Quando digo que não há tradição
memorialística em Portugal, faço comparações com a rica tradução anglófona
nesse capítulo. Do desporto às artes, passando pela política, as personalidades
britânicas não fogem à responsabilidade de legar para a posteridade a sua
versão dos acontecimentos em que participaram – fictícia, por vezes;
hiperbolizada com frequência nos sucessos e cortada rente nos insucessos. Em
Portugal, em contrapartida, são poucas as obras que encaixam nessa definição.
Acabei de ler Looking for Trouble, The Life of a Foreign Correspondent (2006, 2.ª
edição), memórias do jornalista Richard Beeston, correspondente no estrangeiro
primeiro do News Chronicle, título
que pertencia a Lord Cadbury (…o dos chocolates), até este o oferecer ao Daily Mail; e depois do Daily Telegraph, jornal de credenciais
conservadoras.
Em quase duzentas páginas de histórias
bem-humoradas, contam-se as desventuras do repórter em Chipre, na Jordânia, no
Líbano, no Congo, em Angola, no Iémen, no Quénia e na Tanzânia, no Vietname, em
Washington e, por fim, na delegação do Telegraph
em Moscovo. A guerra seguiu-o por todo o lado ou talvez seja mais correcto
dizer que ele seguiu os conflitos até aos pontos mais recônditos do globo.
Assinou um punhado de exclusivos. Em 1964,
no Iémen, numa aldeia perdida e não assinalada nos mapas, encontrou provas de
uso de armas químicas por parte da força aérea egípcia de Nasser. Temendo que
não acreditassem no seu relato, transportou de regresso a Saná um dos
invólucros tombados do céu e ofereceu-o depois ao rei Faisal, da Arábia
Saudita, que o mostrou na ONU.
No final da década de 1970, encontrou por
acidente no Teatro Bolshoi Kim Philby, o dissidente inglês que espiara para o
KGB e cuja memória continuava a assombrar os ingleses. Da curta conversa, saiu
uma memorável manchete do Telegraph.
Beeston viveu sob o lema de que ser
correspondente de guerra era bem melhor do que trabalhar ou ter de crescer. Ao
longo da sua longa carreira, fez jus a essas palavras.
Visitou Angola em 1961, logo após os
massacres perpetrados por Holden Roberto. Beneficiou então da amizade de
Salazar com Sir Colin Coote, director do Telegraph,
mas nem isso o salvou quando transmitiu para Londres uma notícia sobre o
uso por parte dos militares portugueses das cabeças dos rebeldes abatidos como
forma tenebrosa de dissuasão dos velhos mitos tribais africanos segundo os
quais os guerreiros regressariam à vida se tivessem uma morte honrosa.
A ficha do Arquivo Histórico-Diplomático do MNE com a credenciação a Richard Beeston para uma visita a Angola. |
Das muitas anedotas contadas no livro,
partilho uma. Em Elizabethville, no Congo, dias depois da independência face ao
poder colonial belga, os correspondentes do Daily
Mail e do Daily Express avistaram
o correspondente do Baltimore Sun e
um operador de câmara da CBS surpreendidos por uma multidão enfurecida, que se
preparava para os executar. Um oficial do Catanga interveio a tempo, mas os
dois jornalistas espancados foram transportados de imediato para o hospital. Os
colegas que tinham visto o incidente correram para o posto de telex para
transmitir a notícia. Terminado o serviço, lembraram-se que o seu colega
americano, numa cama de hospital, não conseguiria enviar o serviço para o
respectivo jornal. Num assomo de camaradagem, escreveram então nova prosa em
seu nome – mais emocionada ainda – e enviaram-na para o respectivo jornal.
Só não contaram que o relato fosse usado como
manchete do Baltimore Sun e fosse
depois rapidamente amplificado pelas agências internacionais. Na verdade, o
relato que o correspondente do Baltimore
Sun NÃO escreveu foi depois nomeado para um Pullitzer!
Beeston, Richard. Looking
For Trouble. The Life and Times of a
Foreign Correspondent. Londres, Tauris Parke Paperbacks: 2006
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