quinta-feira, dezembro 01, 2005
Qualquer dia...
... o "Público" vai escrever que Catarina Eufémia nem sequer foi assassinada. Esbarrou acidentalmente com três balas.
domingo, outubro 30, 2005
Referências
Como se atribui o estatuto de referência a uma publicação? É por decreto régio que o “Expresso” é semanário de referência? É por autoproclamação que o “Público” é diário ímpar? Foram os pares que fizeram da “Visão” a revista semanal de eleição? Não. O estatuto de referência de um jornal ou revista é resultado de uma partilha implícita entre a publicação e a sua comunidade de leitores – partilha de valores, de escolhas, de prioridades e até de opinião face aos temas que marcam a sociedade portuguesa. Não são os especialistas de marketing que reposicionam um título como jornal de referência. Esta relação constrói-se durante meses e destrói-se numa só edição. Não se é de referência porque se quer. O estatuto é, acima de tudo, uma distinção que os outros nos dão. Ou não.
Nesta semana, não houve alma penada que não marcasse os 250 anos do terramoto de 1755. Li bons trabalhos na imprensa portuguesa. E outros menos bons. Li perspectivas ousadas (a “Pública” de hoje é excelente) e abordagens cretinas (abstenho-me, por solidariedade corporativa, de as discriminar).
Detenho-me no tratamento concedido às imagens históricas. Por definição, uma reportagem que visa vasculhar um evento no tempo necessita de iconografia de época. A sua identificação correcta e rigorosa é, em primeiro lugar, um serviço ao leitor. Não há nada mais frustrante do que encontrar o quadro, a gravura ou o mapa desejados despojados das referências ao autor, ao tipo de suporte e ao detentor do espólio.
Por outro lado, os direitos morais do autor não expiram passados 250 anos. É de mera justiça que se continue a creditar devidamente a autoria de uma gravura, mesmo que o autor da mesma e respectiva descendência esteja há muito para lá do Lestes. Se se credita, com tanto rigor, uma fotografia captada na véspera, não há motivo para esconder o nome do artista que produziu no passado a gravura, quadro ou mapa. Excepto se se tiver impresso a obra por baixo da mesa, sem autorização formal (e os novos scanners são uma maravilha!)
Por fim, parece-me típica de um certo chico-espertismo nacional a opção de recolher a mesma gravura de uma fonte internacional simplesmente para não ter de lidar com os preçários e disposições legais das instituições museológicas portuguesas. Uma curta visita ao Museu da Cidade em Lisboa revelará aos leitores onde estão os originais das principais iconografias utilizadas nos trabalhos jornalísticos dos últimos dias. Alguns submeteram-se aos critérios (admito que maçadores) do Museu e creditaram-nos rigorosamente. Outros não. Uns são de referência. Outros dizem que são.
Nesta semana, não houve alma penada que não marcasse os 250 anos do terramoto de 1755. Li bons trabalhos na imprensa portuguesa. E outros menos bons. Li perspectivas ousadas (a “Pública” de hoje é excelente) e abordagens cretinas (abstenho-me, por solidariedade corporativa, de as discriminar).
Detenho-me no tratamento concedido às imagens históricas. Por definição, uma reportagem que visa vasculhar um evento no tempo necessita de iconografia de época. A sua identificação correcta e rigorosa é, em primeiro lugar, um serviço ao leitor. Não há nada mais frustrante do que encontrar o quadro, a gravura ou o mapa desejados despojados das referências ao autor, ao tipo de suporte e ao detentor do espólio.
Por outro lado, os direitos morais do autor não expiram passados 250 anos. É de mera justiça que se continue a creditar devidamente a autoria de uma gravura, mesmo que o autor da mesma e respectiva descendência esteja há muito para lá do Lestes. Se se credita, com tanto rigor, uma fotografia captada na véspera, não há motivo para esconder o nome do artista que produziu no passado a gravura, quadro ou mapa. Excepto se se tiver impresso a obra por baixo da mesa, sem autorização formal (e os novos scanners são uma maravilha!)
Por fim, parece-me típica de um certo chico-espertismo nacional a opção de recolher a mesma gravura de uma fonte internacional simplesmente para não ter de lidar com os preçários e disposições legais das instituições museológicas portuguesas. Uma curta visita ao Museu da Cidade em Lisboa revelará aos leitores onde estão os originais das principais iconografias utilizadas nos trabalhos jornalísticos dos últimos dias. Alguns submeteram-se aos critérios (admito que maçadores) do Museu e creditaram-nos rigorosamente. Outros não. Uns são de referência. Outros dizem que são.
segunda-feira, outubro 03, 2005
Em Hibernação
Por manifesta impossibilidade, tenho descuidado a actualização do blogue. A partir de dia 10 de Outubro, conto retomar a actividade bloguística. Aos leitores, as minhas desculpas pela hibernação forçada do Ecosfera.
terça-feira, setembro 13, 2005
Responsabilidade na Blogosfera
Há semanas, ao consultar o blogue A Sul, deparei com um "post" interessantíssimo, onde se procurava ponderar as vantagens e desvantagens da construção do centro de estágios do Benfica no Seixal, em terrenos parcialmente inseridos em Reserva Ecológica. Não comentarei neste espaço a minha opinião particular sobre esse projecto em si, apadrinhado pela câmara local e com contrapartidas urbanísticas muito concretas. Para o caso, interessa-me apenas relatar o que se passou a seguir.
Pelo que dei conta, o blogue foi positivamente assaltado por leitores anónimos. Em 31 comentários, apenas dois estavam assinados com o nome do autor [um deles era meu]. Os restantes eram anónimos ou (ab)usavam de "nicknames".
Não contesto o princípio de utilização de alcunhas ou diminutivos na blogosfera. Parte do fascínio deste mundo virtual é precisamente a informalidade inerente à multiplicação de personalidades. Mas, como em tudo, há forçosamente fronteiras que deveriam ser respeitadas.
O insulto e a difamação também se escondem sob o manto dos "nicknames" ou do anonimato cobarde, que permite lançar pedras escondendo virtualmente a mão de quem as lançou.
No longo rol de acusações partidárias e desportivas [houve quem julgasse o citado projecto à luz da rivalidade Benfica-Sporting!?!] que ali foram escarrapachadas, há interesses institucionais bem evidentes e foi seguramente por isso que as vozes mais agressivas se mantiveram discretamente na turba.
Em "Júlio César", Shakespeare argumenta que os cobardes morrem várias vezes antes da sua morte, enquanto o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez. Não partilho o optimismo. É que Shakespeare não conhecia a blogosfera, o novo espaço público onde responsabilidade e anonimato caminham de mão dada.
Pelo que dei conta, o blogue foi positivamente assaltado por leitores anónimos. Em 31 comentários, apenas dois estavam assinados com o nome do autor [um deles era meu]. Os restantes eram anónimos ou (ab)usavam de "nicknames".
Não contesto o princípio de utilização de alcunhas ou diminutivos na blogosfera. Parte do fascínio deste mundo virtual é precisamente a informalidade inerente à multiplicação de personalidades. Mas, como em tudo, há forçosamente fronteiras que deveriam ser respeitadas.
O insulto e a difamação também se escondem sob o manto dos "nicknames" ou do anonimato cobarde, que permite lançar pedras escondendo virtualmente a mão de quem as lançou.
No longo rol de acusações partidárias e desportivas [houve quem julgasse o citado projecto à luz da rivalidade Benfica-Sporting!?!] que ali foram escarrapachadas, há interesses institucionais bem evidentes e foi seguramente por isso que as vozes mais agressivas se mantiveram discretamente na turba.
Em "Júlio César", Shakespeare argumenta que os cobardes morrem várias vezes antes da sua morte, enquanto o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez. Não partilho o optimismo. É que Shakespeare não conhecia a blogosfera, o novo espaço público onde responsabilidade e anonimato caminham de mão dada.
segunda-feira, setembro 12, 2005
Agulhas Acertadas
Não escondo a discordância com o modelo de gestão da rede de áreas protegidas proposto por João Menezes, então ainda como economista renomado. Mas é de legítima justiça elogiar o actual presidente do Instituto da Conservação da Natureza (ICN), que navegou, seguro, num mar de instabilidade política ao longo destes dez meses de mandato. Escolhido pelo executivo anterior, foi confirmado durante o período do governo de gestão e reconfirmado pela maioria socialista. Em nenhum momento, João Menezes politizou o ICN, o que é salutar. Deveria ser regra na República, mas tem sido excepção.
Releio agora passagens do seu discurso de tomada de posse e constato que, em Dezembro, o novel presidente anunciara a intenção ousada de proceder à rápida aprovação dos planos de ordenamento de parques e reservas ainda omissos, bem como a delimitação de reservas ecológicas e respectivos regulamentos. Estamos em Setembro e, no seu mandato, o Parque Natural da Arrábida, a Orla Costeira Vilamoura-Vila Real de Santo António, o Parque Natural do Douro Internacional, a Paisagem Protegida do Litoral de Esposende, as Albufeiras de Santa Água, Pisco, Tapada Grande, Divor e Alvito e as Reservas Ecológicas de Castelo Branco, Fundão, Mértola, Évora e Arraiolos foram finalmente dotados(as) dos indispensáveis instrumentos de governação. Leio agora, através de anúncio publicado no jornal "Público", que outras três áreas protegidas iniciarão o penoso e protocolar processo de discussão dos respectivos planos de ordenamento.
Ao mesmo tempo, foram transpostas para a legislação nacional as Directivas Aves e Habitats e a bem mais importante Lei-Quadro da Água. Apesar da desilusão que marcou o conhecimento público da essência do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, transparece a ideia de que a gestão ambiental portuguesa recomeça a entrar nos eixos. Para um comboio na iminência do descarrilamento, não está mau.
Releio agora passagens do seu discurso de tomada de posse e constato que, em Dezembro, o novel presidente anunciara a intenção ousada de proceder à rápida aprovação dos planos de ordenamento de parques e reservas ainda omissos, bem como a delimitação de reservas ecológicas e respectivos regulamentos. Estamos em Setembro e, no seu mandato, o Parque Natural da Arrábida, a Orla Costeira Vilamoura-Vila Real de Santo António, o Parque Natural do Douro Internacional, a Paisagem Protegida do Litoral de Esposende, as Albufeiras de Santa Água, Pisco, Tapada Grande, Divor e Alvito e as Reservas Ecológicas de Castelo Branco, Fundão, Mértola, Évora e Arraiolos foram finalmente dotados(as) dos indispensáveis instrumentos de governação. Leio agora, através de anúncio publicado no jornal "Público", que outras três áreas protegidas iniciarão o penoso e protocolar processo de discussão dos respectivos planos de ordenamento.
Ao mesmo tempo, foram transpostas para a legislação nacional as Directivas Aves e Habitats e a bem mais importante Lei-Quadro da Água. Apesar da desilusão que marcou o conhecimento público da essência do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, transparece a ideia de que a gestão ambiental portuguesa recomeça a entrar nos eixos. Para um comboio na iminência do descarrilamento, não está mau.
sexta-feira, agosto 26, 2005
Pela Porta do Cavalo
Praticamente desde o dia em que o primeiro comerciante decidiu que valeria a pena trocar parte da sua mercadoria excedentária com outro ser humano que as relações comerciais se baseiam na boa fé. Um contrato apalavrado servia de vínculo. Um aperto de mão fechava o acordo. Pressuponha-se que os dois, ou mais, parceiros comerciais cumpririam as suas obrigações contratuais. Provavelmente, a prática foi válida até ao dia em que alguém abusou da boa fé e modificou os termos do acordo a meio da operação. E a confiança nunca mais foi o fiel da balança.
Sem tirar nem pôr, foi isso claramente que o Estado português fez no longo e inútil processo de discussão do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida (POPNArr). Organizou sessões de discussão pública, levantamentos de peritagem, revisões e mais revisões do texto original. Em vão. Gastou-se saliva e retórica em Sesimbra, Palmela e Setúbal.
A publicação sorrateira do novo POPNArr no “Diário da República” tem como primeira leitura o total desrespeito pelas várias propostas – válidas e inválidas – lançadas em sede própria, nas sessões de discussão pública. É um documento cego perante a realidade com que foi confrontado no terreno. Mas isso já esperava, admito. As sessões de discussão pública em Portugal normalmente são uma fase inútil, mas essencial, na longa encenação da democracia participativa da República. Servem para marcar o ponto e permitem ao governante segurar o documento final na Assembleia, elevá-lo bem alto e dizer: “Eu escutei o povo. A sua voz para aqui verteu nobres advertências”. As sessões de discussão pública estão para o governo da nação como as reuniões de condóminos para a gestão dos imóveis: são uma maçada protocolar.
Retiro da acta da sessão de discussão pública de Palmela, em 12 de Março de 2003, a seguinte passagem: «De uma forma geral, o público presente está contra esta proposta de Plano de Ordenamento e sugere que se devia começar tudo de novo, começando por ouvir as populações e invocando o direito à participação (…)» Resposta protocolar: não se mexeu na essência do POPNA. Mas era esperado.
Não esperava porém o incrível volte-face que marcou a publicação do documento. Qual Nevile Chamberlain em Berchtesgaden (1938), radiante por trazer um documento assinado por Hitler, o Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional faz publicar o POPNArr, onde, a certo passo, consta:
«[Está proibida] a deposição ou armazenamento, ainda que temporário, de entulhos, de inertes ou de qualquer tipo de resíduos, excepto se relacionados com as actividades previstas nos artigos 29.º e 30.º»
E o que dizem os inócuos artigos em causa? Abrangem a actividade extractiva (flagelo que assola a Arrábida há pelo menos quatro décadas e que continua com carta branca ad eternum) e a indústria cimenteira. Neste caso, «ficam sujeitas a avaliação de impacte ambiental todas as alterações de actividade industrial e de extracção de inertes dentro do perímetro definido na planta síntese como indústria cimenteira, nomeadamente ampliação de instalações, alteração de características ou de funcionamento.» Ou seja, o iluminado que redigiu este artigo excluiu a proibição expressa de co-incineração nas cimenteiras da região. Como diria Churchill, o apaziguador é o homem que alimenta o crocodilo na esperança de ser o último devorado. Mas sê-lo-á mais cedo ou mais tarde.
Há mais uma surpresa. A versão que foi dada a discutir aos parceiros incluía uma limitação de superfície destinada à actividade extractiva das pedreiras. Na versão publicada, o limite (entre as cotas 120 – 40 metros) desapareceu com pózinhos de perlimpimpim. Não há portanto limites à extracção das pedreiras. Para a serra e em força, é a mensagem enviada aos crocodilos.
Posto isto, para quem se congratulou pela invulgar presença de políticos “verdes” neste executivo, resta a satisfação inequívoca de valer mesmo a pena ter personalidades influentes em lugares importantes.
Sem tirar nem pôr, foi isso claramente que o Estado português fez no longo e inútil processo de discussão do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida (POPNArr). Organizou sessões de discussão pública, levantamentos de peritagem, revisões e mais revisões do texto original. Em vão. Gastou-se saliva e retórica em Sesimbra, Palmela e Setúbal.
A publicação sorrateira do novo POPNArr no “Diário da República” tem como primeira leitura o total desrespeito pelas várias propostas – válidas e inválidas – lançadas em sede própria, nas sessões de discussão pública. É um documento cego perante a realidade com que foi confrontado no terreno. Mas isso já esperava, admito. As sessões de discussão pública em Portugal normalmente são uma fase inútil, mas essencial, na longa encenação da democracia participativa da República. Servem para marcar o ponto e permitem ao governante segurar o documento final na Assembleia, elevá-lo bem alto e dizer: “Eu escutei o povo. A sua voz para aqui verteu nobres advertências”. As sessões de discussão pública estão para o governo da nação como as reuniões de condóminos para a gestão dos imóveis: são uma maçada protocolar.
Retiro da acta da sessão de discussão pública de Palmela, em 12 de Março de 2003, a seguinte passagem: «De uma forma geral, o público presente está contra esta proposta de Plano de Ordenamento e sugere que se devia começar tudo de novo, começando por ouvir as populações e invocando o direito à participação (…)» Resposta protocolar: não se mexeu na essência do POPNA. Mas era esperado.
Não esperava porém o incrível volte-face que marcou a publicação do documento. Qual Nevile Chamberlain em Berchtesgaden (1938), radiante por trazer um documento assinado por Hitler, o Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional faz publicar o POPNArr, onde, a certo passo, consta:
«[Está proibida] a deposição ou armazenamento, ainda que temporário, de entulhos, de inertes ou de qualquer tipo de resíduos, excepto se relacionados com as actividades previstas nos artigos 29.º e 30.º»
E o que dizem os inócuos artigos em causa? Abrangem a actividade extractiva (flagelo que assola a Arrábida há pelo menos quatro décadas e que continua com carta branca ad eternum) e a indústria cimenteira. Neste caso, «ficam sujeitas a avaliação de impacte ambiental todas as alterações de actividade industrial e de extracção de inertes dentro do perímetro definido na planta síntese como indústria cimenteira, nomeadamente ampliação de instalações, alteração de características ou de funcionamento.» Ou seja, o iluminado que redigiu este artigo excluiu a proibição expressa de co-incineração nas cimenteiras da região. Como diria Churchill, o apaziguador é o homem que alimenta o crocodilo na esperança de ser o último devorado. Mas sê-lo-á mais cedo ou mais tarde.
Há mais uma surpresa. A versão que foi dada a discutir aos parceiros incluía uma limitação de superfície destinada à actividade extractiva das pedreiras. Na versão publicada, o limite (entre as cotas 120 – 40 metros) desapareceu com pózinhos de perlimpimpim. Não há portanto limites à extracção das pedreiras. Para a serra e em força, é a mensagem enviada aos crocodilos.
Posto isto, para quem se congratulou pela invulgar presença de políticos “verdes” neste executivo, resta a satisfação inequívoca de valer mesmo a pena ter personalidades influentes em lugares importantes.
quinta-feira, agosto 18, 2005
Mestria Presidencial
"All the President’s Spin" é um livro notável, publicado no final do ano passado por um trio de blogueiros que se dedica exclusivamente a analisar o discurso presidencial de George W. Bush e a sua relação directa com a realidade factual. Não é, asseguram os autores, um manifesto de contestação ao programa de governo de Bush. Disso, se encarregam outros livros. Ben Fritz, Bryan Keefer e Brendan Nyhan colocam o enfoque no campo jornalístico do discurso: que correspondência têm as declarações públicas deste (e de outros) presidente com a realidade factual? Que tipo de estratégias de Relações Públicas são usadas por esta administração para fazer passar a mensagem? Que tipo de pudor, ou falta dele, norteiam o discurso público, quando a missão primordial se tornou a persuasão de massas?
Um exemplo clássico: "Em Agosto de 2001, o presidente Bush anunciou uma nova regulamentação para a utilização de células estaminais em projectos de pesquisa biomédica financiados pelas entidades federais. ‘Existem já mais de sessenta linhas de células estaminais geneticamente diversificadas’, anunciou ele, num discurso transmitido pela televisão. Concluiu por isso que ‘devemos atribuir fundos federais apenas para utilização em pesquisa nestas linhas de células estaminais já existentes’"
Desejosos de obter acesso a estas linhas ‘já existentes’, os investigadores rapidamente perceberam o logro, quando Tommy Thompson, secretário de Estado para a Saúde e Serviços Humanos, admitiu que apenas 24 ou 25 linhas estavam na verdade ‘totalmente desenvolvidas’." (tradução da minha autoria)
Concluem os autores: "Embora 60 linhas, de facto, existissem, era imprevisível se muitas delas ficariam disponíveis para os investigadores (…) Estas declarações públicas são verdadeiras, mas as palavras de Bush são cuidadosamente seleccionadas para deixar uma falsa impressão. O presidente consegue esgueirar-se evitando a acusação de ter mentido, ao mesmo tempo que mantém, inalterado, o seu programa. Uma das principais razões [para esta estratégia funcionar] é o facto de as declarações assentarem numa verdade parcial sobre um tema extremamente complexo. (…) E estes logros abrangem quase todas as principais medidas do executivo." (tradução da minha autoria).
A difusão de falsas premissas - tecnicamente correctas, mas não totalmente verdadeiras - é apenas uma das estratégias identificadas em "All the President's Spin". A administração Bush tornou-se também hábil na designação de nomes sonantes para planos pouco ousados. Quem ousa abertamente contestar um plano ambiental apelidado de "Florestas Saudáveis" ou um pacote legislativo sobre poluição atmosférica apelidado de "Céus Mais Limpos"? O rótulo das regulamentações propostas condiciona a cobertura mediática, defendem os autores.
Bush tornou-se igualmente mestre na arte de designação de premissas não verificáveis. Quando ligou o Sudão a processos de enriquecimento de urânio ou acusou Saddam de ter papel activo nos atentados de 11 de Setembro, o presidente sabia antecipadamente que estas premissas não eram facilmente negáveis. Poucos no mundo poderiam refutar abertamente a acusação. E, entretanto, o jornalista amplificou mais uma história presidencial.
Fritz, Keefer e Nyhan juntam ainda a terrível hostilidade da administração Bush face aos jornalistas como um elemento adicional da estratégia de condicionamento da cobertura noticiosa. Os ataques directos a jornalistas autores de histórias desfavoráveis prejudicam o jornal perante a audiência e dificultam a tarefa do repórter em ocasiões futuras. Os autores do livro argumentam que assim se dificulta a acção contrária de jornalistas mais intervenientes.
