Já me disseram que as recensões aqui vertidas são por vezes ríspidas. Há
um fundo de verdade nisso sobretudo quando escrevo sobre obras que poderiam
mostrar-se mais cuidadas e rigorosas. Façam-me a justiça de reconhecer, porém,
que raramente há maldade.
1968-1969. A Voz de uma Geração. A
Capital. Memórias de um Tempo (Âncora, 2018) é uma obra coordenada pela jornalista Edite
Esteves sobre um biénio muito especial para uma geração de jornalistas e
universitários. É, em primeiro lugar, um acto de amor e de saudade por um
jornal já extinto (em 2005) e, como todos os actos póstumos de amor, tende a
sobrevalorizar os instantes carinhosos da vida da pessoa/instituição amada,
empurrando para o canto mais escuro os vícios e fraquezas. É da natureza
humana.
Começo com uma historieta para sublinhar o meu ponto de vista, recurso
inábil do cronista para desviar a atenção. Em Alexandra Alpha, romance notável de José Cardoso Pires (1987),
conta-se a certo ponto a história de Waldir, amante carioca da personagem
principal. Figura clandestina, com uma aura romântica de guerrilheiro, é certo dia
abatido da pior forma: enquanto plana de asa delta sobre Ipanema, é confundido
com uma ave de rapina. Não é morte digna de guerrilheiro e a imprensa que lhe é
afecta imagina todo o tipo de versões para vestir com o apropriado dramatismo o
que foi, na verdade, um acto fortuito do acaso. Perdoe-me a autora, mas foi
essa a imagem que me guiou durante a leitura da obra sobre A Capital.
Constituída por um prefácio admirável de Luís Almeida Martins, algumas
notas introdutórias e pela republicação do excelente trabalho que o jornal
conduzira em 2003 durante as comemorações do 35.º aniversário da refundação do
periódico, a obra é percorrida por uma ideia central. Edite Esteves e a maioria
dos restantes autores procuram estabelecer uma relação directa entre o espírito
da segunda série de A Capital e a
geração que, no final da década de 1960, contesta a guerra colonial,
manifesta-se contra a guerra do Vietname e a Primavera de Praga, vive o Maio de
1968 e integra as fileiras das greves universitárias de Coimbra e Lisboa de
1969.
A Capital, recorde-se, fora um produto da
Primeira República, fundada por Manuel Guimarães em 1910 – figura injustamente
esquecida nesta evocação que teima em sobrerepresentar o papel de Hermano
Neves, grande repórter de facto, mas de forma alguma o motor do jornal. Extinta
em 1926 por incapacidade de combate à ditadura militar, permanece no limbo até
1968. O título pertence à família Covões, que o mantém por quatro décadas, garantindo
as exigências pedidas pela lei e, a partir de 1952, retoma o projecto como folheto de promoção das actividades do Coliseu. Em 1968 (ver documento do fundo do SNI sobre A Capital), aceita cedê-lo a Norberto Lopes e Mário Neves que formam uma nova sociedade editora (Cf. a este propósito também o processo do
arquivo PIDE sobre Norberto Lopes).
Secretariado Nacional de Informação, 12 de Março de 1968 (Arquivo Nacional da Torre do Tombo) |
Note-se, no entanto, que nem Norberto Lopes, nem Mário Neves (nem Carlos
Ferrão, nem Maurício de Oliveira, nem Fernando Soromenho…) refundam o
vespertino sob a bandeira trémula dos ventos da liberdade. Carlos Ferrão assinará até, entre Maio e Junho de 1968, comentários mais reaccionários sobre o Maio de 1968 em França do que os colunistas do Diário de Notícias ou de O Século. Como o planador
Waldir imaginado por Cardoso Pires, a verdade parece mais crua e arbitrária –
os demissionários do Diário de Lisboa saem
no final de 1967 por desavenças com Ruella Ramos e Lopes Souto relativamente ao
rumo do jornal e à decisão de o imprimir em offset.
Do arrufo, sai uma cisão. A cisão alimentará novo título, criado em primeiro
lugar para derrotar o Lisboa. São
assim os homens e histórias idênticas percorrem o século XX (os demissionários
de O Século fundam O Diário; demissionários do Diário de Notícias estão na génese do Diário Popular; antigos jornalistas do Expresso passam para as fileiras do Público e sai igualmente do Expresso a faúlha fundadora do Sol).
