Idanha-a-Nova, 14 de Junho. Calhou o acaso que entre no edifício que alberga a Câmara Municipal de Idanha-a-Nova minutos antes de o suspeito de um duplo homicídio ser apresentado ao tribunal que funciona nas mesmas instalações. Há alguns munícipes no largo principal, mas o seu número não se compara ao dos jornalistas. Fotógrafos e operadores de vídeo posicionam-se estrategicamente para poder recolher a imagem ideal nos curtos segundos que distarão entre a saída do suspeito do veículo policial e a entrada do edifício. Elementos da Guarda Nacional Republicana estão visivelmente confusos, adivinhando-se a sua estranheza perante um cenário para o qual não foram treinados nem nunca imaginaram vir a participar.
Rebobinamos alguns meses. Em Fevereiro, o mesmo município protagonizou uma inovadora campanha no âmbito do projecto Incubadora de Base Rural, colocando à disposição cerca de 300 hectares de terreno fértil susceptíveis de interessar jovens agricultores com projectos tecnologicamente inovadores. Trata-se de um projecto – e não de uma declaração de intenções – que prevê precisamente uma alternativa para a imparável perda de relevância do sector primário em Portugal, traduzida num abandono da agricultura. Inclui um incentivo à população activa jovem. Traduz-se numa promoção da criatividade tecnológica e, no entanto...
À sessão de apresentação, compareceram timidamente alguns meios de comunicação regional. Mais ninguém. Meses depois, na pista da ministra Assunção Cristas, uma televisão (a SIC Notícias) fez também ali um trabalho sobre o projecto, mas a comparação de cenários é inevitável, sobretudo porque o argumento das direcções de informação costuma ser o mesmo: falta de recursos para acorrer a todo o lado; falta de espaço para noticiar tudo; falta de correspondentes em todos os locais.
No entanto, face a um crime de sangue, rapidamente esses obstáculos se desvanecem. Encontra-se tempo no alinhamento para directos. Os correspondentes dão lugar a jornalistas enviados das sedes para relatar o assunto. Fotógrafos são mandados para o local para fotografar ambulâncias e macas. A insensibilidade de quem vem de fora é gritante: pergunta-se aos transeuntes, amigos das vítimas, familiares, conhecidos de sempre, o que sentiu quando viu os corpos? Que motivações teria o homicida?
Martelam-se enquadramentos imaginados, que têm de encaixar à força nos factos: será que pagavam ao empreiteiro a tempo? Será que isto não é mais um crime provocado pelo crise? Os munícipes entreolham-se, envergonhados pela figura de quem com eles fala e cai neste ridículo.
Amanhã, levanta-se a tenda. Abandona-se a vila. Noutras localidades, ocorrerão outros crimes de sangue. E continuarão a não existir recursos, tempo ou espaço para noticiar a actualidade do mundo rural. Excepto em caso de tiros.
sexta-feira, junho 15, 2012
domingo, junho 10, 2012
Mecanismos de solidariedade
(Declaração de
interesses: participei como orador no Congresso da Costa da Laurissilva, a
convite da organização.)
São Vicente,
Madeira, 10 de Junho. O que acontece a um ser humano quando sofre uma paragem
cardíaca? O sangue deixa de ser bombeado, os órgãos vão interrompendo o seu
funcionamento devido à falta de oxigenação até ao momento em que o próprio
cérebro falha. Imaginemos então como parábola que o sangue bombeado são os
recursos indispensáveis para gerir uma área protegida e que a cada órgão vital
corresponde um município.
Três municípios
da costa setentrional da ilha da Madeira chegaram a um consenso e organizaram
uma plataforma de convergência para melhor defenderem o interesse do património
natural dos seus concelhos. Por si só, esta convergência já seria tema de
notícia. Mas as sessões a que assisti durante os dias 8 e 9 de Junho
expressaram um entendimento mais profundo sobre uma das questões fundamentais
da conservação da natureza: a solidariedade, traduzida numa intenção de
distribuir equitativamente os rendimentos provenientes do turismo associado
especificamente à visita de áreas naturais.