Desenganem-se, porém, os detractores da administração Bush. O livro procura historiar o namoro crescente entre os presidentes norte-americanos e a arte das relações públicas. O século XX marca o início da era da campanha permanente, escreveu Sydney Blumenthal. Este livro procura demonstrar a veracidade da premissa.
Woodrow Wilson, em 1917, criou um Comité de Informação Pública, destinado a assegurar apoios para a campanha americana na Primeira Grande Guerra. A utilização de fotografia e cinema deram início à era dos media visuais aplicados à persuasão política. Com sucesso.
Em 1920, Warren Harding recorreu a um publicitário para ganhar a eleição. Habituado a vender carne fumada e outros produtos de supermercado, o publicitário pouco teve de mudar na sua abordagem profissional de um político. Deu-lhe visibilidade, fornecendo a informação de que os media necessitavam em formatos consumíveis. Harding foi assim o primeiro político a dar o lançamento de saída de jogos de basebol, participou em conferências de imprensa com trajes desportivos, iniciou a era das frases curtas e simbólicas, em que a declaração é apenas mais um elemento, num cenário de luzes e cores.
De Franklin D. Roosevelt herdou o mundo os primeiros gabinetes de relações públicas inseridos em vários ministérios-chave e destinados a ampliar os sucessos quotidianos e a esconder os falhanços embaraçosos. O uso da rádio fez também furor nos três mandatos de Roosevelt, que a utilizou sagazmente.
A televisão foi aproveitada ao máximo por John F. Kennedy, na década de 1960. À vontade perante a câmara, Kennedy tornou-se mestre na arte de domesticação dos media para anúncios de política em directo. Datam desta presidência as primeiras conferências de imprensa transmitidas em directo.
De Nixon, apesar da saída tempestuosa de cena, a América conheceu um espantoso Gabinete de Comunicações, que coordenava sondagens regulares de opinião – elas sim, a verdadeira bússola da administração Pouco hábil perante as câmaras, Nixon abdicou das entrevistas em directo e privilegiou os esforços de controlo dos jornalistas que normalmente cobrem a actualidade noticiosa da Casa Branca. Percebeu correctamente que, controlando o Press Corps, controlaria grande parte do fluxo noticioso sobre si.
Reagan apreciou os mandatos de Nixon e melhorou o estilo. Foi o primeiro a explorar as estratégias modernas de Relações Públicas, incluindo aparições mediáticas em fundos dramáticos (quem não se lembra do espantoso fundo azul, com estrelas brancas, em que Reagan deu a notícia da nova corrida espacial em que a América se lançara?) e a utilização de linguagem testada previamente em grupos de controlo.
Uma história serve de metáfora para os dois mandatos de Reagan, dizem os autores do livro :
A correspondente da CBS difundiu uma notícia sobre as discrepâncias entre as declarações públicas do presidente e as políticas efectivamente desenvolvidas. Ao fazê-lo, esperava críticas veementes da administração. Qual não foi o espanto quando escutou, de um dos conselheiros do presidente, um "agradecimento"? "Quando mostras quatro minutos e meio de grandes imagens de Reagan, nas suas declarações públicas por nós ensaiadas, em fundos dramáticos e cativantes, ninguém escuta o que tu estás a dizer em fundo. Só fixam o presidente"
Clinton modernizou a abordagem mediática e aplicou o conceito de grupos de discussão interna, destinados a colocar o presidente sob fogo mediático em sessões de ensaio de perguntas incómodas. Tal como Bush, também jogou com as palavras: quem não se lembra da ilusão de Clinton: "Não tive relações sexuais com essa mulher". Uma meia verdade no meio da mentira.
A eficaz estratégia de Bush é pois legítima herdeira de décadas de relação tensa entre o poder político, os meios de comunicação e a audiência. Um jogo do gato e do rato, no qual o rato tenta continuamente iludir o predador, alimentando-o com meias verdades – nada absolutamente falso, mas também nada totalmente verdadeiro - e com técnicas arrojadas de venda.
Diz Chris Matthews, da PBS, a propósito dos meses que se seguiram à guerra do Iraque: "Nunca nos ocorreu o que iria acontecer depois do fim das hostilidades abertas. Fomos tão bombardeados com a "guerra de libertação", que nunca nos ocorreu indagar o que aconteceria depois. Pensámos sempre em libertação porque era essa a formatação do discurso presidencial. Hoje, pensamos claramente em ocupação e não apenas em libertação."
Um livro a ler, asseguro.
Um exemplo clássico: "Em Agosto de 2001, o presidente Bush anunciou uma nova regulamentação para a utilização de células estaminais em projectos de pesquisa biomédica financiados pelas entidades federais. ‘Existem já mais de sessenta linhas de células estaminais geneticamente diversificadas’, anunciou ele, num discurso transmitido pela televisão. Concluiu por isso que ‘devemos atribuir fundos federais apenas para utilização em pesquisa nestas linhas de células estaminais já existentes’"
Desejosos de obter acesso a estas linhas ‘já existentes’, os investigadores rapidamente perceberam o logro, quando Tommy Thompson, secretário de Estado para a Saúde e Serviços Humanos, admitiu que apenas 24 ou 25 linhas estavam na verdade ‘totalmente desenvolvidas’." (tradução da minha autoria)
Concluem os autores: "Embora 60 linhas, de facto, existissem, era imprevisível se muitas delas ficariam disponíveis para os investigadores (…) Estas declarações públicas são verdadeiras, mas as palavras de Bush são cuidadosamente seleccionadas para deixar uma falsa impressão. O presidente consegue esgueirar-se evitando a acusação de ter mentido, ao mesmo tempo que mantém, inalterado, o seu programa. Uma das principais razões [para esta estratégia funcionar] é o facto de as declarações assentarem numa verdade parcial sobre um tema extremamente complexo. (…) E estes logros abrangem quase todas as principais medidas do executivo." (tradução da minha autoria).
A difusão de falsas premissas - tecnicamente correctas, mas não totalmente verdadeiras - é apenas uma das estratégias identificadas em "All the President's Spin". A administração Bush tornou-se também hábil na designação de nomes sonantes para planos pouco ousados. Quem ousa abertamente contestar um plano ambiental apelidado de "Florestas Saudáveis" ou um pacote legislativo sobre poluição atmosférica apelidado de "Céus Mais Limpos"? O rótulo das regulamentações propostas condiciona a cobertura mediática, defendem os autores.
Bush tornou-se igualmente mestre na arte de designação de premissas não verificáveis. Quando ligou o Sudão a processos de enriquecimento de urânio ou acusou Saddam de ter papel activo nos atentados de 11 de Setembro, o presidente sabia antecipadamente que estas premissas não eram facilmente negáveis. Poucos no mundo poderiam refutar abertamente a acusação. E, entretanto, o jornalista amplificou mais uma história presidencial.
Fritz, Keefer e Nyhan juntam ainda a terrível hostilidade da administração Bush face aos jornalistas como um elemento adicional da estratégia de condicionamento da cobertura noticiosa. Os ataques directos a jornalistas autores de histórias desfavoráveis prejudicam o jornal perante a audiência e dificultam a tarefa do repórter em ocasiões futuras. Os autores do livro argumentam que assim se dificulta a acção contrária de jornalistas mais intervenientes.
Desenganem-se, porém, os detractores da administração Bush. O livro procura historiar o namoro crescente entre os presidentes norte-americanos e a arte das relações públicas. O século XX marca o início da era da campanha permanente, escreveu Sydney Blumenthal. Este livro procura demonstrar a veracidade da premissa.
Woodrow Wilson, em 1917, criou um Comité de Informação Pública, destinado a assegurar apoios para a campanha americana na Primeira Grande Guerra. A utilização de fotografia e cinema deram início à era dos media visuais aplicados à persuasão política. Com sucesso.
Em 1920, Warren Harding recorreu a um publicitário para ganhar a eleição. Habituado a vender carne fumada e outros produtos de supermercado, o publicitário pouco teve de mudar na sua abordagem profissional de um político. Deu-lhe visibilidade, fornecendo a informação de que os media necessitavam em formatos consumíveis. Harding foi assim o primeiro político a dar o lançamento de saída de jogos de basebol, participou em conferências de imprensa com trajes desportivos, iniciou a era das frases curtas e simbólicas, em que a declaração é apenas mais um elemento, num cenário de luzes e cores.
De Franklin D. Roosevelt herdou o mundo os primeiros gabinetes de relações públicas inseridos em vários ministérios-chave e destinados a ampliar os sucessos quotidianos e a esconder os falhanços embaraçosos. O uso da rádio fez também furor nos três mandatos de Roosevelt, que a utilizou sagazmente.
A televisão foi aproveitada ao máximo por John F. Kennedy, na década de 1960. À vontade perante a câmara, Kennedy tornou-se mestre na arte de domesticação dos media para anúncios de política em directo. Datam desta presidência as primeiras conferências de imprensa transmitidas em directo.
De Nixon, apesar da saída tempestuosa de cena, a América conheceu um espantoso Gabinete de Comunicações, que coordenava sondagens regulares de opinião – elas sim, a verdadeira bússola da administração Pouco hábil perante as câmaras, Nixon abdicou das entrevistas em directo e privilegiou os esforços de controlo dos jornalistas que normalmente cobrem a actualidade noticiosa da Casa Branca. Percebeu correctamente que, controlando o Press Corps, controlaria grande parte do fluxo noticioso sobre si.
Reagan apreciou os mandatos de Nixon e melhorou o estilo. Foi o primeiro a explorar as estratégias modernas de Relações Públicas, incluindo aparições mediáticas em fundos dramáticos (quem não se lembra do espantoso fundo azul, com estrelas brancas, em que Reagan deu a notícia da nova corrida espacial em que a América se lançara?) e a utilização de linguagem testada previamente em grupos de controlo.
Uma história serve de metáfora para os dois mandatos de Reagan, dizem os autores do livro :
A correspondente da CBS difundiu uma notícia sobre as discrepâncias entre as declarações públicas do presidente e as políticas efectivamente desenvolvidas. Ao fazê-lo, esperava críticas veementes da administração. Qual não foi o espanto quando escutou, de um dos conselheiros do presidente, um "agradecimento"? "Quando mostras quatro minutos e meio de grandes imagens de Reagan, nas suas declarações públicas por nós ensaiadas, em fundos dramáticos e cativantes, ninguém escuta o que tu estás a dizer em fundo. Só fixam o presidente"
Clinton modernizou a abordagem mediática e aplicou o conceito de grupos de discussão interna, destinados a colocar o presidente sob fogo mediático em sessões de ensaio de perguntas incómodas. Tal como Bush, também jogou com as palavras: quem não se lembra da ilusão de Clinton: "Não tive relações sexuais com essa mulher". Uma meia verdade no meio da mentira.
A eficaz estratégia de Bush é pois legítima herdeira de décadas de relação tensa entre o poder político, os meios de comunicação e a audiência. Um jogo do gato e do rato, no qual o rato tenta continuamente iludir o predador, alimentando-o com meias verdades – nada absolutamente falso, mas também nada totalmente verdadeiro - e com técnicas arrojadas de venda.
Diz Chris Matthews, da PBS, a propósito dos meses que se seguiram à guerra do Iraque: "Nunca nos ocorreu o que iria acontecer depois do fim das hostilidades abertas. Fomos tão bombardeados com a "guerra de libertação", que nunca nos ocorreu indagar o que aconteceria depois. Pensámos sempre em libertação porque era essa a formatação do discurso presidencial. Hoje, pensamos claramente em ocupação e não apenas em libertação."
Um livro a ler, asseguro.
Apre! À terceira, cai quem quer
A serra de Monchique não é particularmente bonita. Repleta de eucaliptos, circunda perigosamente várias aldeias. Há anos que não sofre intervenções de manutenção – nem limpeza da mata, nem abertura de caminhos, nem criação de clareiras. Em 2003, ardeu brutalmente. O fogo consumiu o que quis, enquanto os bombeiros olhavam, impotentes, para a queima.
Pensar-se-ia que a tragédia serviria de emenda. Debalde. No ano passado, ardeu o que faltava. Mais grave: o argumento do filme foi o mesmo: pontas de incêndio simultâneas, eucaliptos e pinheiros a arder, um braseiro impossível de suportar. Carros de bombeiro impossibilitados de chegar ao núcleo do incêndio; aldeias evacuadas; muita berraria; muita ameaça; muita queixa.
Este ano, já não não havia para arder. Pensar-se-ia que, quem queimou a mão direita e a esquerda em dois anos consecutivos, apressar-se-ia a planear o novo coberto florestal de Monchique. Pois sim. A imagem, captada por mão amiga e enviada para o Ecosfera, dá conta da inovadora técnica de prevenção florestal levada a cabo na região durante o mês de Agosto: braçadas de madeira seca foram acumuladas junto à estrada, em molhes cuidadosamente unidos. Não um, nem dois, nem três. Estendem-se alegremente ao longo da estrada.
O descuido faz lembrar a anedota do homem que, fechado às escuras no paiol de dinamite, começou por procurar o interruptor. Não encontrou. Tacteou em busca da lanterna. Não a descobriu. Lembrou-se então que tinha no bolso uma carteira de fósforos…
quarta-feira, agosto 17, 2005
Que saudades...
... dos tempos em que os colunistas do "Público" não se pegavam entre si. Vital Moreira arrelia Mário Pinto. Mário Pinto bombardeia Vital Moreira. Miguel Sousa Tavares provoca Eduardo Prado Coelho e Vital Moreira. O poeta, insultado, cala e come. O professor, despeitado, pega na bazuca. Na última página, Vasco Pulido Valente, no auge do delirius tremens em que se encontra, pega-se com todos e faz remontar ao século XIX todos os males da civilização - desde a recandidatura de Mário Soares à mini-saia travada. Tréguas, por favor. Há quem não compre o "Público" todos os dias e, pelo andar da carruagem, vai ser preciso comprar um roteiro de telenovelas para acompanhar todas as provocações.
sexta-feira, agosto 12, 2005
Pois é!
Da campanha por Lisboa: Carrilho quer o túnel só até à rua Castilho; Santana quer vê-lo até à Fontes Pereira do Melo; Carmona Rodrigues cala-se e assobia para o ar; Ruben Carvalho quer tapá-lo e esquecê-lo; o advogado Sá Fernandes até as pedras da calçada embargou, mas não sabe o que há-de fazer com o fosso; e Maria José Nogueira Pinto desconfia que há um túnel na cidade, mas não tem a certeza.
"Fazemos campanha com poesia; governamos com prosa", disse Mario Cuomo, antigo governador de Nova Iorque.
Onde diabo estão os nossos versos?
"Fazemos campanha com poesia; governamos com prosa", disse Mario Cuomo, antigo governador de Nova Iorque.
Onde diabo estão os nossos versos?
quarta-feira, agosto 10, 2005
Perdão?
«Comigo a presidente da Câmara de Oeiras, não haverá vereadores a acumular o que quer que seja.» - Isaltino Morais. Entrevista à "Montra de Casas", n.º 7, Agosto de 2005
Nao chega?
Os alertas, de tão frequentes, já não comovem, independentemente da fórmula criativa que os jornalistas encontram para os descrever. O Instituto da Conservação da Natureza faliu. De norte a sul, os funcionários directos e indirectos da instituição sofrem na pele a crise. Há subsídios em atraso. Uma tonelada de serviços contratados não foi paga, nem deverá ser nos próximos meses. Horas extraordinárias requisitadas não foram saldadas. Não há dinheiro para os projectos nacionais e internacionais, com a agravante de, no caso destes últimos, o financiamento comunitário depender das verbas do governo português: se faltar a contrapartida portuguesa, as verbas europeias são devolvidas à fonte.
A lista continua, maçadora. Não há verbas para indemnizar pastores pela perda de rebanhos. Não há dinheiro para incentivar esforços de reflorestação. As áreas protegidas não têm fundos de maneio para telefone, fax, gasolina. Como nas velhas colónias no difícil período pós-independência, os carros avariados são abandonados no local, inúteis, sem dinheiro nem vontade que os recupere.
De vez em quando, algum iluminado lança para o ar a ideia da reorganização do Instituto da Conservação da Natureza (ICN), colando-o a frases ocas. Segundo as várias teses, o ICN será profissionalizado, ganhará independência, será mais autónomo, será menos autónomo, deverá gerar receitas, está acima dessas minudências e não deve ser pensado numa lógica economicista…
Em Outubro de 2003, o executivo de Durão Barroso quis transformá-lo num braço da Direcção-Geral de Florestas, remédio santo para curar de vez o debate da independência: sob esta alçada, o Instituto teria o mesmo peso político que o Gabinete de Apoio ao Registo Automóvel. Parecendo que não, era chato para a conservação da natureza.
Isaltino de Morais, esse paladino da seriedade, sugeriu então a municipalização das áreas protegidas. Estou de acordo num ponto com o actual candidato à CM Oeiras: se a sua proposta tem seguido avante, em dez anos terminavam os problemas das áreas protegidas. E o Gerês podia ser hoje um promissor empreendimento de turismo rural.
O executivo de Santana Lopes partiu em mil bocados o orçamento do ICN que, de 2004 para 2005, baixou de 26 milhões de euros para 11,5 (quebra de 56%). Problema de somenos porque, com a transformação do ICN em sociedade anónima, as receitas jorrariam continuamente.
Data do final de 2004 a frase emblemática do ministro Nobre Guedes, sugerindo a gestão criativa que, com menos, pudesse fazer mais. Cativada, a sociedade civil aceitou o desafio. Da minha parte, ofereci então as minhas propostas (Ver Sinais de Fumo). Debalde.
Mérito lhe seja dado, José Socrates inscreveu no seu programa de candidatura a necessidade de restituir a dignidade da instituição, acabando com o humilhante peditório anual, mal o calendário chega a Junho e já não há dinheiro para o resto do ano. Veremos o que vale o programa eleitoral quando chegar a discussão do Orçamento para 2006.
Nestes quatro meses de governação, o ministro Nunes Correia até tem desbloqueado verbas de emergência e merece elogios pelas iniciativas de retirar às autarquias quaisquer poderes sobre a nomeação dos directores de áreas protegidas. A prometida Lei-Quadro de Conservação da Natureza gerou também entusiasmo, mas, em rigor, nada transpirou ainda sobre a nova regulamentação.
O que acontecerá ao ICN neste cenário? Ao leme da instituição está um investigador que coordenou o agora célebre estudo Parques XXI, advogando a empresarialização do instituto (sempre sob a égide pública), alicerçada no equilíbrio de receitas do instituto (e não só das áreas protegidas). O projecto assenta na noção de que há serviços que o ICN hoje presta que deveriam ser cobrados – e bem cobrados – a instituições públicas e privadas. Funciona também sob o princípio de que o acesso às áreas protegidas, embora inscrito na Lei de Bases do Ambiente como bem colectivo desta e das próximas gerações, deverá compensar a sua gestão.
Discordo na essência destes fundamentos. Tenho escrito repetidamente que o património natural tem um valor intrínseco, não quantificável e sobretudo não negociável. Há serviços sob a égide do Estado que têm missões simbólicas. Cabe-lhes por um lado assegurar direitos fundamentais da sociedade, como a defesa, a segurança pública ou saúde. E valem, por outro, como símbolos das prioridades estatais, dos serviços considerados essenciais que o Estado presta aos cidadãos. A Brigada de Crimes Informáticos da Polícia Judiciária não gera riqueza, nem é gerida como uma empresa (embora lhe seja pedido naturalmente que cumpra o seu orçamento). O serviço de pediatria do Hospital de Santa Maria não gera mais-valias, para além de permitir a renovação a longo prazo da força de trabalho. Porque diabo terá o ICN, ou uma área protegida isoladamente, de funcionar como uma empresa? A sua função primordial não chega?
A lista continua, maçadora. Não há verbas para indemnizar pastores pela perda de rebanhos. Não há dinheiro para incentivar esforços de reflorestação. As áreas protegidas não têm fundos de maneio para telefone, fax, gasolina. Como nas velhas colónias no difícil período pós-independência, os carros avariados são abandonados no local, inúteis, sem dinheiro nem vontade que os recupere.
De vez em quando, algum iluminado lança para o ar a ideia da reorganização do Instituto da Conservação da Natureza (ICN), colando-o a frases ocas. Segundo as várias teses, o ICN será profissionalizado, ganhará independência, será mais autónomo, será menos autónomo, deverá gerar receitas, está acima dessas minudências e não deve ser pensado numa lógica economicista…
Em Outubro de 2003, o executivo de Durão Barroso quis transformá-lo num braço da Direcção-Geral de Florestas, remédio santo para curar de vez o debate da independência: sob esta alçada, o Instituto teria o mesmo peso político que o Gabinete de Apoio ao Registo Automóvel. Parecendo que não, era chato para a conservação da natureza.
Isaltino de Morais, esse paladino da seriedade, sugeriu então a municipalização das áreas protegidas. Estou de acordo num ponto com o actual candidato à CM Oeiras: se a sua proposta tem seguido avante, em dez anos terminavam os problemas das áreas protegidas. E o Gerês podia ser hoje um promissor empreendimento de turismo rural.
O executivo de Santana Lopes partiu em mil bocados o orçamento do ICN que, de 2004 para 2005, baixou de 26 milhões de euros para 11,5 (quebra de 56%). Problema de somenos porque, com a transformação do ICN em sociedade anónima, as receitas jorrariam continuamente.
Data do final de 2004 a frase emblemática do ministro Nobre Guedes, sugerindo a gestão criativa que, com menos, pudesse fazer mais. Cativada, a sociedade civil aceitou o desafio. Da minha parte, ofereci então as minhas propostas (Ver Sinais de Fumo). Debalde.
