domingo, março 04, 2018

Beeston. Dick Beeston.


Quando digo que não há tradição memorialística em Portugal, faço comparações com a rica tradução anglófona nesse capítulo. Do desporto às artes, passando pela política, as personalidades britânicas não fogem à responsabilidade de legar para a posteridade a sua versão dos acontecimentos em que participaram – fictícia, por vezes; hiperbolizada com frequência nos sucessos e cortada rente nos insucessos. Em Portugal, em contrapartida, são poucas as obras que encaixam nessa definição.
Acabei de ler Looking for Trouble, The Life of a Foreign Correspondent (2006, 2.ª edição), memórias do jornalista Richard Beeston, correspondente no estrangeiro primeiro do News Chronicle, título que pertencia a Lord Cadbury (…o dos chocolates), até este o oferecer ao Daily Mail; e depois do Daily Telegraph, jornal de credenciais conservadoras.
Em quase duzentas páginas de histórias bem-humoradas, contam-se as desventuras do repórter em Chipre, na Jordânia, no Líbano, no Congo, em Angola, no Iémen, no Quénia e na Tanzânia, no Vietname, em Washington e, por fim, na delegação do Telegraph em Moscovo. A guerra seguiu-o por todo o lado ou talvez seja mais correcto dizer que ele seguiu os conflitos até aos pontos mais recônditos do globo.
Assinou um punhado de exclusivos. Em 1964, no Iémen, numa aldeia perdida e não assinalada nos mapas, encontrou provas de uso de armas químicas por parte da força aérea egípcia de Nasser. Temendo que não acreditassem no seu relato, transportou de regresso a Saná um dos invólucros tombados do céu e ofereceu-o depois ao rei Faisal, da Arábia Saudita, que o mostrou na ONU.
No final da década de 1970, encontrou por acidente no Teatro Bolshoi Kim Philby, o dissidente inglês que espiara para o KGB e cuja memória continuava a assombrar os ingleses. Da curta conversa, saiu uma memorável manchete do Telegraph.
Beeston viveu sob o lema de que ser correspondente de guerra era bem melhor do que trabalhar ou ter de crescer. Ao longo da sua longa carreira, fez jus a essas palavras.
Visitou Angola em 1961, logo após os massacres perpetrados por Holden Roberto. Beneficiou então da amizade de Salazar com Sir Colin Coote, director do Telegraph, mas nem isso o salvou quando transmitiu para Londres uma notícia sobre o uso por parte dos militares portugueses das cabeças dos rebeldes abatidos como forma tenebrosa de dissuasão dos velhos mitos tribais africanos segundo os quais os guerreiros regressariam à vida se tivessem uma morte honrosa.

A ficha do Arquivo Histórico-Diplomático do MNE com a credenciação
a Richard Beeston para uma visita a Angola.

Das muitas anedotas contadas no livro, partilho uma. Em Elizabethville, no Congo, dias depois da independência face ao poder colonial belga, os correspondentes do Daily Mail e do Daily Express avistaram o correspondente do Baltimore Sun e um operador de câmara da CBS surpreendidos por uma multidão enfurecida, que se preparava para os executar. Um oficial do Catanga interveio a tempo, mas os dois jornalistas espancados foram transportados de imediato para o hospital. Os colegas que tinham visto o incidente correram para o posto de telex para transmitir a notícia. Terminado o serviço, lembraram-se que o seu colega americano, numa cama de hospital, não conseguiria enviar o serviço para o respectivo jornal. Num assomo de camaradagem, escreveram então nova prosa em seu nome – mais emocionada ainda – e enviaram-na para o respectivo jornal.
Só não contaram que o relato fosse usado como manchete do Baltimore Sun e fosse depois rapidamente amplificado pelas agências internacionais. Na verdade, o relato que o correspondente do Baltimore Sun NÃO escreveu foi depois nomeado para um Pullitzer!


Beeston, Richard. Looking For Trouble.  The Life and Times of a Foreign Correspondent. Londres, Tauris Parke Paperbacks: 2006

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