A intervenção
mais ponderada do congresso pertenceu a Francisco de Castro Rego (FCR),
ex-Director-Geral dos Recursos Florestais e coordenador do Centro de Ecologia
Florestal do Instituto Superior de Agronomia. O seu raciocínio marcou as
palestras subsequentes. FCR socorreu-se dos dados do inquérito aos visitantes
da Madeira em 2010 (ainda para mais, um dos piores anos turísticos da ilha em
várias décadas, devido à enxurrada de 20 de Fevereiro, ao incêndio do Parque
Natural da Madeira e às repercussões geradas pela erupção do vulcão islandês de
nome impronunciável). Trata-se de um inquérito encomendado pela Secretaria
Regional de Turismo (que entendeu porém não participar no congresso).
Segundo FCR, mais de 30% dos visitantes da Madeira reconhecem que viajam para a ilha para
observar a natureza. Ora, com um volume anual médio de 5 milhões de dormidas na
ilha e com uma despesa média de um pouco menos de 100 euros por dia, é possível
estipular o valor turístico das áreas naturais, esquecendo outros serviços,
mais difíceis de estimar, como a capacidade de retenção de água, a concentração
de biodiversidade ou a função de segurança contra deslizamentos de terras. O investigador chegou a um número bastante razoável: cerca de 140 milhões de
euros das receitas turísticas da Madeira provêm directamente de turistas que
viajaram confessadamente para observar a natureza.
Vamos à segunda parte
da equação. Toda a floresta da laurissilva, património da Humanidade,
concentra-se no Norte da ilha; as veredas e levadas mais valorizadas situam-se
nos municípios do Norte (sobretudo, em São Vicente, Santana e Porto Moniz, com
algumas excepções em Machico). No entanto, as receitas do turismo
concentram-se, de forma esmagadora, nos municípios do Sul, particularmente no
Funchal, de onde partem todas as excursões, a maior parte dos percursos
guiados, onde se concentram as dormidas, os alugueres de carros e obviamente
onde se deixam as receitas da restauração.
É justo? Não
parece, particularmente quando a evolução demográfica dos concelhos do Norte
sugere que está em curso um processo de êxodo considerável. Por outras
palavras, existe sangue, mas não é bombeado para todos os órgãos e alguns
começam a denotar sintomas de falta de oxigenação.
Foram debatidos
vários modelos de transferência solidária de receitas neste congresso. Alguns,
admito, não fazem sentido para mim, como a aplicação de ecotaxas de passagem
aos visitantes específicos que visitam veredas, levadas ou outros ícones da
paisagem da laurissilva. Em tempo de escassez, a aplicação de mais taxas parece
contraproducente e não creio que deva ser o turista a assegurar a conservação
daqueles espaços. Parece-me bastante mais plausível a aceitação solidária desta
desigualdade regional e a canalização de recursos oriundos do turismo (uma
fatia dos tais 140 milhões de euros) para mecanismos de reabilitação da
economia local e de conservação da paisagem protegida, que conta aliás com mais
um ícone desde Junho do ano passado, com a criação da Reserva da Biosfera de
Santana.
A nível de
sensibilização, é possível igualmente abrir outros pontos fulcrais, como a
consciencialização do visitante para gastar algum do seu dinheiro no comércio
local dos municípios do Norte, sob risco de a sangria migratória que daqui
parte para o Funchal e para o exterior continuar a registar-se. E de alguns
órgãos cessarem por completo de funcionar por deficiências no sistema circulatório.
P.S.: muito
deste debate passou ao lado dos companheiros jornalistas dos órgãos de
comunicação madeirenses, que esgotaram a cobertura do primeiro dia do congresso
com sound-bytes da intervenção do presidente do Governo Regional. Foi pena!
domingo, junho 03, 2012
Limitações do jornalismo sobre ciência
Dois exemplos quotidianos, um dos quais passado comigo para sublinhar que todos os jornalistas estão sujeitos a estas limitações, mesmo aqueles que, trabalhando num ritmo não diário, dispõem de mais tempo para validação.
Em Maio deste ano, noticiei a descoberta de um raro artefacto de terracota, em forma de um touro, num sítio arqueológico do Baixo Alentejo. Dei-o como praticamente inédito naquele contexto, depois de discutir o assunto com o arqueólogo responsável pela intervenção e mais dois especialistas da área. Fui agora informado de que, no mesmo sítio arqueológico funerário, um ano antes, tinha sido descoberta uma figura semelhante, mas não valorizada pelo arqueólogo responsável, que não a publicou nem lhe deu particular relevo.