Mérito lhe seja dado, José Socrates inscreveu no seu programa de candidatura a necessidade de restituir a dignidade da instituição, acabando com o humilhante peditório anual, mal o calendário chega a Junho e já não há dinheiro para o resto do ano. Veremos o que vale o programa eleitoral quando chegar a discussão do Orçamento para 2006.
Nestes quatro meses de governação, o ministro Nunes Correia até tem desbloqueado verbas de emergência e merece elogios pelas iniciativas de retirar às autarquias quaisquer poderes sobre a nomeação dos directores de áreas protegidas. A prometida Lei-Quadro de Conservação da Natureza gerou também entusiasmo, mas, em rigor, nada transpirou ainda sobre a nova regulamentação.
O que acontecerá ao ICN neste cenário? Ao leme da instituição está um investigador que coordenou o agora célebre estudo Parques XXI, advogando a empresarialização do instituto (sempre sob a égide pública), alicerçada no equilíbrio de receitas do instituto (e não só das áreas protegidas). O projecto assenta na noção de que há serviços que o ICN hoje presta que deveriam ser cobrados – e bem cobrados – a instituições públicas e privadas. Funciona também sob o princípio de que o acesso às áreas protegidas, embora inscrito na Lei de Bases do Ambiente como bem colectivo desta e das próximas gerações, deverá compensar a sua gestão.
Discordo na essência destes fundamentos. Tenho escrito repetidamente que o património natural tem um valor intrínseco, não quantificável e sobretudo não negociável. Há serviços sob a égide do Estado que têm missões simbólicas. Cabe-lhes por um lado assegurar direitos fundamentais da sociedade, como a defesa, a segurança pública ou saúde. E valem, por outro, como símbolos das prioridades estatais, dos serviços considerados essenciais que o Estado presta aos cidadãos. A Brigada de Crimes Informáticos da Polícia Judiciária não gera riqueza, nem é gerida como uma empresa (embora lhe seja pedido naturalmente que cumpra o seu orçamento). O serviço de pediatria do Hospital de Santa Maria não gera mais-valias, para além de permitir a renovação a longo prazo da força de trabalho. Porque diabo terá o ICN, ou uma área protegida isoladamente, de funcionar como uma empresa? A sua função primordial não chega?
terça-feira, agosto 09, 2005
Cúmulos
Cúmulo do sadismo: organizar a Volta a Portugal na primeira quinzena de Agosto - previsivelmente nos dias mais quentes do ano.
Cúmulo do masoquismo: competir na Volta a Portugal organizada na primeira quinzena de Agosto.
Cúmulo do voyeurismo: Ver na televisão a Volta a Portugal, organizada na primeira quinzena de Agosto, para ver como "os rapazes se safam com o calor da serra".
Cúmulo do masoquismo: competir na Volta a Portugal organizada na primeira quinzena de Agosto.
Cúmulo do voyeurismo: Ver na televisão a Volta a Portugal, organizada na primeira quinzena de Agosto, para ver como "os rapazes se safam com o calor da serra".
terça-feira, agosto 02, 2005
Um fiscal
Foi hoje! Já lá vão dois anos que, por mudança da sede da empresa onde trabalho, passei a deslocar-me com mais regularidade de metropolitano. Nunca, nestes mais de 700 dias de viagens por baixo da terra, vi um fiscal da empresa Metropolitano de Lisboa. Cheguei a pensar que a sua existência era um mito urbano, uma lenda que se contava aos mais novos. Afinal, estes seres que trabalham no subsolo da cidade existem mesmo. E trabalham nas estações. Eu próprio observei. Ninguém me contou.
É certo que o indivíduo em causa estava sentado numa cabina que dizia “Encerrada”. E parecia dormitar, antes de ser violentamente acordado por um utente que, imagine-se, queria saber se precisava de mudar de linha no Marquês de Pombal. A farda estava desabotoada, mas cobria parcialmente o tronco do senhor. E o olhar de falcão que ele catrapiscava regularmente para o monitor não enganava, mesmo que parcialmente prejudicado por uma ramela teimosa.
Dizem as normas de utilização do Metropolitano de Lisboa que, e cito, os Agentes de fiscalização são devidamente ajuramentados, sendo considerados, para todos os efeitos e no exercício das suas funções, agentes de autoridade pública.
Nos casos de infracção ou suspeita de infracção, os Agentes (com maiúscula, assim mesmo, para acentuar a autoridade) de fiscalização podem exigir a identificação dos clientes e pedir a intervenção da autoridade competente, levantando, para o efeito, os competentes autos de Notícia (igualmente destacados, para sublinhar a dureza da pena).
Compreendo e respeito a posição, mas até hoje intrigou-me como pretendia a empresa fiscalizar a utilização correcta dos seus terminais se não colocava nenhum agente, ou Agente, em qualquer estação. Da Pontinha a Odivelas, da Gare do Oriente ao Rato, da Alameda a Alfornelos, eles estão ausentes nas 48 estações da rede. Não se avistam quando é necessário tirar dúvidas sobre percursos, nem quando as máquinas automáticas engolem dinheiro a mais. Se ocorrer uma emergência numa das estações (e nem estou a falar de terrorismo. Basta pensar num princípio de incêndio ou no desabamento de uma galeria), o utente fica entregue a si próprio. Orgulhosamente só, no subsolo.
A empresa Metropolitano de Lisboa agilizou-se, dizem os responsáveis. Agilização é eufemismo para mecanização fria e completa. Desconheço quantos funcionários tem hoje a empresa [os últimos números reportam-se a 2003], mas adivinho que muitos terão sido dispensados ou reorientados para outras tarefas. Todavia, esta agilização mecânica continua a não evitar que alguns utentes, um pouco mais lentos do que o Obikwelu, sejam prensados nos cretinos torniquetes entretanto montados. Quem desconhece o diagrama da rede sente-se perdido nas estações. Quem viaja a horas menos concorridas, corre sempre o risco de ser assaltado porque a vigilância, para o Metropolitano de Lisboa, é uma questão de fé: ninguém a vê, mas ela existe.
De acordo com os rácios económicos apresentados no próprio balancete estatístico da instituição, a empresa chegou a despender mais de 50% dos seus custos totais com custos pessoais durante a década de 1990. Esse valor foi reduzido e chegou, em 2003 (o último ano disponível), aos 35%. A redução percentual é explicada pela saída de cerca de 250 trabalhadores efectivos no mesmo período. Desconheço ao certo que sectores foram aliviados dos respectivos funcionários, mas adivinho que boa fracção deles tenha sido retirado das várias estações. É a única explicação plausível para o desaparecimento progressivo dos Agentes, cujo avistamento se tornou mais raro do que a observação de um lince-ibérico ou de uma águia-real.
Pergunta inocente: valerá a pena projectar um investimento de 1,4 mil milhões de euros até 2010 (números do “Diário Económico”, de 6/7) na expansão e melhoria da rede se não se consegue sequer garantir a fiscalização indispensável dos ingressos dos utentes? A não ser, claro está, que a empresa confie no sentido de estado dos utentes. Aos ingénuos e bem-aventurados, segundo creio, está reservado o reino dos céus.
É certo que o indivíduo em causa estava sentado numa cabina que dizia “Encerrada”. E parecia dormitar, antes de ser violentamente acordado por um utente que, imagine-se, queria saber se precisava de mudar de linha no Marquês de Pombal. A farda estava desabotoada, mas cobria parcialmente o tronco do senhor. E o olhar de falcão que ele catrapiscava regularmente para o monitor não enganava, mesmo que parcialmente prejudicado por uma ramela teimosa.
Dizem as normas de utilização do Metropolitano de Lisboa que, e cito, os Agentes de fiscalização são devidamente ajuramentados, sendo considerados, para todos os efeitos e no exercício das suas funções, agentes de autoridade pública.
Nos casos de infracção ou suspeita de infracção, os Agentes (com maiúscula, assim mesmo, para acentuar a autoridade) de fiscalização podem exigir a identificação dos clientes e pedir a intervenção da autoridade competente, levantando, para o efeito, os competentes autos de Notícia (igualmente destacados, para sublinhar a dureza da pena).
Compreendo e respeito a posição, mas até hoje intrigou-me como pretendia a empresa fiscalizar a utilização correcta dos seus terminais se não colocava nenhum agente, ou Agente, em qualquer estação. Da Pontinha a Odivelas, da Gare do Oriente ao Rato, da Alameda a Alfornelos, eles estão ausentes nas 48 estações da rede. Não se avistam quando é necessário tirar dúvidas sobre percursos, nem quando as máquinas automáticas engolem dinheiro a mais. Se ocorrer uma emergência numa das estações (e nem estou a falar de terrorismo. Basta pensar num princípio de incêndio ou no desabamento de uma galeria), o utente fica entregue a si próprio. Orgulhosamente só, no subsolo.
A empresa Metropolitano de Lisboa agilizou-se, dizem os responsáveis. Agilização é eufemismo para mecanização fria e completa. Desconheço quantos funcionários tem hoje a empresa [os últimos números reportam-se a 2003], mas adivinho que muitos terão sido dispensados ou reorientados para outras tarefas. Todavia, esta agilização mecânica continua a não evitar que alguns utentes, um pouco mais lentos do que o Obikwelu, sejam prensados nos cretinos torniquetes entretanto montados. Quem desconhece o diagrama da rede sente-se perdido nas estações. Quem viaja a horas menos concorridas, corre sempre o risco de ser assaltado porque a vigilância, para o Metropolitano de Lisboa, é uma questão de fé: ninguém a vê, mas ela existe.
De acordo com os rácios económicos apresentados no próprio balancete estatístico da instituição, a empresa chegou a despender mais de 50% dos seus custos totais com custos pessoais durante a década de 1990. Esse valor foi reduzido e chegou, em 2003 (o último ano disponível), aos 35%. A redução percentual é explicada pela saída de cerca de 250 trabalhadores efectivos no mesmo período. Desconheço ao certo que sectores foram aliviados dos respectivos funcionários, mas adivinho que boa fracção deles tenha sido retirado das várias estações. É a única explicação plausível para o desaparecimento progressivo dos Agentes, cujo avistamento se tornou mais raro do que a observação de um lince-ibérico ou de uma águia-real.
Pergunta inocente: valerá a pena projectar um investimento de 1,4 mil milhões de euros até 2010 (números do “Diário Económico”, de 6/7) na expansão e melhoria da rede se não se consegue sequer garantir a fiscalização indispensável dos ingressos dos utentes? A não ser, claro está, que a empresa confie no sentido de estado dos utentes. Aos ingénuos e bem-aventurados, segundo creio, está reservado o reino dos céus.
quinta-feira, julho 28, 2005
Vem aí a cavalaria
(crónicas da silly season)Um dos prazeres de férias é certamente a possibilidade de fugir dos vizinhos, entidade vaga e difusa com a qual convivemos durante onze meses por ano (dez se formos afortunados e os períodos de férias não coincidirem), iludidos pela aparente civilidade que a coabitação nos confere. Puro engano. Quantos, entre os leitores, não conviveram já com um vizinho de baixo, que parece juntar as crianças num coro ruidoso, que grita à desgarrada, parecendo escolher o momento em que necessitamos mais de concentração para distribuir a gritaria numa escala tal que certamente faz disparar os sismógrafos? Quantos não conheceram já um vizinho de cima de tal forma abstraído pela gastronomia que parece cozinhar de porta e janelas abertas, espalhando o cheiro intenso das pataniscas pelo prédio e caprichando precisamente naquele dia em que um de nós convida alguém especial para um jantar formal? Quantos, entre vós, não compraram já uma bisnaga de gás mostarda para aplicar da próxima vez que o menino do 4.º andar praticar, e mal, as notas da composição musical “D’artacão” no piano de pedal? Talvez poucos, admito. Nos tempos que correm, a bisnaga de gás mostarda está carríssima…
São as contingências da vida em habitações sobrepostas, às quais nos habituamos (ou não). Alguns (mesmo assim, poucos, creio) sofrem um dia um curto-circuito e sobem ao último andar com uma espingarda de canos serrados, dispostos a entregar o senhor das pataniscas ao Criador. Apesar das excepções, a maioria socializa com os vizinhos, condescende com os abusos, atura-os quando não o pode evitar e gasta uma fortuna em terapia. No Verão, porém, soltamos o grito do Iparinga e fugimos deles como da peste. Para sul, e em força, marchamos pela estrada mais próxima.
Infelizmente, o pensamento é partilhado por muitos e corremos o risco de encontrar novos vizinhos, igualmente criativos e potencialmente mais irritantes porque estão de férias. Todos os anos, acontece o mesmo. Todos os anos, prometo que não volto a cair na mesma armadilha. E todos os anos reencontro o vizinho do Algarve.
Explico melhor: o meu vizinho de cima é um daqueles indivíduos que ajuda a explicar porque há guerra há cinco décadas no Médio Oriente. Foi certamente pelo choque de duas criaturas iguais a esta que o conflito escalou para os níveis actuais. Diria aliás que, por menos do que isto, já muito boa gente emigrou. Ou se ofereceu como voluntário para campos de desminagem.
Como em todos os lunáticos, detecta-se algum método na praxis do senhor. Assim, invariavelmente à 1 hora da manhã, o senhor, a fêmea e as crias revolvem o mobiliário – suponho que de divisão para divisão -, esforçando-se por arrastar as mesas e as cadeiras pelo soalho. Da primeira vez que escutei os rangidos, cuidei que a horda moura já estava no Algarve, disposta a vingar a reconquista. Com o tempo, assimilei o ruído no meu quotidiano. É agora frequente esperar pelo rearranjo do mobiliário antes de anunciar à esposa:
- O senhor já mudou os móveis da sala, já posso deitar-me.
- Já ouviste o aparador?
Scriiik.
- Tens razão. Faltava ainda o aparador.
Infelizmente, o rearranjo das mobílias é apenas o primeiro passo do ritual tribal, como uma trombeta que marca o início das hostilidades. Segue-se a discussão vocal, divertida quanto baste. Normalmente, começa com uma boa chapada portuguesa, do progenitor a um dos fedelhos. Merecida ou não, uma chapada educa. Segue-se o inevitável berreiro, réplica distorcida do aviso sonoro do farol de Sagres. Grita a mãe; grita o pai; urram as crianças. Deslocam-se mais móveis. Scriik.
Passam para a cozinha e vão desforrar-se no frigorífico e na torradeira. Discutem animadamente. Não posso garantir, mas julgo que também tentam deslocar o frigorífico. Menos sorte: este só chocalha, abanando as garrafas de vidro.
Nesta fase, já costumo estar de vassoura na mão, empurrando o cabo violentamente contra o tecto, na tentativa de provocar um ruído que motive compaixão. Ninguém ouve, entretidos que estão com o vaudeville familiar, que se pode prolongar por mais vinte ou trinta minutos, dependendo da inspiração de cada protagonista. Por vezes, escuta-se outra galheta educadora. Mas é mais raro.
Como bom vizinho, aturo tudo isto com fair-play e limito-me a colocar metade de uma pastilha elástica na campainha dos senhores na manhã do dia seguinte. Faço-o uma vez, por volta das 8 horas, quando o sol irrompe e adivinho o ressonar merecido dos beligerantes. Alguém pragueja do outro lado. Vou, reconciliado, comprar pão e jornais e dou-lhes mais quinze minutos antes de colar a outra metade. Garanto assim o despertar maldisposto na caverna dos Flinstones.
Com isto, amigos, se cria empatia entre a vizinhança. Ora experimentem e sejam criativos. Lembrem-se: quando estiverem acessíveis por Internet as declarações de rendimentos de cada um, podemos divertir-nos muito mais.
São as contingências da vida em habitações sobrepostas, às quais nos habituamos (ou não). Alguns (mesmo assim, poucos, creio) sofrem um dia um curto-circuito e sobem ao último andar com uma espingarda de canos serrados, dispostos a entregar o senhor das pataniscas ao Criador. Apesar das excepções, a maioria socializa com os vizinhos, condescende com os abusos, atura-os quando não o pode evitar e gasta uma fortuna em terapia. No Verão, porém, soltamos o grito do Iparinga e fugimos deles como da peste. Para sul, e em força, marchamos pela estrada mais próxima.
Infelizmente, o pensamento é partilhado por muitos e corremos o risco de encontrar novos vizinhos, igualmente criativos e potencialmente mais irritantes porque estão de férias. Todos os anos, acontece o mesmo. Todos os anos, prometo que não volto a cair na mesma armadilha. E todos os anos reencontro o vizinho do Algarve.
Explico melhor: o meu vizinho de cima é um daqueles indivíduos que ajuda a explicar porque há guerra há cinco décadas no Médio Oriente. Foi certamente pelo choque de duas criaturas iguais a esta que o conflito escalou para os níveis actuais. Diria aliás que, por menos do que isto, já muito boa gente emigrou. Ou se ofereceu como voluntário para campos de desminagem.
Como em todos os lunáticos, detecta-se algum método na praxis do senhor. Assim, invariavelmente à 1 hora da manhã, o senhor, a fêmea e as crias revolvem o mobiliário – suponho que de divisão para divisão -, esforçando-se por arrastar as mesas e as cadeiras pelo soalho. Da primeira vez que escutei os rangidos, cuidei que a horda moura já estava no Algarve, disposta a vingar a reconquista. Com o tempo, assimilei o ruído no meu quotidiano. É agora frequente esperar pelo rearranjo do mobiliário antes de anunciar à esposa:
- O senhor já mudou os móveis da sala, já posso deitar-me.
- Já ouviste o aparador?
Scriiik.
- Tens razão. Faltava ainda o aparador.
Infelizmente, o rearranjo das mobílias é apenas o primeiro passo do ritual tribal, como uma trombeta que marca o início das hostilidades. Segue-se a discussão vocal, divertida quanto baste. Normalmente, começa com uma boa chapada portuguesa, do progenitor a um dos fedelhos. Merecida ou não, uma chapada educa. Segue-se o inevitável berreiro, réplica distorcida do aviso sonoro do farol de Sagres. Grita a mãe; grita o pai; urram as crianças. Deslocam-se mais móveis. Scriik.
Passam para a cozinha e vão desforrar-se no frigorífico e na torradeira. Discutem animadamente. Não posso garantir, mas julgo que também tentam deslocar o frigorífico. Menos sorte: este só chocalha, abanando as garrafas de vidro.
Nesta fase, já costumo estar de vassoura na mão, empurrando o cabo violentamente contra o tecto, na tentativa de provocar um ruído que motive compaixão. Ninguém ouve, entretidos que estão com o vaudeville familiar, que se pode prolongar por mais vinte ou trinta minutos, dependendo da inspiração de cada protagonista. Por vezes, escuta-se outra galheta educadora. Mas é mais raro.
Como bom vizinho, aturo tudo isto com fair-play e limito-me a colocar metade de uma pastilha elástica na campainha dos senhores na manhã do dia seguinte. Faço-o uma vez, por volta das 8 horas, quando o sol irrompe e adivinho o ressonar merecido dos beligerantes. Alguém pragueja do outro lado. Vou, reconciliado, comprar pão e jornais e dou-lhes mais quinze minutos antes de colar a outra metade. Garanto assim o despertar maldisposto na caverna dos Flinstones.
Com isto, amigos, se cria empatia entre a vizinhança. Ora experimentem e sejam criativos. Lembrem-se: quando estiverem acessíveis por Internet as declarações de rendimentos de cada um, podemos divertir-nos muito mais.
terça-feira, julho 19, 2005
Uma revista com três anos: sem preço
É nas férias que realizo algumas tarefas adiadas nos 11 meses anteriores. Livros que ficaram por ler, documentos (informáticos ou em papel) por triar e arquivar, jornais velhos por analisar, fotocopiar e referenciar.
Na lide doméstica, dei com uma "Visão" de há três anos (n.º 462, de 10 a 16 de Janeiro de 2002). Chamava à capa Santana Lopes e Rui Rio, recentes vencedores das autárquicas, e prometia revelar, como só a "Visão" pomposamente promete, o «que eles vão fazer».
A leitura datada é das tarefas menos apetecidas pelo jornalista, mas reserva, por vezes, brindes inesperados como estes. O que prometiam então os dois presidentes?
Santana estava entusiasmado com o cargo, mas queria saber, primeiro, quanto tinha custado a iluminação de Natal. Garantia que o túnel do Marquês estaria pronto no Verão seguinte (i.e.: Junho de 2003) e que a CML não ia dar um cêntimo ao Benfica para o novo estádio. Queria fazer um túnel ou viaduto no Campo Grande para desnivelar o trânsito. Imaginava o Terreiro do Paço como «sala de visitas da cidade, com restaurantes debaixo das arcadas e(...) hóteis de charme e o Museu dos Descobrimentos onde hoje estão os ministérios». Colocaria mais polícias na rua (mais 500) e promoveria o estacionamento em altura, convertendo prédios devolutos em silos de estacionamento...
E Rui Rio? Muito mais sensato, prometia no abstracto e idealizava no concreto. Evitava assim tropeçar nas suas próprias promessas, ele que ganhara a CM Porto surpreendentemente, porventura até para o próprio. Mesmo assim, não resistiu a assegurar que os indesejados arrumadores de rua acabariam já no final do ano (i.e.: final de 2002) e a prometer que cancelaria toda e qualquer construção no Parque da Cidade.
Memórias traiçoeiras, estas, recuperadas três anos e meio depois. Apetece dizer, como na anedota: Preço do novo casino de Frank Gehry: 300 milhões de euros; custo estimado do túnel do Marquês: 19 milhões de euros; ser embaraçado no final do mandato por uma entrevista inconveniente: sem preço...
