmer a pergunta que exigia sempre aos repórteres: «Quantos carros de bombeiros aí estavam?» 

terça-feira, março 20, 2018

O espólio que ninguém conhecia


Permitam-me que partilhe uma perplexidade.
Durante muitos anos, consultava revistas internacionais de história e arqueologia e ficava intrigado – parecia que as representações artísticas nacionais e todo o tipo de tesouros arqueológicos dos nossos museus esbarravam no desconhecimento estrangeiro. Era como se existisse um muro na fronteira, que impedisse olhares alheios sobre as colecções depositadas nos museus tutelados pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC).
Com injustiça, culpei os investigadores nacionais de não publicarem no estrangeiro, em língua internacional, o resultado dos seus trabalhos. Cuidei que era essa a razão para os espólios orgulhosamente sós das nossas colecções.
Nos últimos três anos, tenho sido responsável por uma colecção de edições especiais de História da National Geographic. Lidamos com fotografias de todo o mundo, agregadas e disponibilizadas pelas grandes agências de imagem. Um óleo do Louvre, um mosaico de Pompeia, um sarcófago do Museu Egípcio do Cairo estão disponíveis por meia dúzia de euros num contrato tácito entre essas instituições e as revistas de divulgação, que permite que o seu espólio seja amplamente conhecido e divulgado. Se duas pessoas detectarem a imagem de um fauno de Pompeia e decidirem que, na próxima viagem a Itália, visitarão as ruínas da cidade destruída pelo Vesúvio, estará pago o esforço. Já para não falar da obrigação moral de divulgar à sociedade civil os acervos conservados nas instituições.
Os museus tutelados pela DGPC não constam desses bancos de imagem internacionais. Desconheço as razões. Talvez a inércia, talvez o receio de perderem o controlo sobre as respectivas imagens. Os museus da DGPC estão, sim, agregados no Matriz Pix, base de dados nacional que me cobra no mínimo 120 euros por imagem. Não há negociação possível, não há argumento que mude mentalidades – nem o facto de um leitor em Espanha ou Itália ficar a saber que existe um Museu Grão Vasco com algumas das mais belas pinturas de retábulos da Europa. É isso ou… repenicar a imagem de uma fonte menos oficial e gratuita.
Enquanto assim for, não estranhem que poucos para lá de Badajoz conheçam os biombos de Namban (do Museu Nacional de Arte Antiga) ou os azulejos de temas profanos do Museu Nacional do Azulejo.

Lá vamos, cantando e rindo. Com colecções ricas e guardadas ciosamente da cobiça alheia como fazia o Harpagão de O Avarento, de Molière.

domingo, março 11, 2018

Num dia, estava bem; no outro, não.

Diário Ilustrado, 1 de Agosto de 1881 (a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)
O tempo dos jornais sempre dependeu da velocidade de circulação da informação. No dia 1 de Agosto de 1881, o "Diário Ilustrado" publicava o telegrama da Agência Havas, dando conta que o presidente norte-americano James Garfield passara «bem o dia e a noite de ontem». Não era verdade.
No dia seguinte, sabia-se em Lisboa o que os americanos já conheciam há um mês. Garfield fora baleado numa estação de comboio em Washington no dia 1 de Julho, um mês antes.
Em 2 de Agosto, garantia o "Diário Ilustrado", através da Havas, que Garfield ficaria em breve recuperado. Não ficou. Mesmo com Alexander Bell, inventor do telefone e um dos pais da National Geographic Society, do seu lado, procurando a famigerada bala com um dispositivo eléctrico de duvidosa utilidade, Garfield morreu em 18 de Setembro desse ano com infecções e hemorragias internas.


A notícia demorou três dias a chegar a Lisboa e foi publicada num cantinho da página 3.
Diário Ilustrado, 2 de Agosto de 1881 (a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)

sábado, março 10, 2018

Um dia, a televisão há-de dar pela nossa ausência


A propósito de jogos à sexta-feira, à segunda, ao sábado , ao domingo de manhã e ao diabo que os carregue

«Os clubes perceberam que havia bom dinheiro a ganhar e as empresas de televisão estavam dispostas a abrir mão dele; depois desse maná, o comportamento da Liga de Futebol tem-se assemelhado ao da mítica menina que vai para o convento. A Liga autoriza toda a gente a fazer o que quiser – alterar a hora do início do jogo, ou as dia, ou as equipas, ou as camisolas, tanto faz; nada é demasiado trabalhoso para eles. Entretanto, os adeptos, os clientes, são vistos como imbecis crédulos e submissos. A data anunciada no nosso bilhete não tem qualquer significado; se a ITV ou a BBC quiserem agendar a data para uma altura que lhe seja mais conveniente, podem fazê-lo. (…)
Continuo a ver em Highbury mesmo os jogos que passam na televisão, sobretudo porque já paguei o bilhete. Mas nem pensem que vou até Coventry ou Sunderland ou qualquer outro lugar se puder ficar sentado em casa a ver o jogo, e espero que muitas outras pessoas façam o mesmo. Um dia, a televisão há-de dar pela nossa ausência. Afinal de contas, por mais que se ocupem do público, não conseguirão criar ambiente porque não há-de estar lá ninguém: estaremos todos em casa a ver pela televisão. Espero que os managers e os proprietários dos clubes nos poupem então a coluna pomposa e amarga no programa oficial de jogo, queixando-se da nossa incorerência.»


“Febre no Estádio”, Nick Hornby, 2001, Teorema, em tradução fraquíssima de Maria Augusta Júdice