Na semana passada, o Público deu um raro destaque de capa à descoberta daquele que seria o artefacto judaico mais antigo da Península Ibérica, susceptível de rever as cronologias vigentes. Falou, ao que tudo indica, apenas com o arqueólogo responsável pela escavação e baseou a sua interpretação na sugestão de que os caracteres gravados numa tabuinha representavam um hebraico antigo. Depois da publicação, um arqueólogo conceituado sugeriu o carácter extemporâneo (e até errado) da interpretação num fórum de arqueologia.
O que nos dizem estes casos sobre a prática jornalística em terrenos científicos? Dizem, em primeira instância, que a relação entre perito e jornalista é francamente desigual: o primeiro estuda um tema durante décadas, o segundo analisa-o durante horas ou dias. É por isso fundamental que a interacção entre ambos seja leal e franca, esperando-se que ambos se abstenham de usar a abordagem “Eureka!” de cada vez que trabalham para produzir notícias sobre um projecto científico.
Em segundo lugar, a notícia é fragmentada. Não pode aspirar a produzir conhecimento sustentado numa comunidade, devendo, ao invés, sugerir pistas, destacar informação e abrir caminhos de pesquisa e leitura complementar para os leitores. A notícia complementa a divulgação em publicação científica, mais sólida e validada pelos pares.
Em terceiro lugar, o processo de selecção jornalística é influenciado por valores que não são necessariamente compatíveis com os da ciência. A prioridade conferida à novidade é um desses exemplos. A importância dos suportes visuais (de que falarei noutro texto) é outro factor que influencia fortemente a decisão de publicar, ou não, notícias sobre projectos científicos. Outros valores, como a redundância de temas (“já escrevemos sobre pré-história no mês passado”) ou a maior ou menor atracção de certos temas (“de geologia, só escrevo sobre dinossauros”), levam igualmente os cientistas a temer o trabalho jornalístico.
Como noutras relações sociais, é fundamental continuar a construir pontes entre estas duas margens.
Em Maio deste ano, noticiei a descoberta de um raro artefacto de terracota, em forma de um touro, num sítio arqueológico do Baixo Alentejo. Dei-o como praticamente inédito naquele contexto, depois de discutir o assunto com o arqueólogo responsável pela intervenção e mais dois especialistas da área. Fui agora informado de que, no mesmo sítio arqueológico funerário, um ano antes, tinha sido descoberta uma figura semelhante, mas não valorizada pelo arqueólogo responsável, que não a publicou nem lhe deu particular relevo.
Na semana passada, o Público deu um raro destaque de capa à descoberta daquele que seria o artefacto judaico mais antigo da Península Ibérica, susceptível de rever as cronologias vigentes. Falou, ao que tudo indica, apenas com o arqueólogo responsável pela escavação e baseou a sua interpretação na sugestão de que os caracteres gravados numa tabuinha representavam um hebraico antigo. Depois da publicação, um arqueólogo conceituado sugeriu o carácter extemporâneo (e até errado) da interpretação num fórum de arqueologia.
O que nos dizem estes casos sobre a prática jornalística em terrenos científicos? Dizem, em primeira instância, que a relação entre perito e jornalista é francamente desigual: o primeiro estuda um tema durante décadas, o segundo analisa-o durante horas ou dias. É por isso fundamental que a interacção entre ambos seja leal e franca, esperando-se que ambos se abstenham de usar a abordagem “Eureka!” de cada vez que trabalham para produzir notícias sobre um projecto científico.
Em segundo lugar, a notícia é fragmentada. Não pode aspirar a produzir conhecimento sustentado numa comunidade, devendo, ao invés, sugerir pistas, destacar informação e abrir caminhos de pesquisa e leitura complementar para os leitores. A notícia complementa a divulgação em publicação científica, mais sólida e validada pelos pares.
Em terceiro lugar, o processo de selecção jornalística é influenciado por valores que não são necessariamente compatíveis com os da ciência. A prioridade conferida à novidade é um desses exemplos. A importância dos suportes visuais (de que falarei noutro texto) é outro factor que influencia fortemente a decisão de publicar, ou não, notícias sobre projectos científicos. Outros valores, como a redundância de temas (“já escrevemos sobre pré-história no mês passado”) ou a maior ou menor atracção de certos temas (“de geologia, só escrevo sobre dinossauros”), levam igualmente os cientistas a temer o trabalho jornalístico.
Como noutras relações sociais, é fundamental continuar a construir pontes entre estas duas margens.
Subscrever:
Mensagens (Atom)