Na lide doméstica, dei com uma "Visão" de há três anos (n.º 462, de 10 a 16 de Janeiro de 2002). Chamava à capa Santana Lopes e Rui Rio, recentes vencedores das autárquicas, e prometia revelar, como só a "Visão" pomposamente promete, o «que eles vão fazer».
A leitura datada é das tarefas menos apetecidas pelo jornalista, mas reserva, por vezes, brindes inesperados como estes. O que prometiam então os dois presidentes?
Santana estava entusiasmado com o cargo, mas queria saber, primeiro, quanto tinha custado a iluminação de Natal. Garantia que o túnel do Marquês estaria pronto no Verão seguinte (i.e.: Junho de 2003) e que a CML não ia dar um cêntimo ao Benfica para o novo estádio. Queria fazer um túnel ou viaduto no Campo Grande para desnivelar o trânsito. Imaginava o Terreiro do Paço como «sala de visitas da cidade, com restaurantes debaixo das arcadas e(...) hóteis de charme e o Museu dos Descobrimentos onde hoje estão os ministérios». Colocaria mais polícias na rua (mais 500) e promoveria o estacionamento em altura, convertendo prédios devolutos em silos de estacionamento...
E Rui Rio? Muito mais sensato, prometia no abstracto e idealizava no concreto. Evitava assim tropeçar nas suas próprias promessas, ele que ganhara a CM Porto surpreendentemente, porventura até para o próprio. Mesmo assim, não resistiu a assegurar que os indesejados arrumadores de rua acabariam já no final do ano (i.e.: final de 2002) e a prometer que cancelaria toda e qualquer construção no Parque da Cidade.
Memórias traiçoeiras, estas, recuperadas três anos e meio depois. Apetece dizer, como na anedota: Preço do novo casino de Frank Gehry: 300 milhões de euros; custo estimado do túnel do Marquês: 19 milhões de euros; ser embaraçado no final do mandato por uma entrevista inconveniente: sem preço...
segunda-feira, julho 18, 2005
Notas soltas do Verão
O que leva um veraneante a palmilhar quilómetros à torreira do sol para escrever umas linhas à sua comunidade de leitores? Resposta: uma tarde escutando emissões de televisão repletas de disparates. Como uma espiral decadente, a emissão nacional de televisão atinge invariavelmente o seu ponto mais baixo no Verão. É aí que se condensam os enlatados, as sérias de qualidade medíocre, os apresentadores rejeitados nos horários mais nobres. Chamam-lhe a silly season e basta ouvir dez minutos de José Carlos Malato para explicar o atributo.
Primeira pérola: entrevistado no jornal da tarde da RTP, um vereador da Câmara Municipal da Figueira da Foz assegurou que a Figueira é a Bora-Bora portuguesa. Admito reluntantemente que nunca foi a Bora-Bora. Mas já fui à Figueira. Apre. Desconhecia que a Bora-Bora original estava repleta de toldos de cores berrantes, de areias sujas onde, com sorte, o visitante pode pisar uma lata de conserva e de águas violentas que, à primeira onda, revolvem o banhista de tal forma que ele é incapaz de identificar o norte. Tenho de viajar mais. Quanto mais não seja para não ficar espantado quando disserem que Sesimbra é Saint-Tropez em português.
Segunda pérola: em rodapé, os letreiros da mesma estação anunciavam que Louis Armstrong cimentou a sua liderança na Volta a França. Presumivelmente, de trompete, enquanto pedalava na montanha. Só não disseram quem ficou em segundo: eventualmente, o Fernando Ulrich.
Terceira pérola: admito, desgraçadamente, que assisti à segunda parte do Benfica-Chelsea. Não necessariamente para "torcer" por um ou outro (não gosto mesmo de nenhum), mas, para me certificar que o comentador de serviço era mesmo Fernando Seara. Fiquei esclarecido a dez minutos do fim, quando o (ainda) presidente da Câmara Municipal de Sintra explicou que o Benfica precisava de um 9 e de um 10. Ou de um 9 que fizesse também de 10. Ou ainda de um 10 que fizesse igualmente de 9. Um 9-10 ou um 10-9, insistiu Seara. Até porque, explicou, se comprar um 9-10 ou um 10-9, o Benfica poupa dinheiro para outros reforços. Pois claro: se toda a gente em Sintra raciocinar como o presidente da Câmara, o município está bem entregue...
P.S.: O leitor mais sagaz terá adivinhado que estou em gozo (merecido) de férias. Até final do mês, os "posts" serão porventura mais espaçados - estão 36ºC lá fora, meus senhores - e menos sérios. Também tenho direito à minha silly season.
Primeira pérola: entrevistado no jornal da tarde da RTP, um vereador da Câmara Municipal da Figueira da Foz assegurou que a Figueira é a Bora-Bora portuguesa. Admito reluntantemente que nunca foi a Bora-Bora. Mas já fui à Figueira. Apre. Desconhecia que a Bora-Bora original estava repleta de toldos de cores berrantes, de areias sujas onde, com sorte, o visitante pode pisar uma lata de conserva e de águas violentas que, à primeira onda, revolvem o banhista de tal forma que ele é incapaz de identificar o norte. Tenho de viajar mais. Quanto mais não seja para não ficar espantado quando disserem que Sesimbra é Saint-Tropez em português.
Segunda pérola: em rodapé, os letreiros da mesma estação anunciavam que Louis Armstrong cimentou a sua liderança na Volta a França. Presumivelmente, de trompete, enquanto pedalava na montanha. Só não disseram quem ficou em segundo: eventualmente, o Fernando Ulrich.
Terceira pérola: admito, desgraçadamente, que assisti à segunda parte do Benfica-Chelsea. Não necessariamente para "torcer" por um ou outro (não gosto mesmo de nenhum), mas, para me certificar que o comentador de serviço era mesmo Fernando Seara. Fiquei esclarecido a dez minutos do fim, quando o (ainda) presidente da Câmara Municipal de Sintra explicou que o Benfica precisava de um 9 e de um 10. Ou de um 9 que fizesse também de 10. Ou ainda de um 10 que fizesse igualmente de 9. Um 9-10 ou um 10-9, insistiu Seara. Até porque, explicou, se comprar um 9-10 ou um 10-9, o Benfica poupa dinheiro para outros reforços. Pois claro: se toda a gente em Sintra raciocinar como o presidente da Câmara, o município está bem entregue...
P.S.: O leitor mais sagaz terá adivinhado que estou em gozo (merecido) de férias. Até final do mês, os "posts" serão porventura mais espaçados - estão 36ºC lá fora, meus senhores - e menos sérios. Também tenho direito à minha silly season.
quarta-feira, julho 13, 2005
Perguntas de Algibeira
Já reparou o leitor que, entre os colunistas que assinam textos nos jornais sobre o traçado do TGV e a localização do novo aeroporto de Lisboa, parece só existirem representantes dos lobbies do caminho-de-ferro e da navegação aérea? Mais curioso ainda: já reparou como os inocentes colunistas que, à vez, atacam o traçado Lisboa-Porto do TGV e a Ota como destino final do aeroporto raramente assumem a sua condição activa de "lobbyistas"? São sempre professores jubilados, especialistas em sistemas informáticos, docentes universitários, historiadores, economistas ou – a minha designação favorita – juristas…
Mais irónico ainda, mas fechando o círculo na perfeição, os senhores-que-nós-conhecemos-como-activistas-dos-comboios defendem afincadamente que a melhor localização para o novo aeroporto seria a margem sul, onde se potenciariam as ligações ferroviárias para Espanha. Dizem, por isso, que a Ota é um erro histórico. E, a talho de foice, recomendam mais invesimento na adaptação da bitola aos padrões europeus, mesmo que a Espanha ainda não o tenha feito e seja, por momentos, impossível fazer com que o comboio voe sobre o território espanhol para então entrar nos perfeitos carris franceses.
Do outro lado do problema, os senhores-que-nós-conhecemos-como-activistas-dos-aviões não falam do aeroporto, mas questionam o erro (que também é histórico, segundo eles) de promover uma linha de TGV para o Porto, quando a prioridade deveria ser a linha Lisboa-Badajoz, para promover ligações entre as duas capitais ibéricas. A recomendação deste grupo de articulistas costuma ser o desinvestimento nos transportes ferroviários e marítimos em claro benefício dos transportes aéreos, eles sim, os veículos do futuro. Talvez por esquecimento, não falam das limitações correntes do tráfego aéreo e da (in)capacidade do avião para substituir em grande escala o comboio e o barco como meio de transporte de mercadorias.
E assim, lendo descontraidamente as múltiplas apreciações às duas opções de fundo do governo socialista, vai ficando o leitor português esclarecido. Como é próprio das democracias participadas.
Mais irónico ainda, mas fechando o círculo na perfeição, os senhores-que-nós-conhecemos-como-activistas-dos-comboios defendem afincadamente que a melhor localização para o novo aeroporto seria a margem sul, onde se potenciariam as ligações ferroviárias para Espanha. Dizem, por isso, que a Ota é um erro histórico. E, a talho de foice, recomendam mais invesimento na adaptação da bitola aos padrões europeus, mesmo que a Espanha ainda não o tenha feito e seja, por momentos, impossível fazer com que o comboio voe sobre o território espanhol para então entrar nos perfeitos carris franceses.
Do outro lado do problema, os senhores-que-nós-conhecemos-como-activistas-dos-aviões não falam do aeroporto, mas questionam o erro (que também é histórico, segundo eles) de promover uma linha de TGV para o Porto, quando a prioridade deveria ser a linha Lisboa-Badajoz, para promover ligações entre as duas capitais ibéricas. A recomendação deste grupo de articulistas costuma ser o desinvestimento nos transportes ferroviários e marítimos em claro benefício dos transportes aéreos, eles sim, os veículos do futuro. Talvez por esquecimento, não falam das limitações correntes do tráfego aéreo e da (in)capacidade do avião para substituir em grande escala o comboio e o barco como meio de transporte de mercadorias.
E assim, lendo descontraidamente as múltiplas apreciações às duas opções de fundo do governo socialista, vai ficando o leitor português esclarecido. Como é próprio das democracias participadas.
domingo, julho 10, 2005
Esquizofrenia Para Explicar a Arrábida
Fiel ao estigma de que o jornalista é, acima de tudo, um profissional que escreve o que lhe pedem, realizo seguidamente um exercício de sarcasmo que, espero, ajudará o leitor a compreender a complexidade da questão da Arrábida. Proponho-me, numa demonstração de dupla personalidade, evidenciar os prós e contras do novo/velho Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida. Começo pelo ponto de vista abolicionista.
Sou pescador e há dez anos que usufruo de fundos comunitários para reconverter a minha embarcação. Usei-os até à exaustão e aproveitei também para restaurar a casa e o quintal. Toda a gente o faz. Não vejo mal nisso.
Há muitos anos, fiz contratos em Marrocos e pescava então grandes quantidades de peixe. A vida corria bem e as capturas na região costeira da Arrábida ficavam para os pescadores de ocasião e para os maluquinhos da caça subaquática. Os contratos acabaram. Voltámos para casa com o rabo entre as pernas. Sem outra solução, intensificámos a pesca nesta zona, do cabo Espichel a Setúbal. As quantidades de peixe disponível diminuíram a olhos vistos. Há espécies que já não vejo há anos.
Agora, dizem-nos que querem criar uma zona de protecção especial nestas águas. Querem proibir a captura de peixe em algumas zonas e noutras impõem-nos limites. Estamos contra, claro está.
Entretanto, apareceram uns senhores muito simpáticos, proprietários de embarcações de lazer, que se reuniram connosco e se ofereceram para fazermos lobby em conjunto contra o Plano de Ordenamento. Ofereceram-se também para ajudar a pagar o custo das manifestações, das greves e dos cartazes. Coitados. Afinal, gostam mais de nós do que pensávamos.
Nas reuniões com a direcção do Parque e com os jornalistas, esquecemos o números de pescadores reais na região e citámos sempre o número de licenças atribuídas para pescar aqui. Não somos parvos. Se parecermos mais, teremos uma posição mais forte. Como a arte xávega continuará a ser aceite, dissemos todos que ainda pescamos assim. Já se sabe, o seguro morreu de velho.
O mais engraçado é que, estando inscritos como desempregados, continuamos a pescar. Dizemos que é por lazer, mas vendemos o excesso em restaurantes e peixarias. Os outros, os que ainda pescam oficialmente, estão danados connosco, porque lhes fazemos concorrência, mas o que pode um homem fazer? Há que levar mais dinheiro para casa.
Os diabos dos biólogos querem também deitar abaixo as casas ilegais, bem como tudo o que tiver sido construído sem autorização dentro dos limites do Parque. Aqui as câmaras municipais ajudaram imenso. Descobriram dois desgraçados que vivem numa barraca ilegal e fizeram deles as vozes do nosso protesto. É bem pensado. Para os jornalistas, ajuda imenso ter uma história triste. Coitadinhos dos homens, vão ser despejados. É claro que nós e as câmaras sabemos que este caso é uma gota de água num oceano de ilegalidades da região – que está repleta de segundas e terceiras habitações. Mas porque havemos de ser nós a pagar pela desorganização dos serviços públicos? Está construído. Fica de pé. Nem que tenhamos de barrar o caminho às escavadoras.
Escutemos agora o lado proteccionista…
Sou biólogo e acompanho as investigações dos últimos anos que comprovam que os “stocks” de peixe da região decresceram abruptamente. Algumas espécies são caçadas com tanta frequência que os pescadores já só apanham juvenis. Nunca houve tantos barcos na região. Há um problema urgente de conservação a resolver.
Os residentes destas vilas parolas não percebem nada de ciência. Nas sessões públicas de esclarecimento, naturalmente, já íamos preparados para não ceder um milímetro. Em Portugal, quando se chega a essa fase, o plano já está concluído e pronto a ser impresso. Por que motivo haveria a Arrábida de ser diferente? Explicámos os problemas de parque, mas as pessoas não pareciam compreender o nosso jargão científico. Quando apresentámos o novo plano, fizémo-lo com firmeza. Nestes casos, repito, marca-se posição e não se cede. Gerou-se uma algazarra dos diabos. Os representantes das câmaras, que até aí tinham sido aliados convincentes, perceberam rapidamente a mudança e seguiram a corrente. A população atacou-nos, verbal e fisicamente. Tivemos sorte de sair ilesos. Bando de cabotinos.
Nos dias seguintes, fomos traídos pelo secretário de Estado e pelo Instituto da Conservação da Natureza. Não saíram em nossa defesa e emitiram declarções reticentes. Os votos contam muito, percebemos então. O plano foi varrido para debaixo do tapete ou para lá das eleições.
Mesmo assim, não mudámos de estratégia. Agora temos um secretário de Estado profundamente proteccionista e há que aproveitar. Arregaçamos as mangas e vamos a isso. Chamam-nos arrogantes e prepotentes, mas o que somos é obstinados. Levamos o plano para frente, sem concessões. Não mudamos uma vírgula ao que foi definido. Que a GNR e a guarda costeira punam depois os infractores.
Termina assim o meu ataque de dupla personalidade. Que decida o leitor o futuro do Parque Natural da Arrábida.
Sou pescador e há dez anos que usufruo de fundos comunitários para reconverter a minha embarcação. Usei-os até à exaustão e aproveitei também para restaurar a casa e o quintal. Toda a gente o faz. Não vejo mal nisso.
Há muitos anos, fiz contratos em Marrocos e pescava então grandes quantidades de peixe. A vida corria bem e as capturas na região costeira da Arrábida ficavam para os pescadores de ocasião e para os maluquinhos da caça subaquática. Os contratos acabaram. Voltámos para casa com o rabo entre as pernas. Sem outra solução, intensificámos a pesca nesta zona, do cabo Espichel a Setúbal. As quantidades de peixe disponível diminuíram a olhos vistos. Há espécies que já não vejo há anos.
Agora, dizem-nos que querem criar uma zona de protecção especial nestas águas. Querem proibir a captura de peixe em algumas zonas e noutras impõem-nos limites. Estamos contra, claro está.
Entretanto, apareceram uns senhores muito simpáticos, proprietários de embarcações de lazer, que se reuniram connosco e se ofereceram para fazermos lobby em conjunto contra o Plano de Ordenamento. Ofereceram-se também para ajudar a pagar o custo das manifestações, das greves e dos cartazes. Coitados. Afinal, gostam mais de nós do que pensávamos.
Nas reuniões com a direcção do Parque e com os jornalistas, esquecemos o números de pescadores reais na região e citámos sempre o número de licenças atribuídas para pescar aqui. Não somos parvos. Se parecermos mais, teremos uma posição mais forte. Como a arte xávega continuará a ser aceite, dissemos todos que ainda pescamos assim. Já se sabe, o seguro morreu de velho.
O mais engraçado é que, estando inscritos como desempregados, continuamos a pescar. Dizemos que é por lazer, mas vendemos o excesso em restaurantes e peixarias. Os outros, os que ainda pescam oficialmente, estão danados connosco, porque lhes fazemos concorrência, mas o que pode um homem fazer? Há que levar mais dinheiro para casa.
Os diabos dos biólogos querem também deitar abaixo as casas ilegais, bem como tudo o que tiver sido construído sem autorização dentro dos limites do Parque. Aqui as câmaras municipais ajudaram imenso. Descobriram dois desgraçados que vivem numa barraca ilegal e fizeram deles as vozes do nosso protesto. É bem pensado. Para os jornalistas, ajuda imenso ter uma história triste. Coitadinhos dos homens, vão ser despejados. É claro que nós e as câmaras sabemos que este caso é uma gota de água num oceano de ilegalidades da região – que está repleta de segundas e terceiras habitações. Mas porque havemos de ser nós a pagar pela desorganização dos serviços públicos? Está construído. Fica de pé. Nem que tenhamos de barrar o caminho às escavadoras.
Escutemos agora o lado proteccionista…
Sou biólogo e acompanho as investigações dos últimos anos que comprovam que os “stocks” de peixe da região decresceram abruptamente. Algumas espécies são caçadas com tanta frequência que os pescadores já só apanham juvenis. Nunca houve tantos barcos na região. Há um problema urgente de conservação a resolver.
Os residentes destas vilas parolas não percebem nada de ciência. Nas sessões públicas de esclarecimento, naturalmente, já íamos preparados para não ceder um milímetro. Em Portugal, quando se chega a essa fase, o plano já está concluído e pronto a ser impresso. Por que motivo haveria a Arrábida de ser diferente? Explicámos os problemas de parque, mas as pessoas não pareciam compreender o nosso jargão científico. Quando apresentámos o novo plano, fizémo-lo com firmeza. Nestes casos, repito, marca-se posição e não se cede. Gerou-se uma algazarra dos diabos. Os representantes das câmaras, que até aí tinham sido aliados convincentes, perceberam rapidamente a mudança e seguiram a corrente. A população atacou-nos, verbal e fisicamente. Tivemos sorte de sair ilesos. Bando de cabotinos.
Nos dias seguintes, fomos traídos pelo secretário de Estado e pelo Instituto da Conservação da Natureza. Não saíram em nossa defesa e emitiram declarções reticentes. Os votos contam muito, percebemos então. O plano foi varrido para debaixo do tapete ou para lá das eleições.
Mesmo assim, não mudámos de estratégia. Agora temos um secretário de Estado profundamente proteccionista e há que aproveitar. Arregaçamos as mangas e vamos a isso. Chamam-nos arrogantes e prepotentes, mas o que somos é obstinados. Levamos o plano para frente, sem concessões. Não mudamos uma vírgula ao que foi definido. Que a GNR e a guarda costeira punam depois os infractores.
Termina assim o meu ataque de dupla personalidade. Que decida o leitor o futuro do Parque Natural da Arrábida.
sábado, julho 09, 2005
A Solução Fácil
A poeira já assentou, os mais entusiasmados já acalmaram. Como uma tempestade de areia, os defensores do projecto nuclear em Portugal aparecem subitamente, lançam um raide e fogem apressadamente. No balanço do que foi apresentado, ficam mais dúvidas do que certezas. A opinião pública discutiu o assunto pela rama, como convém, e não extraiu uma conclusão definitiva. O governo, pela manhã, disse que sim; à tarde, disse que não. O primeiro-ministro, na conversa familiar com a nação graças à antena da SIC, nem aflorou o assunto. E todavia a polémica até já tem décadas.
Há anos que o lobby do nuclear está activo. Organiza almoços e lança ameaças veladas aos governos de circunstância. Promete a salvação energética e patrocina artigos a colunistas de aluguer – que os há, asseguro. Lança perspectivas catastróficas sobre as tendências nacionais de utilização de energia e zomba dos esforços das renováveis. Cativa fiéis transversalmente, nos dois principais partidos.
Como um grupo de adventistas do sétimo dia, os pró-nucleares prometem a salvação. Do país, dos consumidores de energia, deles próprios. Basta assinar a factura.
Num documento-síntese notável, a Quercus levantou quatro perguntas que ficaram por responder depois do arrastão nuclear, a semana supersónica em que Patrick Monteiro de Barros e demais proponentes impuseram o tema na agenda política. Com a dévida vénia, recupero as interrogações:
1) O risco e as consequências de acidente: são diversos os exemplos de acidentes com menores ou maiores consequências, desde os casos mais conhecidos de Three Mile Island a Chernobyl às pequenas avarias que são reportadas em muitas centrais e que não são conhecidas publicamente. Apesar da maior segurança das novas centrais nucleares, as consequências de um acidente grave podem ser dramáticas e globais; no caso de Portugal, o risco sísmico é um factor determinante, sendo que a sua localização teria sempre de ter lugar junto a rio ou no litoral por causa da refrigeração da instalação.
