Acabei. Devo ter sido o primeiro português
a acabar o terceiro livro de memórias de José António Saraiva (Eu e os Outros, Gradiva, 2019), mas já está.
Deixo algumas notas soltas de leitura, pois
o livro não justifica uma recensão formal:
1) O catálogo da Gradiva tem mais
oscilações do que um veleiro no mar do Norte – ora vai acima, ora vai abaixo
[caso tivessem dúvidas, com o volume em apreço, foi abaixo].
2) Não conheço mais nenhuma personagem
histórica, incluindo Tales de Mileto e Cristiano Ronaldo, que tivesse produzido
três volumes de memórias. Temos portanto um volume para cada 23 anos de vida do
arquitecto. Parece-me pouco…
3) O autor está – lamento dizê-lo – seco
como um limão. Não tem mais histórias para contar que tivessem ficado de fora
do primeiro volume (não convencional, mas inquestionavelmente importante para
historiadores e curiosos) e do segundo (mais cheio de fel, mas ainda com alguma
polpa). O momento mais dramático do livro oscila entre o acidente onde nada
aconteceu a nenhum dos envolvidos (pp 189-191, caso estejam interessados) e o
estratagema ardiloso para evitar pagar bilhete no eléctrico da Cruz Quebrada
(pp 132-133). Decidam os senhores que eu vou beber um copo de água para
acalmar.
4) André Jordan, em entrevista à Visão desta semana, diz que quem escreve
as memórias não tem de escrever a verdade, nem toda a verdade. Escreve a sua
versão – aquela que quer contar e, idealmente, gostaria de ver perpetuada.
Estou de acordo. Nas mais recentes memórias de JA Saraiva, porém, não há nada para
reescrever, nem razão visível para publicar. Estas parecem ser as mais recentes memórias, no sentido em que foram os últimos pensamentos que passaram pela mente do autor, mas isso não costuma ser motivo para publicar livros. Pelo menos, lá fora.
5) Na capa do livro, há 15 rostos visíveis e dois tapados pelo sinal
de trânsito para perigo. Posso assegurar que, à excepção de Marinho Pinto,
nenhum foi mimoseado com mais de dois parágrafos. O único perigo, pois, é o de
adormecimento ao volante.
6) Tratando-se de quem é, há, naturalmente,
erros. O Maio de 1968 não foi «quase simultâneo» da Primavera de Praga (pp.
24). Passaram três meses entre o início de um e o início do outro. E tenho pena
também, mas o Mariano Amaro, que o avô Virgílio salvou da tuberculose (pp. 16),
não foi certamente uma das torres de Belém. Cresci a ouvir falar de Feliciano,
Vasco e Capela, eles sim, as torres do Belenenses. Amaro foi um dos dois
senhores que não levantou o braço para saudar os falangistas num
Portugal-Espanha e cerrou o punho. Foi preso por causa disso. Tenho o processo
e posso emprestá-lo.
7) Termino
com uma inesperada nota afectiva. Em quase todas as intervenções anteriores, o
autor foi sempre muito mais pródigo em elogios para o seu tio, José Hermano, do
que para o pai, António José. Politicamente, estava mais próximo daquele do que
deste e é natural que entre pai exilado em França e na Holanda e os filhos em
Lisboa não se tenham estreitado laços. Mas gostei de ler. Nas memórias de José
Hermano Saraiva (escritas a quatro mãos com o sobrinho), transparecia um
carinho muito grande entre os dois velhos irmãos, mesmo quando a política os
separou. Pela primeira vez, José António Saraiva escreve abertamente sobre o
pai, com um carinho que me desarmou.
Aguarda-se agora o quarto volume, subordinado ao título Coisas de que Quase me Esquecia.