Não se nega, de forma alguma, o carácter inovador dos jornalistas que constituíram
a redacção de A Capital. De Rodolfo
Iriarte a Manuel Beça Múrias, de Daniel Ricardo a Edite Esteves e a António Valdemar,
passaram pelo periódico jornalistas de aço inoxidável (expressão de Valdemar),
gente de fibra e consciência social. Gente que, com honrosas excepções, passara
pelos bancos da faculdade e ganhara bagagem intelectual, como nota Luís Almeida
Martins no prefácio, sobretudo em comparação com os outros, os alienados. Mas contesta-se veementemente
que tenha sido caso único. O mesmo processo foi documentado por Fernando
Correia e Carla Baptista (Jornalistas, do Ofício à Profissão, 2007), no Diário Popular, no Diário de Lisboa, na Flama, no
próprio República. O holofote de A Capital foi ligado em Fevereiro de
1968, mas integrou-se numa linha costeira de faróis que, a custo, já projectava
a luz possível. E que, por cruel que possa parecer, vista à distância, não
seria mais do que um borrão de luz num regime que duraria mais seis longos
anos.
O prefácio de Luís Almeida Martins é um documento precioso. Testemunho
digno, humano e quente, permite-nos entrar no velho edifício do jornal como num
documentário, escrutinando vozes e diálogos. Pelas janelas, entra frio. Das
portas fechadas, escutam-se gritos. E nomes há muito esquecidos ganham cor e
textura, recuperam vida e complexidade.
Com Appio Sottomayor, recolhemos algumas anedotas imprecisas (já lá
iremos…), mas testemunhas de um ritmo e fraternidade próprios numa equipa que
vestia a camisola do jornal. António Valdemar conta, no seu jeito
característico, a saga das três noticias que teve de escrever sobre a morte de
Salazar, lembrando que já Raul Brandão, em Húmus,
recomendava que se matasse segunda vez os mortos para garantir o desfecho
final. António Borges Coelho, numa entrevista imperdível, recupera o espanto
dos guardas do Forte de Peniche, onde estivera detido, quando o avistam ao lado
de Américo Tomaz em serviço para A
Capital. São essas as histórias que humanizam os maços bolorentos das
colecções dos jornais depois do último suspiro. É esse o espírito encapsulado
do jornal. A nota final de Edite Esteves, publicada originalmente na última
edição do jornal em 2005, é um documento comovente e a prova de que, embora
feitos de papel e tinta, os jornais têm, como as guitarras de Carlos Paredes,
«gente lá dentro».
Pequenos erros de edição não retiram mérito ao projecto. Não é Roby de
Andrade na página 48 (é Roby de Amorim), nem Armando Neves na pg. 143 (é
Hermano Neves). O jornal no qual Fialho de Oliveira foi integrado em 1979 não
foi A Tarde de Nuno Rocha (pg. 179) –
foi O Tempo. Appio conta que a
notícia adulterada sobre a refeição de Salazar no Hospital da Cruz Vermelha foi
publicada com escândalo no jornal (pg. 69-70) – não foi, como me contou Daniel
Ricardo e as colecções do jornais certificam. Foi apanhada à boca da máquina na
tipografia antes da impressão (Cf. Parem
as Máquinas!, Lisboa, Parsifal, 2015).
Não subscrevo igualmente a ideia de Alberto Martins de que a entrada em
campo da equipa da Associação Académica de Coimbra (AAC) na final da Taça de Portugal em 1969
«foi a primeira manifestação política em Portugal num estádio» (pg. 96). Vale a
pena lembrar por exemplo que, 32 anos antes, num Portugal-Espanha, os jogadores Amaro,
Simões e Quaresma não fizeram a saudação fascista e foram por isso punidos.
Quanto à entrevista que José Carlos Vasconcelos fez a Alberto Martins, então
presidente da Associação de Estudantes da AAC, para o Diário de Lisboa parece-me que há um certo exagero retórico. Conta
o livro que a entrevista encriptada sobre futebol dava, na verdade, para ser
lida como um comentário sobre a situação dos estudantes em Coimbra. Bom... A
peça em causa foi publicada no dia 21 de Junho de 1969 e tem três perguntas. As
respostas são, de facto, sobre futebol [ver recorte em baixo].
É precisa alguma imaginação para ver ali mais do que o conteúdo
explícito, com excepção talvez do título. Não há qualquer paralelismo com outro texto críptico famoso, esse
sim, passível de leituras adicionais – a crónica de um Sporting-FC Porto no República de 18 de Março de 1974, logo
após o fracasso do golpe das Caldas, disfarçado como um apelo à calma por parte
dos futuros revoltosos.
Queixo-me com frequência que não há tradição memorialística entre os vultos
das artes e letras portugueses.
1968-1969. A Voz de uma Geração. A Capital. Memórias de um Tempo é um passo
nesse sentido – uma carta de amor a um jornal perdido, uma mensagem numa
garrafa lançada no oceano dos títulos fechados. É bem verdade que os jornais
são como os entes queridos: permanecem na memória e nas fotografias das
estantes até ao último suspiro do derradeiro familiar que os viu vivos.