2) Os resíduos radioactivos: não há até agora no mundo um solução definitiva para o armazenamento seguro dos resíduos radioactivos, representando tal uma ameaça em termos do seu transporte e do seu armazenamento, com óbvios custos acrescidos nomeadamente em termos de segurança.
3) A segurança face a atentados: é de momento uma das maiores preocupações nos países desenvolvidos com custos acrescidos muito elevados, tendo recebido um destaque recente da revista "Time" que noticia o facto de as centrais nucleares serem o alvo preferido para ataques terroristas. Os valores dos seguros associados são enormes.
4) o custo: os custos de investimento e o tempo associado à sua construção são muito maiores em comparação com centrais termoeléctricas recorrendo a outros combustíveis apesar dos custos de exploração até poderem depois ser na mesma ordem de grandeza; as diferenças entre o dinheiro efectivamente gasto e o planeado pode chegar até sete vezes mais, ficando-se totalmente dependente de tecnologia estrangeira e sem economia de escala dada a fraca dimensão do nosso país.
À medida que na Europa se desmantelam projectos em fim de vida e há escassas notícias sobre reinvestimentos no sector fora dos Estados Unidos, os proponentes da energia nuclear propõem-se caminhar na direcção contrária da corrente, formosos e seguros das suas convicções. Não resisto por isso a partilhar uma anedota com os leitores – adequada, creio, às circunstâncias. Depois de muito caminhar num túnel escuro, o viajante avista ao longe uma luz. É a saída, pensa. Apressa o passo na direcção da luminosidade, que lhe parece cada vez mais próxima. Cada vez mais perto, ele acelera, radiante. Infelizmente, a luz não era a saída. Era um comboio na direcção contrária!
Há anos que o lobby do nuclear está activo. Organiza almoços e lança ameaças veladas aos governos de circunstância. Promete a salvação energética e patrocina artigos a colunistas de aluguer – que os há, asseguro. Lança perspectivas catastróficas sobre as tendências nacionais de utilização de energia e zomba dos esforços das renováveis. Cativa fiéis transversalmente, nos dois principais partidos.
Como um grupo de adventistas do sétimo dia, os pró-nucleares prometem a salvação. Do país, dos consumidores de energia, deles próprios. Basta assinar a factura.
Num documento-síntese notável, a Quercus levantou quatro perguntas que ficaram por responder depois do arrastão nuclear, a semana supersónica em que Patrick Monteiro de Barros e demais proponentes impuseram o tema na agenda política. Com a dévida vénia, recupero as interrogações:
1) O risco e as consequências de acidente: são diversos os exemplos de acidentes com menores ou maiores consequências, desde os casos mais conhecidos de Three Mile Island a Chernobyl às pequenas avarias que são reportadas em muitas centrais e que não são conhecidas publicamente. Apesar da maior segurança das novas centrais nucleares, as consequências de um acidente grave podem ser dramáticas e globais; no caso de Portugal, o risco sísmico é um factor determinante, sendo que a sua localização teria sempre de ter lugar junto a rio ou no litoral por causa da refrigeração da instalação.
2) Os resíduos radioactivos: não há até agora no mundo um solução definitiva para o armazenamento seguro dos resíduos radioactivos, representando tal uma ameaça em termos do seu transporte e do seu armazenamento, com óbvios custos acrescidos nomeadamente em termos de segurança.
3) A segurança face a atentados: é de momento uma das maiores preocupações nos países desenvolvidos com custos acrescidos muito elevados, tendo recebido um destaque recente da revista "Time" que noticia o facto de as centrais nucleares serem o alvo preferido para ataques terroristas. Os valores dos seguros associados são enormes.
4) o custo: os custos de investimento e o tempo associado à sua construção são muito maiores em comparação com centrais termoeléctricas recorrendo a outros combustíveis apesar dos custos de exploração até poderem depois ser na mesma ordem de grandeza; as diferenças entre o dinheiro efectivamente gasto e o planeado pode chegar até sete vezes mais, ficando-se totalmente dependente de tecnologia estrangeira e sem economia de escala dada a fraca dimensão do nosso país.
À medida que na Europa se desmantelam projectos em fim de vida e há escassas notícias sobre reinvestimentos no sector fora dos Estados Unidos, os proponentes da energia nuclear propõem-se caminhar na direcção contrária da corrente, formosos e seguros das suas convicções. Não resisto por isso a partilhar uma anedota com os leitores – adequada, creio, às circunstâncias. Depois de muito caminhar num túnel escuro, o viajante avista ao longe uma luz. É a saída, pensa. Apressa o passo na direcção da luminosidade, que lhe parece cada vez mais próxima. Cada vez mais perto, ele acelera, radiante. Infelizmente, a luz não era a saída. Era um comboio na direcção contrária!
quarta-feira, julho 06, 2005
Gigantesco Tiro de Pólvora Seca
Os textos de jornal nem sempre estão correctos. O leitor aceita a premissa, sobretudo porque admite o princípio de que a rotina jornalística é apertada, opera em horários muitos condicionados e o equilíbrio é instável. Mas julgo que ninguém tolera o engano persistente, a gralha não corrigida e, muito menos, o erro propositado.
Posto isto, passemos à manchete do "Público" de ontem. Na história do jornal lisboeta, adivinho poucas manhãs mais embaraçosas do que a de ontem. Imaginem o cenário. Um jornal com uma manchete desmentida imediatamente a meio da manhã e, pior do que isso, comprovando uma notícia de capa do principal rival na semana anterior.
Titulava o jornal que os empreendimentos da Ota e do TGV seriam adiados para a próxima legislatura. Prognóstico lógico, tanto mais que o primeiro-ministro daria, no próprio dia, uma entrevista televisiva onde deveria anunciar novidades. E essa era uma das possibilidades (com a qual, aliás, concordo plenamente).
A meio da manhã, os serviços informais da República começaram a desmentir a notícia, confirmando a intenção do governo PS de avançar já para as obras (megalómanas). O "Diário de Notícias", na pista certa, juntou mesmo mais dados, anunciando a participação de privados na operação e acrescentando as conclusões da auto-estrada até Bragança e da CRIL.
A credibilidade de um jornal é o seu património. Sem ele, o periódico fica condenado perante os parceiros informativos e a opinião pública. Esperava por isso ler hoje um pedido sincero, e sem reservas, da informação ontem veiculada. Bem posso sentar-me à sombra, enquanto espero.
José Manuel Fernandes, director do jornal, limitou-se a comentar as opções do governo, sem uma única palavra sobre a manchete que entendera erradamente difundir. Não tinha esse direito. Perdeu-o quando abdicou de explicar aos leitores as circunstâncias que produziram uma manchete a 180 graus do alvo. Esfarrapada, colada com cuspo ou substanciada, merecíamos uma explicação.
Na secção de economia, a cobertura do Programa de Investimentos em Infra-estruturas Prioritárias dedicou um parágrafo ao tema, dizendo:
«O PÚBLICO adiantava ontem que as obras propriamente ditas de construção destas infra-estruturas só deverão começar na próxima legislatura, sendo os investimentos previstos até 2009 para fazer estudos, projectos de engenharia e expropriações. Em comunicado, o Ministério desmentiu qualquer adiamento nos projectos, argumentando que, pelo contrário, estava a retomá-los, depois de estarem ‘paralisados nos últimos três anos’»
Lê-se e não se acredita. Lamento informar o autor da notícia, mas o PÚBLICO de ontem dizia mais do que isso. A manchete do PÚBLICO até era mais categórica, não deixando espaço para dúvidas. E o PÚBLICO de ontem estava redondamente errado [mesmo que a opção governamental seja questionável]. Sem um sincero pedido de desculpas, repito, nada do que o PÚBLICO tenha para dizer volta a ser minimamente respeitável. Às vezes, é no melhor pano que cai a nódoa. Mas é a forma encontrada para a limpar que distingue os nobres dos pobres de espírito.
Posto isto, passemos à manchete do "Público" de ontem. Na história do jornal lisboeta, adivinho poucas manhãs mais embaraçosas do que a de ontem. Imaginem o cenário. Um jornal com uma manchete desmentida imediatamente a meio da manhã e, pior do que isso, comprovando uma notícia de capa do principal rival na semana anterior.
Titulava o jornal que os empreendimentos da Ota e do TGV seriam adiados para a próxima legislatura. Prognóstico lógico, tanto mais que o primeiro-ministro daria, no próprio dia, uma entrevista televisiva onde deveria anunciar novidades. E essa era uma das possibilidades (com a qual, aliás, concordo plenamente).
A meio da manhã, os serviços informais da República começaram a desmentir a notícia, confirmando a intenção do governo PS de avançar já para as obras (megalómanas). O "Diário de Notícias", na pista certa, juntou mesmo mais dados, anunciando a participação de privados na operação e acrescentando as conclusões da auto-estrada até Bragança e da CRIL.
A credibilidade de um jornal é o seu património. Sem ele, o periódico fica condenado perante os parceiros informativos e a opinião pública. Esperava por isso ler hoje um pedido sincero, e sem reservas, da informação ontem veiculada. Bem posso sentar-me à sombra, enquanto espero.
José Manuel Fernandes, director do jornal, limitou-se a comentar as opções do governo, sem uma única palavra sobre a manchete que entendera erradamente difundir. Não tinha esse direito. Perdeu-o quando abdicou de explicar aos leitores as circunstâncias que produziram uma manchete a 180 graus do alvo. Esfarrapada, colada com cuspo ou substanciada, merecíamos uma explicação.
Na secção de economia, a cobertura do Programa de Investimentos em Infra-estruturas Prioritárias dedicou um parágrafo ao tema, dizendo:
«O PÚBLICO adiantava ontem que as obras propriamente ditas de construção destas infra-estruturas só deverão começar na próxima legislatura, sendo os investimentos previstos até 2009 para fazer estudos, projectos de engenharia e expropriações. Em comunicado, o Ministério desmentiu qualquer adiamento nos projectos, argumentando que, pelo contrário, estava a retomá-los, depois de estarem ‘paralisados nos últimos três anos’»
Lê-se e não se acredita. Lamento informar o autor da notícia, mas o PÚBLICO de ontem dizia mais do que isso. A manchete do PÚBLICO até era mais categórica, não deixando espaço para dúvidas. E o PÚBLICO de ontem estava redondamente errado [mesmo que a opção governamental seja questionável]. Sem um sincero pedido de desculpas, repito, nada do que o PÚBLICO tenha para dizer volta a ser minimamente respeitável. Às vezes, é no melhor pano que cai a nódoa. Mas é a forma encontrada para a limpar que distingue os nobres dos pobres de espírito.
terça-feira, junho 14, 2005
Tempo de antena
Nota de redacção: As próximas linhas são da responsabilidade exclusiva do interveniente.
Se algum dos estimados leitores quiser aparecer na próxima quinta-feira, às 17h, na Universidade Católica de Lisboa, poderá ouvir as minhas sábias palavras, no ciclo de seminários de investigação organizado por esta instituição. Clique na imagem para ver o programa.
FIM DE TEMPO DE ANTENA.
segunda-feira, junho 13, 2005
sexta-feira, junho 10, 2005
Também acontece
(Washington, 10 de Junho - Crónica final) Um processo judicial iniciado em 2003 está agora em vias de resolução, e o seu desfecho afigura-se relevante para o público português. Refiro-me à investigação que incidiu sobre as alegadas irregularidades da actividade de uma conhecida ONG: a Nature Conservancy. O processo que a seguir resumo não deve ser entendido como um sinal de reprovação extensível a casos portugueses ou norte-americanos. Mas é forçoso que não tomemos como certa a independência e autonomia de cada agente social (como aliás nos demonstra a recente vocação política de Sá Fernandes).
A comissão financeira do Senado americano apurou, segundo a imprensa (ainda não foram publicadas as conclusões oficiais) que a Nature Conservancy (NC) abusou da isenção fiscal a que tinha direito, uma vez que as ONG norte-americanas estão dispensadas de pagamento de imposto desde que que não ultrapassem determinado limite orçamental. Segundo a acusação, os bens da NC terão aumentado exponencialmente, superando quatro mil milhões de dólares em 2004, volume esse que obrigaria legalmente a associação a abdicar das regalias fiscais. Convenhamos que com tal actividade financeira o conceito de organizção sem fins lucrativos se tornava difuso.
Ao mesmo tempo, a associação alegadamente utilizou bens e serviços adquiridos em regime de doação, para realizar negócios privados com alguns dos seus administradores.
Reportagens do "Washington Post" de 2003 acusaram a associação de ter ainda beneficiado empresas com cadastro em processos de poluição, de ter permitido negócios madeireiros e petrolíferos em terrenos por si administrados e classificados como áreas protegidas; e, por fim, o jornal acusou ainda a associação de ter comprado terrenos beneficiando dos mecanismos legais favoráveis à permuta do uso de propriedade (de agrícola para ecológica), vendendo-os posteriormente a administradores da própria NC ou a empresas por eles controladas.
A investigação já produziu resultados palpáveis, ao desencadear a acção do senado e ao provocar a demissão em bloco dos quadros administrativos da NC. Nas próximas semanas, saber-se-á a que sanções concretas estará a organização sujeita.
Entretanto, a administração Bush apressou-se a revelar a necessidade de clarificar as relações por vezes nebulosas entre ONG, os seus bens e os seus benfeitores. Aguarda-se um pacote legal mais restritivo para a acção deste tipo de movimentos sociais.
Não creio que o processo pudesse ter semelhantes contornos em Portugal, e a experiência que colhi, junto de uma ONG que tratei num projecto académico, mostrou total abertura de contas e processos. Mas reafirmo que devemos olhar com natural preocupação para o processo da Nature Conservancy. Em primeiro lugar, porque creio que a gestão financeira de bens sai claramente da alçada tradicional de uma ONG; por outro lado, casos como este morrem muito depois da mera aplicação de medidas legais e têm repercussões duradouras. Quem volta a confiar nuam ONG depois de ter sido moralmente ludibriado? Como num sismo, a onda de choque demorará a fazer-se sentir.
A comissão financeira do Senado americano apurou, segundo a imprensa (ainda não foram publicadas as conclusões oficiais) que a Nature Conservancy (NC) abusou da isenção fiscal a que tinha direito, uma vez que as ONG norte-americanas estão dispensadas de pagamento de imposto desde que que não ultrapassem determinado limite orçamental. Segundo a acusação, os bens da NC terão aumentado exponencialmente, superando quatro mil milhões de dólares em 2004, volume esse que obrigaria legalmente a associação a abdicar das regalias fiscais. Convenhamos que com tal actividade financeira o conceito de organizção sem fins lucrativos se tornava difuso.
Ao mesmo tempo, a associação alegadamente utilizou bens e serviços adquiridos em regime de doação, para realizar negócios privados com alguns dos seus administradores.
Reportagens do "Washington Post" de 2003 acusaram a associação de ter ainda beneficiado empresas com cadastro em processos de poluição, de ter permitido negócios madeireiros e petrolíferos em terrenos por si administrados e classificados como áreas protegidas; e, por fim, o jornal acusou ainda a associação de ter comprado terrenos beneficiando dos mecanismos legais favoráveis à permuta do uso de propriedade (de agrícola para ecológica), vendendo-os posteriormente a administradores da própria NC ou a empresas por eles controladas.
A investigação já produziu resultados palpáveis, ao desencadear a acção do senado e ao provocar a demissão em bloco dos quadros administrativos da NC. Nas próximas semanas, saber-se-á a que sanções concretas estará a organização sujeita.
Entretanto, a administração Bush apressou-se a revelar a necessidade de clarificar as relações por vezes nebulosas entre ONG, os seus bens e os seus benfeitores. Aguarda-se um pacote legal mais restritivo para a acção deste tipo de movimentos sociais.
Não creio que o processo pudesse ter semelhantes contornos em Portugal, e a experiência que colhi, junto de uma ONG que tratei num projecto académico, mostrou total abertura de contas e processos. Mas reafirmo que devemos olhar com natural preocupação para o processo da Nature Conservancy. Em primeiro lugar, porque creio que a gestão financeira de bens sai claramente da alçada tradicional de uma ONG; por outro lado, casos como este morrem muito depois da mera aplicação de medidas legais e têm repercussões duradouras. Quem volta a confiar nuam ONG depois de ter sido moralmente ludibriado? Como num sismo, a onda de choque demorará a fazer-se sentir.
quinta-feira, junho 09, 2005
Pongo
A propósito de grandes conferencistas científicos, de anúncios pomposos de descobertas e de falsos ídolos.
«A grande novidade em Londres é a chegada de um hóspode ilustre – o sr.Pongo. Quem é o sr. Pongo? (…) O sr. Pongo não é um príncipe, nem um general, nem um escritor, nem um descobridor, nem sequer um rabequista – é simplesmente um macaco. Mas que macaco! É um gorilha [sic]: o primeiro,o único que tem vindo à Europa! (…) Comia ordinariamente farináceos e frutas, mas ultimamente o seu guarda, tendo-lhe dado um pedaço de bife, notou que Pongo o devorava com singular apetite. Começaram a dar-lhe carne e água; come tudo o que come um gentleman: o seu almoço é como o de qualquer de nós – ovos e costoletas ao breakfast. Veio-se à conclusão que poderia beber tudo – desde Bordéus até Moet et Chandon. (…) Milhares de pessoas afluem a admirar esta espécie de homem primitivo, que há alguns mil anos era o que havia de mais perfeito na superfície da Terra, e era então o rei da Criação! Quem sabe se daqui a alguns mil anos, quando a raça humana, tal qual é hoje, tiver quase desaparecido para dar lugar a uma forma humana mais perfeita, um sábio então não encontrará, nos desertos ou nos bosques, um último homem e não virá expô-lo nalguma Londres dessa época? E os seres mais perfeitos de então virão contemplar com espanto o seu antepassado, o homem, como nós hoje contemplamos o nosso antepassado, o gorilha!” (…) Pongo até agora, dorme bem, almoça o seu beefsteak, janta sopa, roast.beef e sobremesa, fuma três ou quatro charutos por dia, palita os dentes, dorme a sesta – e faz tudo o que faz qualquer inglês, excepto ter uma opinião sobre a Questão do Oriente, o que é, penso eu, uma qualidade a seu favor!»
Eça de Queiroz, in "Cartas de Inglaterra"
«A grande novidade em Londres é a chegada de um hóspode ilustre – o sr.Pongo. Quem é o sr. Pongo? (…) O sr. Pongo não é um príncipe, nem um general, nem um escritor, nem um descobridor, nem sequer um rabequista – é simplesmente um macaco. Mas que macaco! É um gorilha [sic]: o primeiro,o único que tem vindo à Europa! (…) Comia ordinariamente farináceos e frutas, mas ultimamente o seu guarda, tendo-lhe dado um pedaço de bife, notou que Pongo o devorava com singular apetite. Começaram a dar-lhe carne e água; come tudo o que come um gentleman: o seu almoço é como o de qualquer de nós – ovos e costoletas ao breakfast. Veio-se à conclusão que poderia beber tudo – desde Bordéus até Moet et Chandon. (…) Milhares de pessoas afluem a admirar esta espécie de homem primitivo, que há alguns mil anos era o que havia de mais perfeito na superfície da Terra, e era então o rei da Criação! Quem sabe se daqui a alguns mil anos, quando a raça humana, tal qual é hoje, tiver quase desaparecido para dar lugar a uma forma humana mais perfeita, um sábio então não encontrará, nos desertos ou nos bosques, um último homem e não virá expô-lo nalguma Londres dessa época? E os seres mais perfeitos de então virão contemplar com espanto o seu antepassado, o homem, como nós hoje contemplamos o nosso antepassado, o gorilha!” (…) Pongo até agora, dorme bem, almoça o seu beefsteak, janta sopa, roast.beef e sobremesa, fuma três ou quatro charutos por dia, palita os dentes, dorme a sesta – e faz tudo o que faz qualquer inglês, excepto ter uma opinião sobre a Questão do Oriente, o que é, penso eu, uma qualidade a seu favor!»
Eça de Queiroz, in "Cartas de Inglaterra"
O ovo e a galinha
(Washington, 8 de Junho) – Aparentemente, não é só em Portugal que se modificam decretos na escuridão dos gabinetes ou se promovem alterações legislativas pela porta do cavalo. Uma investigação do “Washington Post” tem dado que falar. Em causa o novo pacote legislativo da Administração Bush relativo ao mercado energético.
Inserido no amplo programa norte-americano de redução da dependência do petróleo e de contribuição para a melhoria da qualidade do ar, o novo diploma aparentemente incentiva os construtores de veículos híbridos (capazes de se moverem a gás ou etanol), oferecendo-lhes benefícios fiscais e poupando-os das multas por incumprimento de metas ambientais que, no ano passado, totalizaram 1,6 mil milhões de dólares. O projecto parecia louvável, mas uma ONG, a Natural Resources News Services, descodificou o documento para o Post e os sorrisos rapidamente desapareceram.
Como os preços do etanol e outros biocombustíveis não são ainda competitivos, a maior parte dos consumidores opta ainda pelos combustíveis fósseis. Ora o diploma não tem em conta o tipo de combustível que cada automobilista abastece. Limita-se a premiar todos os construtores que disponibilizem a opção pelo etanol a par do gás. E naturalmente é previsível que o consumidor mantenha a mesma orientação.
Todos os anos, o conusmo de gasolina no país aumenta 4%, e esta medida não travará minimamente esse crescimento. Limita-se, na essência, a poupar alguns milhares de dólares à maior parte dos construtores automóveis.
De certa forma, a polémica resume o velho enigma do ovo e da galinha. Os representantes da indústria de refinação alegam que não produzirão combustíveis limpos até haver automóveis que os usem; os construtores automóveis defendem-se, dizendo que não produzirão carros movidos a biocombustíveis sem haver um mercado competitivo de fornecimento de combustível alternativo. O público desconhece as oportunidades dos novos combustíveis ou, quando conhece, naão pretende pagar mais por isso. E deste círculo infinito ninguém parece querer sair.
Inserido no amplo programa norte-americano de redução da dependência do petróleo e de contribuição para a melhoria da qualidade do ar, o novo diploma aparentemente incentiva os construtores de veículos híbridos (capazes de se moverem a gás ou etanol), oferecendo-lhes benefícios fiscais e poupando-os das multas por incumprimento de metas ambientais que, no ano passado, totalizaram 1,6 mil milhões de dólares. O projecto parecia louvável, mas uma ONG, a Natural Resources News Services, descodificou o documento para o Post e os sorrisos rapidamente desapareceram.
Como os preços do etanol e outros biocombustíveis não são ainda competitivos, a maior parte dos consumidores opta ainda pelos combustíveis fósseis. Ora o diploma não tem em conta o tipo de combustível que cada automobilista abastece. Limita-se a premiar todos os construtores que disponibilizem a opção pelo etanol a par do gás. E naturalmente é previsível que o consumidor mantenha a mesma orientação.
Todos os anos, o conusmo de gasolina no país aumenta 4%, e esta medida não travará minimamente esse crescimento. Limita-se, na essência, a poupar alguns milhares de dólares à maior parte dos construtores automóveis.
De certa forma, a polémica resume o velho enigma do ovo e da galinha. Os representantes da indústria de refinação alegam que não produzirão combustíveis limpos até haver automóveis que os usem; os construtores automóveis defendem-se, dizendo que não produzirão carros movidos a biocombustíveis sem haver um mercado competitivo de fornecimento de combustível alternativo. O público desconhece as oportunidades dos novos combustíveis ou, quando conhece, naão pretende pagar mais por isso. E deste círculo infinito ninguém parece querer sair.
terça-feira, junho 07, 2005
Comparações desonestas
(Washington, 7 de Junho)- Por muitos ressentimentos que o modelo americano gere entre as opiniões públicas europeias, há uma ideia que é genuinamente americana e universalmente aceite como geradora do conceito contemporâneo de conservação: a noção de parque natural, instituída no século XIX e disseminada pelo mundo fora, como um vírus benigno.
Esta semana, tive oportunidade de visitar o Parque Natural de Shenandoah, na Virgínia, e constatei que há uma diferença abissal entre os conceitos português e americano. Chamamos-lhe o mesmo nome, é certo, mas os pontos de contacto terminam aí.
Se me permitem o sarcasmo, o plano de ordenamento deste parque foi aprovado no mesmo ano em que ele foi instituído. Não sofreu contestação. Foi aceite e integrado no tecido social e nas regras de ordenamento local. Contei por aqui, a uma audiência divertida, as peripécias da Arrábida, mas não fui levado a sério. Tentei, mesmo assim, defender a tese de que Portugal ostenta a discutível virtude de ter gerado um novo modelo de parque: o do parque que não tem regulamentos... para ser parque. Nao acreditaram.
Esperava encontrar nesta pequena área protegida (pequena para os padrões da América do Norte) mecanismos de rendibilização económica, como sucede em Yosemite ou Yellowstone e que tantas vezes são citados pelo presidente do ICN. Ironicamente, não há exploração comercial desta área protegida ou, por outra, o parque até permite contratação de guias, disponibiliza informação adicional mediante uma pequena taxa, aluga alojamentos e por aí fora. Mas o orçamento de Shenandoah é atribuído regionalmente. Tudo o que é amealhado através do tal conceito de "área protegida potenciada" é canalizado para uma ONG que, de certa forma, gere as minúcias do parque.
Ora, apesar de ser o governo regional a custear a área protegida, não há registos de protestos. O modelo não merece discussão na Virgínia. Encontrei, entre as pessoas com que falei, um orgulho genuíno pelo privilégio de poder viver a curta distância deste espaço. Aceitam as restrições que ele exige, não fazem fogueiras, nem deitam lixo para o chão. Não constroem à revelia, não cortam árvores, nem caçam furtivamente. Não emitem despachos que pronunciem incontestáveis interesses públicos. O parque valoriza a região que, por esse privilégio, paga uma fatia do orçamento. E o modelo parace funcionar.
Naturalmente, também há ameaças. Duas, disseram-me, ambas relacionadas com doenças da modernidade. A poluição atmosférica das estradas da região afecta tremendamente a qualidade do ar em Shenandoah. E depois... há as motas. As estradas que circundam o parque e alguns caminhos pedestres são usados pela comunidade motociclística local, que testa a velocidade nestas vias. Mostraram-me um site inacreditável onde se indicam os recordes de velocidade estabelecidos em cada curva apertada, nas rampas mais acentuadas e por aí fora. Inevitavelmente, morre uma pessoa a cada duas semanas com estas brincadeiras.
Mas estes são, convenhamos, os problemas de um país sobredesenvolvido que, como uma criança que cresce sempre mais rápido do que as suas roupas, tem regularmente de encontrar soluções para novos problemas. A mensagem que pretendo transmitir nesta crónica é bem mais óbvia: citar o modelo americano de financiamento de áreas protegidas públicas sem relatar as suas especificidades é, não só desonesto, como perigoso. Porque, mesmo aqui, no paraíso do liberalismo, o Estado não abdica da tutela e da responsabilidade sobre os valores naturais. Admite que necessita de verbas para que o trabalho seja mais eficiente, mas não se demite da sua responsabilidade. Se vamos decalcar fórmulas alheias, convém, pelo menos, que atentemos em todos os elementos que as compõem.
Esta semana, tive oportunidade de visitar o Parque Natural de Shenandoah, na Virgínia, e constatei que há uma diferença abissal entre os conceitos português e americano. Chamamos-lhe o mesmo nome, é certo, mas os pontos de contacto terminam aí.
Se me permitem o sarcasmo, o plano de ordenamento deste parque foi aprovado no mesmo ano em que ele foi instituído. Não sofreu contestação. Foi aceite e integrado no tecido social e nas regras de ordenamento local. Contei por aqui, a uma audiência divertida, as peripécias da Arrábida, mas não fui levado a sério. Tentei, mesmo assim, defender a tese de que Portugal ostenta a discutível virtude de ter gerado um novo modelo de parque: o do parque que não tem regulamentos... para ser parque. Nao acreditaram.
Esperava encontrar nesta pequena área protegida (pequena para os padrões da América do Norte) mecanismos de rendibilização económica, como sucede em Yosemite ou Yellowstone e que tantas vezes são citados pelo presidente do ICN. Ironicamente, não há exploração comercial desta área protegida ou, por outra, o parque até permite contratação de guias, disponibiliza informação adicional mediante uma pequena taxa, aluga alojamentos e por aí fora. Mas o orçamento de Shenandoah é atribuído regionalmente. Tudo o que é amealhado através do tal conceito de "área protegida potenciada" é canalizado para uma ONG que, de certa forma, gere as minúcias do parque.
Ora, apesar de ser o governo regional a custear a área protegida, não há registos de protestos. O modelo não merece discussão na Virgínia. Encontrei, entre as pessoas com que falei, um orgulho genuíno pelo privilégio de poder viver a curta distância deste espaço. Aceitam as restrições que ele exige, não fazem fogueiras, nem deitam lixo para o chão. Não constroem à revelia, não cortam árvores, nem caçam furtivamente. Não emitem despachos que pronunciem incontestáveis interesses públicos. O parque valoriza a região que, por esse privilégio, paga uma fatia do orçamento. E o modelo parace funcionar.
Naturalmente, também há ameaças. Duas, disseram-me, ambas relacionadas com doenças da modernidade. A poluição atmosférica das estradas da região afecta tremendamente a qualidade do ar em Shenandoah. E depois... há as motas. As estradas que circundam o parque e alguns caminhos pedestres são usados pela comunidade motociclística local, que testa a velocidade nestas vias. Mostraram-me um site inacreditável onde se indicam os recordes de velocidade estabelecidos em cada curva apertada, nas rampas mais acentuadas e por aí fora. Inevitavelmente, morre uma pessoa a cada duas semanas com estas brincadeiras.
Mas estes são, convenhamos, os problemas de um país sobredesenvolvido que, como uma criança que cresce sempre mais rápido do que as suas roupas, tem regularmente de encontrar soluções para novos problemas. A mensagem que pretendo transmitir nesta crónica é bem mais óbvia: citar o modelo americano de financiamento de áreas protegidas públicas sem relatar as suas especificidades é, não só desonesto, como perigoso. Porque, mesmo aqui, no paraíso do liberalismo, o Estado não abdica da tutela e da responsabilidade sobre os valores naturais. Admite que necessita de verbas para que o trabalho seja mais eficiente, mas não se demite da sua responsabilidade. Se vamos decalcar fórmulas alheias, convém, pelo menos, que atentemos em todos os elementos que as compõem.
domingo, junho 05, 2005
Cronica americana
Nao era desta forma que eu pretendia comecar as minhas cronicas em solo americano, mas circunstancias inesperadas modificaram o planeamento. Como alias o leitor verificara...
Comeco por dizer que, se fosse catolico, ja nao temeria o inferno porque estive no aeroporto de Newark e sobrevivi. A custo, mas sobrevivi.
Voo longo, na TAP, atrasado como de costume e pontuado pela tradicional exibicao de ingles macarronico do comandante. Nao sei explicar o motivo, mas nao ha comandante da TAP que nao devore silabas quando tem de balbuciar algumas frases em ingles. Ladies and gentmens. This is ycptain spking.
Nos tempos que correm, chegar a um aeroporto americano e uma proeza ousada, como ir as compras em Luanda ou assistir a um concerto dos HeartWork. De ano para ano, constato que os funcionarios da imgracao estao mais rudes, qualidade certamente cultivada no servico (os polidos nao estao no atendimento ao publico).
Perguntas da praxe. Protocolo. Ja leu Derrida? Conhece Ralph Nader? Os Suns vao ganhar o titulo da NBA? Sou obrigado a deixar a impressao dos dois indicadores para a posteridade e a sorrir para uma minicamara. Qualquer dia so me deixam entrar depois de uma exibicao de sapateado, replicando movimentos do Fred Astaire (nota mental: treinar o bater dos tacoes e pedir ao sapateiro novas salas de ferro).
Subir escadas e elevadores, Apanhar o comboio de superficie. E com tanta carruagem disponivel, tenho de partilhar a minha com o Joaquim Almeida - o actor.
Sair do comboio a sete pes. Passar para aseccao da revista de bagagens. A desorganizacao e tal que faz parecer sintonizados os funcionarios da Seguranca Social da Loja do Cidadao, em Lisboa. Tirar cinto. Tirar sapatos. Nao me enganei: parece que vou mesmo dancar sapateado para ser aprovado. Ou nao.
Confirmando por fim que nao sou um perigoso terrorista - embora a ideia de um Mujahiddin a correr desenfreado por estes corredores me pareca menos despropositada a medida que as horas passam -, la me deixam passar.
Chegar a porta de embarque. O voo de ligacao ja partiu. Arrancar cabelos as mao-cheias. Voltar a Continental para emitir novo bilhete para um voo tres horas depois.
Sou atendido por um mascador, um ser humano que rumina furiosamente uma pastilha como se nao houvesse amanha. Pausas. Incrivelmente, ele interrompe para ir buscar comida. O cheiro pestilento do sebo dos hamburgueres faz-me pensar que por esta provacao nem o pequeno Martunis passou.
Novo voo finalmente marcado. Resta (des)esperar.
A primeira reuniao ja esta perdida. Encontrar formas de passar o tempo. Ler o "Publico" de ponta a ponta, ate a cronica do Eduardo Cintra Torres -o desespero leva um homem as praticas mais abominaveis.
Compro um cartao para aceder a um destes novos terminais de Internet. Dez dolares depois, a maquina agradeceu, comeu a nota e nao se mexeu.Faco um escarceu dos diabos. Ja bem basta teclar num computador sem acentos (as minhas desculpas por esta prosa "desacentuada" que parece um original da Maria Joao Avillez antes das correccoes ortograficas).
Comeco por dizer que, se fosse catolico, ja nao temeria o inferno porque estive no aeroporto de Newark e sobrevivi. A custo, mas sobrevivi.
Voo longo, na TAP, atrasado como de costume e pontuado pela tradicional exibicao de ingles macarronico do comandante. Nao sei explicar o motivo, mas nao ha comandante da TAP que nao devore silabas quando tem de balbuciar algumas frases em ingles. Ladies and gentmens. This is ycptain spking.
Nos tempos que correm, chegar a um aeroporto americano e uma proeza ousada, como ir as compras em Luanda ou assistir a um concerto dos HeartWork. De ano para ano, constato que os funcionarios da imgracao estao mais rudes, qualidade certamente cultivada no servico (os polidos nao estao no atendimento ao publico).
Perguntas da praxe. Protocolo. Ja leu Derrida? Conhece Ralph Nader? Os Suns vao ganhar o titulo da NBA? Sou obrigado a deixar a impressao dos dois indicadores para a posteridade e a sorrir para uma minicamara. Qualquer dia so me deixam entrar depois de uma exibicao de sapateado, replicando movimentos do Fred Astaire (nota mental: treinar o bater dos tacoes e pedir ao sapateiro novas salas de ferro).
Subir escadas e elevadores, Apanhar o comboio de superficie. E com tanta carruagem disponivel, tenho de partilhar a minha com o Joaquim Almeida - o actor.
Sair do comboio a sete pes. Passar para aseccao da revista de bagagens. A desorganizacao e tal que faz parecer sintonizados os funcionarios da Seguranca Social da Loja do Cidadao, em Lisboa. Tirar cinto. Tirar sapatos. Nao me enganei: parece que vou mesmo dancar sapateado para ser aprovado. Ou nao.
Confirmando por fim que nao sou um perigoso terrorista - embora a ideia de um Mujahiddin a correr desenfreado por estes corredores me pareca menos despropositada a medida que as horas passam -, la me deixam passar.
Chegar a porta de embarque. O voo de ligacao ja partiu. Arrancar cabelos as mao-cheias. Voltar a Continental para emitir novo bilhete para um voo tres horas depois.
Sou atendido por um mascador, um ser humano que rumina furiosamente uma pastilha como se nao houvesse amanha. Pausas. Incrivelmente, ele interrompe para ir buscar comida. O cheiro pestilento do sebo dos hamburgueres faz-me pensar que por esta provacao nem o pequeno Martunis passou.
Novo voo finalmente marcado. Resta (des)esperar.
A primeira reuniao ja esta perdida. Encontrar formas de passar o tempo. Ler o "Publico" de ponta a ponta, ate a cronica do Eduardo Cintra Torres -o desespero leva um homem as praticas mais abominaveis.
Compro um cartao para aceder a um destes novos terminais de Internet. Dez dolares depois, a maquina agradeceu, comeu a nota e nao se mexeu.Faco um escarceu dos diabos. Ja bem basta teclar num computador sem acentos (as minhas desculpas por esta prosa "desacentuada" que parece um original da Maria Joao Avillez antes das correccoes ortograficas).
sexta-feira, junho 03, 2005
Hilariante II
Ontem, na pacata Vila Ruiva, a caminho do Alvito, deparei com mais um dos hilariantes dichotes de parede que tanto prendem a minha atenção. Ora, em pleno Alentejo, descobri que não é só o Futebol Clube do Porto que negociou o patrocínio desportivo com a Nike. O Vila Ruiva Futebol Clube, aparentemente, também. Ou isso ou alguém se divertiu a desenhar o logotipo da multinacional americana junto ao nome do clube.
domingo, maio 29, 2005
O Rei Vai Nu
«De cada vez que nomeio alguém, crio um ingrato e 100 ciumentos»
A propósito da nomeação do ex-autarca e ex-ministro Fernando Gomes para a administração da Galp Energia, recordo esta velha citação atribuída a Luís XIV. Mas, para além da gargalhada que a grotesca nomeação despertou nos portugueses mais ou menos racionais (vão escasseando, garanto, vão escasseando), impõe-se uma reflexão sarcástica sobre estes poisos temporários que as figuras partidárias caídas em relativa desgraça parecem encontrar em períodos de exílio.
Curiosamente, o primeiro bloco de críticas nasce sempre do principal partido da oposição. Irónico, no mínimo, que o PSD ouse beliscar a nomeação, se não contestou a presidência de Ferreira do Amaral ou as candidaturas de Guido Albuquerque ou Nuno Moreira da Cruz. Neste caso, não é o descrédito da instituição que aflige o PSD. É o despeito.
Do lado do PS, não ficava mal se alguma voz iluminada tomasse o microfone para dizer aquilo que todos nós vemos: o rei vai nu. Não há explicação possível para esta nomeação, nem há nada no currículo político ou empresarial (por escasso que este último seja) de Fernando Gomes que o torne candidato natural ao caso. Não se lhe conhecem tomadas de posição sobre a energia em Portugal; não se lhe ouviram apreciações sobre o mercado petrolífero em Portugal; ninguém sabe sequer se Fernando Gomes sabe distinguir a gasolina do diesel. Quanto muito, a afinidade que tinha com o sector limitava-se à ocasião semanal em que parava o carro numa gasolineira e abastecia o veículo.
Cito, com a devida vénia, do Minha Rica Casinha uma passagem exemplar:
«O simples só ambicionava, e só isso ousou balbuciar, um lugarzinho como economista.
Fardadinho de azul, queria ferrar às oito e (disso não abdicava) lá pelo meio dia e meia hora fazia pausa, e da lanchonete tirava uma de paio e a sagres.
Depois, ao final da tarde, a sirene amiga, o desferrar e o voltar aos seus com o sabor do dever cumprido. Era só o que esta abnegada alma queria. Mas não: fizeram-no administrador. E agora, o pobre, até está desnorteado.»
A propósito da nomeação do ex-autarca e ex-ministro Fernando Gomes para a administração da Galp Energia, recordo esta velha citação atribuída a Luís XIV. Mas, para além da gargalhada que a grotesca nomeação despertou nos portugueses mais ou menos racionais (vão escasseando, garanto, vão escasseando), impõe-se uma reflexão sarcástica sobre estes poisos temporários que as figuras partidárias caídas em relativa desgraça parecem encontrar em períodos de exílio.
Curiosamente, o primeiro bloco de críticas nasce sempre do principal partido da oposição. Irónico, no mínimo, que o PSD ouse beliscar a nomeação, se não contestou a presidência de Ferreira do Amaral ou as candidaturas de Guido Albuquerque ou Nuno Moreira da Cruz. Neste caso, não é o descrédito da instituição que aflige o PSD. É o despeito.
Do lado do PS, não ficava mal se alguma voz iluminada tomasse o microfone para dizer aquilo que todos nós vemos: o rei vai nu. Não há explicação possível para esta nomeação, nem há nada no currículo político ou empresarial (por escasso que este último seja) de Fernando Gomes que o torne candidato natural ao caso. Não se lhe conhecem tomadas de posição sobre a energia em Portugal; não se lhe ouviram apreciações sobre o mercado petrolífero em Portugal; ninguém sabe sequer se Fernando Gomes sabe distinguir a gasolina do diesel. Quanto muito, a afinidade que tinha com o sector limitava-se à ocasião semanal em que parava o carro numa gasolineira e abastecia o veículo.
Cito, com a devida vénia, do Minha Rica Casinha uma passagem exemplar:
«O simples só ambicionava, e só isso ousou balbuciar, um lugarzinho como economista.
Fardadinho de azul, queria ferrar às oito e (disso não abdicava) lá pelo meio dia e meia hora fazia pausa, e da lanchonete tirava uma de paio e a sagres.
Depois, ao final da tarde, a sirene amiga, o desferrar e o voltar aos seus com o sabor do dever cumprido. Era só o que esta abnegada alma queria. Mas não: fizeram-no administrador. E agora, o pobre, até está desnorteado.»
sábado, maio 28, 2005
Cortesia ao Volante?
Ontem, numa rua de Lisboa.
Dois carros, um único lugar. Os dois condutores (um ele e uma ela) discutem acaloradamente quem primeiro viu a vaga. Gorada a diplomacia, seguiu-se a prova de esforço. Ambos recusaram mexer-se. O veículo da frente não avançava para não dar margem de manobra à senhora do carro de trás. Esta, por sua vez, não recuava para impedir o estacionamento do rival. Os dois adultos (!) demoraram quinze minutos a resolver o diferendo e só pararam quando surgiu uma saída airosa para ambos. Abriu uma vaga vinte metros à frente, que permitiu ao condutor manter o orgulho e um lugar de estacionamento...
Conto este caso corriqueiro numa altura em que já passou quase um mês sobre o Dia Nacional da Cortesia ao Volante (5 de Maio), efeméride assinalada pelo lema "A estrada não é um ringue de boxe". Os promotores da iniciativa postularam um quadro de quinze mandamentos, que nos fazem sorrir quando vemos casos destes em Lisboa. Porque a estrada é hoje, cada vez mais, um ringue de boxe.
(ver quadro completo dos mandamentos da cortesia ao volante aqui).
terça-feira, maio 24, 2005
Crónica de Escárnio e Maldizer
As manifestações colectivas de rua já foram uma marca política. De forte carga simbólica, constituíam indesmentíveis demonstrações de fé na(s) causa(s). Associações, centrais sindicais, partidos, jornais desmultiplicavam esforços para encher de gente as avenidas. Por definição, a manifestação mais concorrida era a que melhor expressava o pulsar da nação, e os jornais afectos a uma ou outra causa exageravam propositadamente as estimativas de presenças. Mais gente é e sempre foi igual a mais força. Quod erat demonstrandum.
Com o tempo, a natureza das manifestações modificou-se. A participação popular diminuiu. As ocasiões de festejo colectivo tornaram-se mais espaçadas. Progressivamente, as manifestações colectivas ficaram guardadas para momentos eleitorais. Ali, as «jotas» prometem mundos e fundos para encher a arena de população, arrebanhando fiéis de circunstância para que o plano americano das televisões não pareça muito mal. Pouco importa o credo partidário. É preciso compor o cenário. Nas últimas eleições legislativas, um velho amigo ligou-me, pesaroso. Estava no último comício do "menino guerreiro". «Fui arregimentado. Não pude dizer que não», queixava-se ele, ao telefone, procurando sobrepor a voz aos urros que os altifalantes emitiam.
Mas não é sobre demonstrações de fé forçada (ou forjada) que quero hoje escrever. Falo deste estranho rito tribal, que leva milhares às ruas para festejar o triunfo do emblema desportivo local. De cachecol pendurado na janela e mão descansando pesadamente sobre a buzina, o manifestante moderno passeia pela cidade sem rumo aparente. Como um bebé, necessita apenas que o carro esteja em movimento. E precisa sobretudo de se sentir acompanhado. Muito acompanhado.
Imaginem o desconsolo de um único automobilista, sozinho, circulando na rotunda do Marquês do Pombal! Inaudito. O manifestante moderno precisa da desresponsabilização gerada pelo número. Apita em gruto. Berra em grupo. Insulta protegido pelo grupo. Das cavernas à modernidade, dista apenas um som gutural.
Ele apita freneticamente enquanto entoa cânticos primários. Urra. Algum, mais afoito, trepa uma estátua, movido porventura pela secreta esperança de encontrar a fortuna no topo, como a lenda do caldeirão de moedas no fim do arco-íris. Debalde. Chegado ao topo, resta-lhe descer, de sorriso cretino estampado no rosto. É saudado como um Cabral, herói contemporâneo que desafiou a gravidade e os elementos.
Parece-lhe incrível que alguém possa circular na cidade com outro fim que não o buzinão. Desfralda a bandeira, grita slogans rudimentares e bate no "capot" como um salvo-conduto clubístico. «Este pode passar. Parece ser dos nossos»
O ruído é a sua razão de ser e não lhe ocorre que poderia festejar sem buzinar ou berrar como um leitão desmamamdo. A ordem imposta ao protesto estragaria o gozo. E é vê-lo a rir-se das forças da ordem impotentes ou dos sinais de aviso da proximidade de hospitais ou maternidades. A transgressão atrai, sobretudo quando o número garante segurança.
Colecciona todo o tipo de troféus a que pode deitar mão. Arranca sinais de trânsito, tabuletas, caixotes do lixo ou outros pacíficos objectos numa captura frenética de "souvenirs" que, num dia normal, o indignaria. Encontra justificação para a barbárie no carácter absolutamente inovador da vitória do seu clube, como se todos os anos não houvesse campeonato e campeão. E canta, senhores, canta muito. Melodias cretinas destinadas a inimigos ausentes e que glorificam a campanha da temporada, desenvolvida, como é natural, «contra tudo e contra tudos». Não faria sentido inventar músicas se a campanha não tivesse sido heróica ou gloriosa.
Gosto particularmente da proliferação de cretinices que se dizem na circunstância. "Isto estava mal, mas agora vai mudar." "A crise já não me assusta." "Esta é a maior instituição do país." Quem ousaria contestar as propostas teóricas de quem passa uma noite inteira a gritar uma sigla e o adjectivo glorioso? Pois com certeza. Tem toda a razão.
Como nos trabalhos pioneiros do antropólogo Claude Lévy-Strauss, proponho cunhar este achado cultural tão próprio da nossa terra, com um vocábulo específico. Chamo-lhe o grunho buzinador, espécie nada ameaçada nesta Lisboa tristemente benfiquista. Irra!
Com o tempo, a natureza das manifestações modificou-se. A participação popular diminuiu. As ocasiões de festejo colectivo tornaram-se mais espaçadas. Progressivamente, as manifestações colectivas ficaram guardadas para momentos eleitorais. Ali, as «jotas» prometem mundos e fundos para encher a arena de população, arrebanhando fiéis de circunstância para que o plano americano das televisões não pareça muito mal. Pouco importa o credo partidário. É preciso compor o cenário. Nas últimas eleições legislativas, um velho amigo ligou-me, pesaroso. Estava no último comício do "menino guerreiro". «Fui arregimentado. Não pude dizer que não», queixava-se ele, ao telefone, procurando sobrepor a voz aos urros que os altifalantes emitiam.
Mas não é sobre demonstrações de fé forçada (ou forjada) que quero hoje escrever. Falo deste estranho rito tribal, que leva milhares às ruas para festejar o triunfo do emblema desportivo local. De cachecol pendurado na janela e mão descansando pesadamente sobre a buzina, o manifestante moderno passeia pela cidade sem rumo aparente. Como um bebé, necessita apenas que o carro esteja em movimento. E precisa sobretudo de se sentir acompanhado. Muito acompanhado.
Imaginem o desconsolo de um único automobilista, sozinho, circulando na rotunda do Marquês do Pombal! Inaudito. O manifestante moderno precisa da desresponsabilização gerada pelo número. Apita em gruto. Berra em grupo. Insulta protegido pelo grupo. Das cavernas à modernidade, dista apenas um som gutural.
Ele apita freneticamente enquanto entoa cânticos primários. Urra. Algum, mais afoito, trepa uma estátua, movido porventura pela secreta esperança de encontrar a fortuna no topo, como a lenda do caldeirão de moedas no fim do arco-íris. Debalde. Chegado ao topo, resta-lhe descer, de sorriso cretino estampado no rosto. É saudado como um Cabral, herói contemporâneo que desafiou a gravidade e os elementos.
Parece-lhe incrível que alguém possa circular na cidade com outro fim que não o buzinão. Desfralda a bandeira, grita slogans rudimentares e bate no "capot" como um salvo-conduto clubístico. «Este pode passar. Parece ser dos nossos»
O ruído é a sua razão de ser e não lhe ocorre que poderia festejar sem buzinar ou berrar como um leitão desmamamdo. A ordem imposta ao protesto estragaria o gozo. E é vê-lo a rir-se das forças da ordem impotentes ou dos sinais de aviso da proximidade de hospitais ou maternidades. A transgressão atrai, sobretudo quando o número garante segurança.
Colecciona todo o tipo de troféus a que pode deitar mão. Arranca sinais de trânsito, tabuletas, caixotes do lixo ou outros pacíficos objectos numa captura frenética de "souvenirs" que, num dia normal, o indignaria. Encontra justificação para a barbárie no carácter absolutamente inovador da vitória do seu clube, como se todos os anos não houvesse campeonato e campeão. E canta, senhores, canta muito. Melodias cretinas destinadas a inimigos ausentes e que glorificam a campanha da temporada, desenvolvida, como é natural, «contra tudo e contra tudos». Não faria sentido inventar músicas se a campanha não tivesse sido heróica ou gloriosa.
Gosto particularmente da proliferação de cretinices que se dizem na circunstância. "Isto estava mal, mas agora vai mudar." "A crise já não me assusta." "Esta é a maior instituição do país." Quem ousaria contestar as propostas teóricas de quem passa uma noite inteira a gritar uma sigla e o adjectivo glorioso? Pois com certeza. Tem toda a razão.
Como nos trabalhos pioneiros do antropólogo Claude Lévy-Strauss, proponho cunhar este achado cultural tão próprio da nossa terra, com um vocábulo específico. Chamo-lhe o grunho buzinador, espécie nada ameaçada nesta Lisboa tristemente benfiquista. Irra!
sábado, maio 21, 2005
Quioto, 2800 dias depois
Acabo de ler um artigo de Frédéric Durand, publicado no "Le Monde Diplomatique". Durand é um universitário de Toulouse, que se tem pronunciado regularmente sobre as alterações climáticas e tem avaliado o contributo intergovernamental para minimizar o previsível aquecimento global do planeta. O seu artigo "Sale Temps Sur le Climat" é porventura o mais amargo de todos os que li e representa um ataque claro aos signatários e não signatários do protocolo de Quioto.
Primeira premissa: perdeu-se tempo de mais a avaliar os riscos das alterações climáticas. Durand defende que, desde meados dos anos 1980, era previsível que caminhávamos para uma alteração sensível da temperatura média do globo, com as correspondentes consequências ao nível da subida da água do mar, da deterioração das zonas húmidas, da alteração de correntes marítimas e porventura de radicais modificações de clima global. O Grupo Intergovernamental para Evolução Climática demorou tempo de mais a divulgar conclusões e, pior, escondeu-se sempre sob o manto da probabilidade científica, evitando certezas incómodas e relegando para o futuro decisões urgentes.
Segunda premissa: o «lobby» dos combustíveis fósseis fez o seu trabalho com afinco e, em meados dos anos 1990 (e porventura ainda agora), era possível encontrar trabalhos científicos, alegando que o papel humano no aumento das emissões de gases com efeito de estufa não estava ainda provado e que o fenómeno poderia resultar de um aumento da actividade solar! A incerteza foi sempre uma arma. Não cabia demonstrar que estas duas teses eram verdadeiras, mas sim que o poderiam ser. Instalada a incerteza, não se poderiam tomar medidas globais.
Foi neste contexto controverso, diz Durand, que os países se juntaram em Quioto em 1997. Os Estados Unidos, responsáveis à data por 22% das emissões globais de CO2, propuseram a estabilização das emissões em 2012 tomando como parâmetro de comparação os níveis de 1990. Os países europeus propuseram uma redução global de 15% das emissões nos países industralizados, tendo 1990 como ano de referência.
Como sucede como frequência nas grandes conferências, o resultado ficou a meio caminho entre duas propostas: é público que o protocolo estabeleceu como premissa uma redução de 5,2% até 2012 tomando as emissões de 1990 como valor-base.
Durand argumenta que os europeus foram pouco ousados. Para um país como a França, com forte capacidade de desenvolvimento nuclear, o protocolo exigia apenas uma redução real de 1%, Para a média da União Europeia, a fasquia era também baixa: 5%. Em contrapartida, para os EUA, o protocolo exigia uma quebra real de 18% e 16% para o Japão. Foi certamente por isto que os EUA se recusaram a assinar o tratado.
Uma das questões que mais reservas me coloca em Quioto, desde o início, é o esquecimento compulsivo das economias emergentes nos países em vias de desenvolvimento. Era previsível em 1997 que a China, a Índia e mesmo o Brasil avançariam rapidamente no processo de industralização e as suas emissões deveriam ter sido, desde logo, limitadas. Não o foram. Beneficiaram de um salvo-conduto para imitar os erros industriais dos antecessores.
Optou-se além disso por um mecanismo confuso e dúbio de "um mercado dos direitos de poluição", uma solução tacanha e cuja eficácia ainda carece de prova.
Quioto é a melhor solução? Hoje, mais ainda do que em 1998, não parece. Desde 2001 que o Instituto de Avaliação das Estratégias para a Energia e o Ambiente na Europa (Inestene) tem levantado dúvidas contínuas sobre o tratado e as suas condições de sucesso. Mesmo que se cumprissem as exigências do protocolo, o Inestene considera que se conseguiria apenas baixar 0,06ºC dos 2ºC de aumento da temperatura média do globo previstos para 2050 de acordo com vários modelos climáticos apresentados. As contas são por isso simples, e Durand apresenta-as com clareza inquestionável: «Esses 0,06ºC correspondem apenas a 3% do esfroço a realizar para travar efectivamente o aquecimento global (...) O nosso modelo de dsenvolvimento corresponde potencialmente a um choque frontal com um muro a 100km/h. Com esse diagnóstico, o que fizemos em Quioto? Propusemos redzuir 3% da velocidade, para 97km/h, na esperança de que já seria suficiente para evitar danos! Não é»
E isto, repito, assumindo que as metas de Quioto vão ser cumpridas. Cá estaremos para ver.
Primeira premissa: perdeu-se tempo de mais a avaliar os riscos das alterações climáticas. Durand defende que, desde meados dos anos 1980, era previsível que caminhávamos para uma alteração sensível da temperatura média do globo, com as correspondentes consequências ao nível da subida da água do mar, da deterioração das zonas húmidas, da alteração de correntes marítimas e porventura de radicais modificações de clima global. O Grupo Intergovernamental para Evolução Climática demorou tempo de mais a divulgar conclusões e, pior, escondeu-se sempre sob o manto da probabilidade científica, evitando certezas incómodas e relegando para o futuro decisões urgentes.
Segunda premissa: o «lobby» dos combustíveis fósseis fez o seu trabalho com afinco e, em meados dos anos 1990 (e porventura ainda agora), era possível encontrar trabalhos científicos, alegando que o papel humano no aumento das emissões de gases com efeito de estufa não estava ainda provado e que o fenómeno poderia resultar de um aumento da actividade solar! A incerteza foi sempre uma arma. Não cabia demonstrar que estas duas teses eram verdadeiras, mas sim que o poderiam ser. Instalada a incerteza, não se poderiam tomar medidas globais.
Foi neste contexto controverso, diz Durand, que os países se juntaram em Quioto em 1997. Os Estados Unidos, responsáveis à data por 22% das emissões globais de CO2, propuseram a estabilização das emissões em 2012 tomando como parâmetro de comparação os níveis de 1990. Os países europeus propuseram uma redução global de 15% das emissões nos países industralizados, tendo 1990 como ano de referência.
Como sucede como frequência nas grandes conferências, o resultado ficou a meio caminho entre duas propostas: é público que o protocolo estabeleceu como premissa uma redução de 5,2% até 2012 tomando as emissões de 1990 como valor-base.
Durand argumenta que os europeus foram pouco ousados. Para um país como a França, com forte capacidade de desenvolvimento nuclear, o protocolo exigia apenas uma redução real de 1%, Para a média da União Europeia, a fasquia era também baixa: 5%. Em contrapartida, para os EUA, o protocolo exigia uma quebra real de 18% e 16% para o Japão. Foi certamente por isto que os EUA se recusaram a assinar o tratado.
Uma das questões que mais reservas me coloca em Quioto, desde o início, é o esquecimento compulsivo das economias emergentes nos países em vias de desenvolvimento. Era previsível em 1997 que a China, a Índia e mesmo o Brasil avançariam rapidamente no processo de industralização e as suas emissões deveriam ter sido, desde logo, limitadas. Não o foram. Beneficiaram de um salvo-conduto para imitar os erros industriais dos antecessores.
Optou-se além disso por um mecanismo confuso e dúbio de "um mercado dos direitos de poluição", uma solução tacanha e cuja eficácia ainda carece de prova.
Quioto é a melhor solução? Hoje, mais ainda do que em 1998, não parece. Desde 2001 que o Instituto de Avaliação das Estratégias para a Energia e o Ambiente na Europa (Inestene) tem levantado dúvidas contínuas sobre o tratado e as suas condições de sucesso. Mesmo que se cumprissem as exigências do protocolo, o Inestene considera que se conseguiria apenas baixar 0,06ºC dos 2ºC de aumento da temperatura média do globo previstos para 2050 de acordo com vários modelos climáticos apresentados. As contas são por isso simples, e Durand apresenta-as com clareza inquestionável: «Esses 0,06ºC correspondem apenas a 3% do esfroço a realizar para travar efectivamente o aquecimento global (...) O nosso modelo de dsenvolvimento corresponde potencialmente a um choque frontal com um muro a 100km/h. Com esse diagnóstico, o que fizemos em Quioto? Propusemos redzuir 3% da velocidade, para 97km/h, na esperança de que já seria suficiente para evitar danos! Não é»
E isto, repito, assumindo que as metas de Quioto vão ser cumpridas. Cá estaremos para ver.
quinta-feira, maio 12, 2005
Uma Sucursal do Grémio
Nos tempos que correm, cada vez mais, o parlamento é uma sucursal do grémio. - Eça
Aparentemente, os últimos dias de governação parecem ser os mais animados e divertidos. Solto da pressão eleitoral, liberto dos patetas das distritais e livre dos camafeus da imprensa, o ministro pode por fim dedicar-se ao que mais importa: o «day after». Caramba! Ser ministro é muito bonito e permite-nos apregoar patetices em «cocktails» («Quer o Fontes Pereira de Melo, quer eu, batemo-nos contra a centralização do Terreiro do Paço»), mas não puxa carroças. Não, dizia, os últimos dias de governação reservam-se para as coisas verdadeiramente importantes. Pelo que a experiência recente nos ensina, é nos dias pós-eleições, enquanto se aguarda a chegada dos triunfadores da véspera, que um ministro pode por fim compensar as agruras. E deixar a sua marca indelével no ordenamento do território, corrigindo, rectificando, aumentando, diminuindo superfícies e classificações de protecção. Com um brilho nos olhos, o ministro talvez imagine os livros de história: «Esta foi a medida mais ousada do ciclo de governação, tomada por fulano tal, contra ventos e marés."
O raciocínio subjacente a este estranho afã governativo é o de que o comboio da nação não se detém por nada - muito menos pela chegada iminente de um novo elenco de governantes, provavelmente dotados da mesma sensibilidade para o Ambiente que Sousa Lara tinha para avaliar projectos culturais. Por isso, perante a chegada iminente dos bárbaros, o ministro pega na caneta e rectifica áreas protegidas, aceita excepções aos estatutos de protecção ou manda avançar as moto-serras. Em nome do imprescindível interesse público da operação, seja ela um Freeport em Alcochete, um projecto inenarrável em Mourão ou uma estância de golfe em Benavente.
Enquanto nos vários ministérios, os funcionários se entretinham a redigir os seus próprios louvores (quem melhor do que eu para me avaliar, sobretudo porque me conheço praticamente desde o início da minha vida?), Nobre Guedes, Telmo Correia e Costa Neves consideraram que o dia seguinte à eleição mais esmagadora da história do Partido Socialista era a altura ideal para desbloquear o projecto de Benavente. Faz todo o sentido, convenhamos.
Pergunta-se: terá um governo de gestão autoridade para tomar medidas de fundo, que revelem imprescindíveis interesses públicos, durante o período de transição entre elencos? Tem. Terá legitimidade? Custa-me a aceitar, mas admito que sim. Será esse o «timing» certo? Mil vezes não. Por um lado, porque é essa a fase política de "quarto escuro", onde ninugém vê nada, ninguém controla, ninguém vigia e, quando a luz se acende, alguém grita 'Fui Roubado'. Depois, porque para quem anda no terreno há anos a tentar fazer aprovar planos de ordenamento, revisões de planos de ordenamento e planos de pormenor, é especialmente frustrante ver que uma assinatura num diploma é suficiente para mandar cortar dois milhares de árvores que beneficiam do estatuto máximo de protecção em Portugal.
Admito que este processo judicial não provoque danos de maior (aliás, há meses que não se fala do processo do Freeport e muito menos da manchete do "Público" que implicava dirigentes socialistas num negócio dúbio em plena zona dunar de Vila Real de Santo António). Adivinho enormes dificuldades em fazer prova de que o salvo-conduto de Benavente foi autorizado pelos três ministérios a troco de X ou para ajudar Y. Por isso, e enquanto o parlamento se torna gradualmente a tal sucursal do grémio de que falava Eça, lá vamos, cantando e rindo. Assobiando mas com menos sombra. Vão faltando os sobreiros.
segunda-feira, maio 09, 2005
Portimão Exemplar
Toda a notícia, publicada no "Jornal de Notícias" de sábado passado, é uma surpresa.
Surpresa porque é invulgar que uma autarquia disponha de dados concretos sobre as prioridades consideradas mais importantes pelos seus munícipes; surpresa porque é fora do comum que um centro de estudos universitário (no caso, o Centro de Estudos da Universidade do Algarve, CEUA) consiga obter e disponibilizar dados actuais e relevantes num concelho de mais de 40 mil pessoas; surpresa ainda porque os munícipes de Portimão (53% dos 2.272 inquéritos validados no âmbito da investigação) desejam a construção e manutenção de mais espaços verdes.
Rebobinemos: o CEUA promoveu o inquérito "Cidadania Activa – A Minha Opinião Faz a Minha Cidade" junto da população de Portimão. Estudo pioneiro, procurava determinar as vantagens de viver no concelho de Portimão e identificar problemas e prioridades associados a esta cidade. Não tinha a carga eleitoralista dos inquéritos partidários, normalmente conduzidos para seleccionar o "tema quente" de uma campanha – aquele que mais facilmente é adaptado às necessidades dos media e condiciona os candidatos. Este inquérito visava efectivamente medir as necessidades e lacunas da cidadania portimonense.
Diligente, o JN questionou o autarca local sobre o inquérito e, aparentemente antes de lhe comunicar o resultado mais expressivo para os munícipes, pediu-lhe que identificasse que área estaria mais necessitada de intervenção na óptica dos seus eleitores. Tipicamente, o edil elegeu a área de estacionamento e trânsito.
Não está aqui em causa um desfasamento total de perspectivas entre políticas e cidadãos, até porque os problemas relacionados com acessibilidades e estacionamento até estavam na lista dos mais prioritários (34,9% das respostas). Mas é saudável verificar que, antes do trânsito, os habitantes de Portimão preferem a resolução da escassez de espaços verdes e até a valorização do património cultural, paisagístico e urbanístico. Desejarão os promotores do estudo realizar a mesma tarefa em Lisboa e no Porto? Querem ver que afinal os lisboetas e os portuenses não tinham como prioridade os túneis do Marquês e de Ceuta?
Surpresa porque é invulgar que uma autarquia disponha de dados concretos sobre as prioridades consideradas mais importantes pelos seus munícipes; surpresa porque é fora do comum que um centro de estudos universitário (no caso, o Centro de Estudos da Universidade do Algarve, CEUA) consiga obter e disponibilizar dados actuais e relevantes num concelho de mais de 40 mil pessoas; surpresa ainda porque os munícipes de Portimão (53% dos 2.272 inquéritos validados no âmbito da investigação) desejam a construção e manutenção de mais espaços verdes.
Rebobinemos: o CEUA promoveu o inquérito "Cidadania Activa – A Minha Opinião Faz a Minha Cidade" junto da população de Portimão. Estudo pioneiro, procurava determinar as vantagens de viver no concelho de Portimão e identificar problemas e prioridades associados a esta cidade. Não tinha a carga eleitoralista dos inquéritos partidários, normalmente conduzidos para seleccionar o "tema quente" de uma campanha – aquele que mais facilmente é adaptado às necessidades dos media e condiciona os candidatos. Este inquérito visava efectivamente medir as necessidades e lacunas da cidadania portimonense.
Diligente, o JN questionou o autarca local sobre o inquérito e, aparentemente antes de lhe comunicar o resultado mais expressivo para os munícipes, pediu-lhe que identificasse que área estaria mais necessitada de intervenção na óptica dos seus eleitores. Tipicamente, o edil elegeu a área de estacionamento e trânsito.
Não está aqui em causa um desfasamento total de perspectivas entre políticas e cidadãos, até porque os problemas relacionados com acessibilidades e estacionamento até estavam na lista dos mais prioritários (34,9% das respostas). Mas é saudável verificar que, antes do trânsito, os habitantes de Portimão preferem a resolução da escassez de espaços verdes e até a valorização do património cultural, paisagístico e urbanístico. Desejarão os promotores do estudo realizar a mesma tarefa em Lisboa e no Porto? Querem ver que afinal os lisboetas e os portuenses não tinham como prioridade os túneis do Marquês e de Ceuta?
Desilusão
Queixa-se a distrital de Lisboa do CDS/PP que "a máscara do advogado Sá Fernandes está finalmente a cair" e que "as acções que interpôs em tribunal tinham, afinal, motivação política".
Gostava de argumentar que a posição dos populares é falsa ou exagerada, mas, a partir do momento em que foi assumida a candidatura de Sá Fernandes à Câmara Municipal de Lisboa, apoiada/negociada com o Bloco de Esquerda, cai por terra a tese de que o advogado ambientalista nos representava a todos nas acções que coordenou. Tal como a mulher de César, não basta ser sério, é preciso parecê-lo. Aos meus olhos, toda a actividade de Sá Fernandes nos últimos dois mandatos camarários (João Soares e Santana Lopes/Carmona Rodrigues) passa a ser manchada pela suspeita. Quem nos garante que o advogado desinteressado não estava afinal a revestir o ninho ("feathering the nest", como dizem os ingleses)?
Definitivamente, há sapos que custam muito a engolir.
Gostava de argumentar que a posição dos populares é falsa ou exagerada, mas, a partir do momento em que foi assumida a candidatura de Sá Fernandes à Câmara Municipal de Lisboa, apoiada/negociada com o Bloco de Esquerda, cai por terra a tese de que o advogado ambientalista nos representava a todos nas acções que coordenou. Tal como a mulher de César, não basta ser sério, é preciso parecê-lo. Aos meus olhos, toda a actividade de Sá Fernandes nos últimos dois mandatos camarários (João Soares e Santana Lopes/Carmona Rodrigues) passa a ser manchada pela suspeita. Quem nos garante que o advogado desinteressado não estava afinal a revestir o ninho ("feathering the nest", como dizem os ingleses)?
Definitivamente, há sapos que custam muito a engolir.
sexta-feira, abril 29, 2005
Carrilho...
Ao ver Manuel Maria Carrilho compenetrado e absorvido pelo seu novo papel, marchando formoso mas não seguro, não contive uma gargalhada e lembrei-me deste velho "cartoon" do desenhador Quino.
O político jovial abraça correlegionários na rua, abraça operários, abraça camponeses, abraça universitários e, no final do dia, o mordomo queima as roupas poluídas pelo contacto humano excessivo... Que sacrifícios tem um homem de fazer para disputar um cargo político!
(gravura digitalizada de "Potentes, Prepotentes e Impotentes", Publicações Dom Quixote, Lisboa: 1990)
Clique na gravura para ver a imagem ampliada.
quarta-feira, abril 27, 2005
História Velha, História Nova
Há semanas, ouvi o jornalista Carlos Magno, ao microfone da Antena 1, evocar uma história deliciosa de propaganda, servilismo e adaptabilidade. Com a preciosa referência bibliográfica fornecida pelo comentador, dei com a citação completa que não resisto a partilhar com os leitores do Ecosfera. Com a devida vénia a Carlos Magno, pela recordação, e à "História da Propaganda", obra notável de Alejandro Pizarroso Quintero, editada pela Planeta Editora, segue a história:
Contexto: Em 1814, Napoleão Bonaparte abdicou do trono e exilou-se na ilha de Elba. O exílio durou pouco. Em Março de 1815, o ex-imperador regressou a Paris, provocando a fuga de Luís XVIII. Napoleão governou durante cem dias antes de perder a batalha de Waterloo. O seu regresso a Paris, depois do exílio, foi vivamente noticiado nas páginas do "Le Moniteur", num exercício de equilibrismo instável do jornal e dos seus repórteres. Como alguém dizia, eu não mudo de lado, os acontecimentos é que se alteram!..
Acompanhemos as manchetes:
«9 de Março: "O monstro escapou do seu lugar de desterro."
10 de Março: "O ogre corso desembarcou em Cap Jean"
11 de Março: "O tigre foi visto em Gap. Estão a avançar tropas de todos os lados para deter a sua marcha. Terminará a sua miserável aventura como um delinquente nas montanhas."
12 de Março: "O monstro avançou até Grenoble"
13 de Março: "O tirano está em Lião. Todos estão aterrorizados pelo seu aparecimento."
18 de Março: "O usurpador ousou aproximar-se até 60 horas de marcha da capital."
19 de Março: "Bonaparte avança em marcha forçada, mas é impossível que chegue a Paris."
20 de Março: "Napoleão chega amanhã às muralhas de Paris."
21 de Março: "O imperador Napoleão acha-se em Fontainebleu."
22 de Março: "Ontem à tarde, Sua Majestade fez a sua entrada pública nas Tulherias. Nada pode exceder o regozijo universal."
(in "História da Propaganda", pg. 113)
Tamanha maleabilidade. Tamanho espírito de sacrifício. Estrondosos golpes de rins. Terá esta história com quase duzentos anos alguma actualidade?
Contexto: Em 1814, Napoleão Bonaparte abdicou do trono e exilou-se na ilha de Elba. O exílio durou pouco. Em Março de 1815, o ex-imperador regressou a Paris, provocando a fuga de Luís XVIII. Napoleão governou durante cem dias antes de perder a batalha de Waterloo. O seu regresso a Paris, depois do exílio, foi vivamente noticiado nas páginas do "Le Moniteur", num exercício de equilibrismo instável do jornal e dos seus repórteres. Como alguém dizia, eu não mudo de lado, os acontecimentos é que se alteram!..
Acompanhemos as manchetes:
«9 de Março: "O monstro escapou do seu lugar de desterro."
10 de Março: "O ogre corso desembarcou em Cap Jean"
11 de Março: "O tigre foi visto em Gap. Estão a avançar tropas de todos os lados para deter a sua marcha. Terminará a sua miserável aventura como um delinquente nas montanhas."
12 de Março: "O monstro avançou até Grenoble"
13 de Março: "O tirano está em Lião. Todos estão aterrorizados pelo seu aparecimento."
18 de Março: "O usurpador ousou aproximar-se até 60 horas de marcha da capital."
19 de Março: "Bonaparte avança em marcha forçada, mas é impossível que chegue a Paris."
20 de Março: "Napoleão chega amanhã às muralhas de Paris."
21 de Março: "O imperador Napoleão acha-se em Fontainebleu."
22 de Março: "Ontem à tarde, Sua Majestade fez a sua entrada pública nas Tulherias. Nada pode exceder o regozijo universal."
(in "História da Propaganda", pg. 113)
Tamanha maleabilidade. Tamanho espírito de sacrifício. Estrondosos golpes de rins. Terá esta história com quase duzentos anos alguma actualidade?
domingo, abril 24, 2005
Cinco minutos com o ministro
Suponha que dispõe de cinco minutos a sós com o ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional (não se assuste, apesar do nome pomposo da pasta, há apenas um ministro para tutelar este mundo). Dispõe de cinco minutos sem interrupções, assessores ou perturbações provocadas pelo zumbir do telemóvel. O que perguntaria ao ministro Nunes Correia?
Admitamos como princípio que o famoso estado de graça se esgotou. Já lá vão dois meses (desde quarta-feira passada) sobre o dia das eleições e assume-se que o titular da pasta já começou a “dominar os dossiers”, eufemismo moderno utilizado normalmente para simbolizar o tempo que um político, que pouco ou nada dominava sobre a área que vai tutelar, precisa para poder proferir duas frases coerentes sobre ela. Ora, continuando na mesma linha de raciocínio, que perguntas desejaria fazer ao ministro? Por outras palavras, quais são as questões de fundo para o Ambiente nesta legislatura? Naturalmente, cada leitor terá questionários orientados para diferentes temas. Da minha parte, estas seriam as cinco perguntas fundamentais:
1) A Directiva-Quadro da Água ainda não foi transposta para a legislação nacional e leva já ano e meio de atraso em relação ao prazo comunitário. O Plano Nacional de Água entretanto aprovado pouco mais é do que um maço de folhas bem intencionadas. Faz parte das prioridades do senhor ministro acelerar o processo ou o assunto não estará ainda resolvido no final da legislatura?
2) A publicação dos planos de ordenamento de algumas áreas protegidas foram encarados pelos os dois anteriores elencos da mesma forma que eu encaro a arrumação das minhas pastas e arquivos em casa: adiados para data mais oportuna. A publicação destes fundamentais instrumentos de gestão (e protecção) das áeas protegidas está para breve ou devemos aguardar mais dois anos de consultas públicas, sessões de esclarecimento e emendas aos planos originais?
3) O ministro anterior dedicou particular atenção ao incumprimento português das metas de emissões gasosas estipuladas pelo Protocolo de Quioto. Terá o senhor ministro vontade de continuar e acelerar o trabalho? Haverá alguma alma caridosa dentro do ministério que possa explicar agora aos portugueses quanto se pagará por cada ano de incumprimento?
4) Olhamos para Espanha e vemos um programa fundamentado de apoio à investigação, produção e consumo de energias renováveis. Em Portugal, energias renováveis têm sido sinónimo de construção de barragens hidro-eléctricas. Quererá o ministro explicar à nação que importância confere à utilização de energias renováveis, que sectores incentivará e, já agora, o que pensa sobre o curioso «lobby» do nuclear que, de quando em vez, se junta em almoços-convívio e ameaça pelos jornais avançar, e em força, pelo ministério que vossa excelência tutela?
5) Acredito, sem ironia, que o Verão quente que se aproxima provocará uma nova época terrível de incêndios florestais, dos quais o seu executivo não pode ser culpabilizado. Admiro inclusivamente o inquérito ao edificado ardido que o ministério, já sob sua administração, decidiu promover. Mas que medidas concretas de combate aos incêndios e de coordenação entre forças de bombeiros no terreno estão preparadas? Quero acreditar que o plano nacional de combate aos incêndios florestais não se limita a encomendar duas missas ao espírito santo, na esperança de que chova em Julho e Agosto…
Com a resposta a estas perguntas, dar-me-ia por satisfeito. Abro aliás o fórum aos leitores do Ecosfera: que outras perguntas poderiam ser colocadas a Nunes Correia em cinco minutos de conversa?
Admitamos como princípio que o famoso estado de graça se esgotou. Já lá vão dois meses (desde quarta-feira passada) sobre o dia das eleições e assume-se que o titular da pasta já começou a “dominar os dossiers”, eufemismo moderno utilizado normalmente para simbolizar o tempo que um político, que pouco ou nada dominava sobre a área que vai tutelar, precisa para poder proferir duas frases coerentes sobre ela. Ora, continuando na mesma linha de raciocínio, que perguntas desejaria fazer ao ministro? Por outras palavras, quais são as questões de fundo para o Ambiente nesta legislatura? Naturalmente, cada leitor terá questionários orientados para diferentes temas. Da minha parte, estas seriam as cinco perguntas fundamentais:
1) A Directiva-Quadro da Água ainda não foi transposta para a legislação nacional e leva já ano e meio de atraso em relação ao prazo comunitário. O Plano Nacional de Água entretanto aprovado pouco mais é do que um maço de folhas bem intencionadas. Faz parte das prioridades do senhor ministro acelerar o processo ou o assunto não estará ainda resolvido no final da legislatura?
2) A publicação dos planos de ordenamento de algumas áreas protegidas foram encarados pelos os dois anteriores elencos da mesma forma que eu encaro a arrumação das minhas pastas e arquivos em casa: adiados para data mais oportuna. A publicação destes fundamentais instrumentos de gestão (e protecção) das áeas protegidas está para breve ou devemos aguardar mais dois anos de consultas públicas, sessões de esclarecimento e emendas aos planos originais?
3) O ministro anterior dedicou particular atenção ao incumprimento português das metas de emissões gasosas estipuladas pelo Protocolo de Quioto. Terá o senhor ministro vontade de continuar e acelerar o trabalho? Haverá alguma alma caridosa dentro do ministério que possa explicar agora aos portugueses quanto se pagará por cada ano de incumprimento?
4) Olhamos para Espanha e vemos um programa fundamentado de apoio à investigação, produção e consumo de energias renováveis. Em Portugal, energias renováveis têm sido sinónimo de construção de barragens hidro-eléctricas. Quererá o ministro explicar à nação que importância confere à utilização de energias renováveis, que sectores incentivará e, já agora, o que pensa sobre o curioso «lobby» do nuclear que, de quando em vez, se junta em almoços-convívio e ameaça pelos jornais avançar, e em força, pelo ministério que vossa excelência tutela?
5) Acredito, sem ironia, que o Verão quente que se aproxima provocará uma nova época terrível de incêndios florestais, dos quais o seu executivo não pode ser culpabilizado. Admiro inclusivamente o inquérito ao edificado ardido que o ministério, já sob sua administração, decidiu promover. Mas que medidas concretas de combate aos incêndios e de coordenação entre forças de bombeiros no terreno estão preparadas? Quero acreditar que o plano nacional de combate aos incêndios florestais não se limita a encomendar duas missas ao espírito santo, na esperança de que chova em Julho e Agosto…
Com a resposta a estas perguntas, dar-me-ia por satisfeito. Abro aliás o fórum aos leitores do Ecosfera: que outras perguntas poderiam ser colocadas a Nunes Correia em cinco minutos de conversa?
Hilariante
quarta-feira, abril 13, 2005
Sinónimos de energia
Na edição de 12 de Abril, o "Jornal de Notícias" (JN) publicou um inquérito a quatro transeuntes sobre eficiência energética. É um expediente normal, usado e abusado pelos jornais para dar voz às massas. Em quatro curtas declarações, os porta-vozes escolhidos ao acaso comentam um tema actual e aparentemente expressam a diversidade do pulsar da comunidade. À excepção talvez dos inquéritos do “Público” (que me dão sempre a ideia, talvez errada, de que os transeuntes são escolhidos a dedo ), a secção de inquérito é um fórum exterior ao jornal, uma concessão da publicação à comunidade.
Este inquérito do JN pareceu-me um verdadeiro espelho da nação, da sua percepção colectiva e da sua habilidade (ou falta dela) para lidar com políticas de longo prazo. Ora atentem:
A pergunta do dia era: “A subida do preço do combustível leva-o o alterar os hábitos de utilização do carro?”
Responde o empresário: “Não. Sou obrigado a andar de carro.”
Acrescenta o segurança: “Mudei um bocadinho. Já não dou voltas tão grandes ao domingo. Mas levo o carro para o emprego porque lá tenho lugar.”
Junta a contabilista: “ Noto a diferença de preço, mas, mesmo que quisesse optar por alternativas mais baratas, não ia conseguir conciliar.”
Remata o escriturário, mais profundo e ponderado: “Não mudei porque utilizo o automóvel para levar o miúdo à escola e para deslocar-me ao emprego. Sou contra o aumento. Considero que as gasolineiras, em vez de darem pontos aos clientes, deviam baixar os preços.”
Verdadeira metáfora da nação. Das duas, uma: ou o inquérito não colheu uma amostra representativa (é bem possível), ou vamos chegar a um ponto razoável de eficiência energética lá para 2100. Quando as gasolinas já não derem pontos e as voltas ao domingo forem mais curtas!
Este inquérito do JN pareceu-me um verdadeiro espelho da nação, da sua percepção colectiva e da sua habilidade (ou falta dela) para lidar com políticas de longo prazo. Ora atentem:
A pergunta do dia era: “A subida do preço do combustível leva-o o alterar os hábitos de utilização do carro?”
Responde o empresário: “Não. Sou obrigado a andar de carro.”
Acrescenta o segurança: “Mudei um bocadinho. Já não dou voltas tão grandes ao domingo. Mas levo o carro para o emprego porque lá tenho lugar.”
Junta a contabilista: “ Noto a diferença de preço, mas, mesmo que quisesse optar por alternativas mais baratas, não ia conseguir conciliar.”
Remata o escriturário, mais profundo e ponderado: “Não mudei porque utilizo o automóvel para levar o miúdo à escola e para deslocar-me ao emprego. Sou contra o aumento. Considero que as gasolineiras, em vez de darem pontos aos clientes, deviam baixar os preços.”
Verdadeira metáfora da nação. Das duas, uma: ou o inquérito não colheu uma amostra representativa (é bem possível), ou vamos chegar a um ponto razoável de eficiência energética lá para 2100. Quando as gasolinas já não derem pontos e as voltas ao domingo forem mais curtas!
segunda-feira, abril 11, 2005
Dinossauros por extinguir
Depois de dez dias de intenso trabalho, volto ao contacto com os leitores. As minhas desculpas pela ausência de sinais de vida…
A autonomia do poder local deriva directamente do pós-revolução e ninguém duvida que foi uma conquista saudável, em nome da descentralização. Os princípios inerentes a esta modificação do sistema político, então como hoje, eram nobres: dotar as instâncias locais e regionais de poder financeiro e de responsabilização directa, aproximá-las das populações e das suas necessidades e desonerar o governo central da necessidade de resolver à distância problemas minúsculos – da rotunda no centro da vila ao saneamento do largo principal.
A prática, porém, não tem merecido tantos encómios. Em alguns pontos do país, criaram-se coutadas, terras onde impera a lei do faroeste e onde o xerife é incontestado. Não é preciso procurar muito. De A a Z, os exemplos abundam. Alguns fazem-nos rir e, no íntimo, escarnecemos dos tolinhos locais que votam sistematicamente no mesmo bigode ufano, ou na mesma careca, ou no mesmo par de óculos. Outros chocam-nos porque desrespeitam a lei e disso se ufanam em público. Outros ainda operam em municípios pequenos, que raramente encontram brechas nas secções locais dos jornais e televisões e por isso nunca chegam à arena nacional.
Há uma semana, o executivo anunciou a reciclagem do velho projecto de limite dos mandatos políticos – projecto aliás cuja paternidade até parece pertencer ao PSD. Aparentemente, os dois principais partidos estão de acordo e poder-se-á avançar para a indispensável revisão constitucional, que permita estipular um limite de 12 anos para os titulares do cargo de primeiro-ministro (três mandatos), presidente de governos regionais e, ao que se ventilou, presidentes da câmara.
Esperei, sentado e quieto, pela primeira reacção. Aos microfones da TSF, escutei o presidente da Associação Nacional de Freguesias, que até nem se opôs. Considerou a medida justa e até avançou que a mesma poderia ser pensada para abranger os titulares de pastas no executivo e mesmo os deputados. Seguiu-se o presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, Fernando Ruas. Balbuciou a frase de introdução (“até nem me oponho”), seguida do inevitável “mas”. Mas ela é desnecessária, anunciou. Em democracia, são os eleitores que devem limitar os mandatos. E se eles estão contentes com um edil há vinte anos, será justo retirar-lhes o direito democrático de serem governados pelos políticos da sua preferência?
Discordo profundamente.
Teoricamente, o serviço político em instâncias de poder local, regional ou nacional é isso mesmo: um serviço. Uma requisição temporária do indivíduo, finda a qual, cumprido o seu exercício de cidadania com nobreza e honradez, se devolve o indivíduo à procedência. Uma câmara municipal não é uma fonte de emprego, pelo menos para políticos. Não cabe ao município vestir e calçar o candidato até à velhice. O princípio de raciocínio está errado a partir do momento em que há presidentes da câmara no activo desde a década de 1970. Ou presidentes de governo regional. Ou deputados.
PS e PSD parecem estar de acordo quanto à necessidade de aplicar este novo critério já para as eleições autárquicas de Outubro. Mas esta revisão, como outras, tem curiosas nuances. Antecipo duas perguntas: num caso como o de Avelino Ferreira Torres, presidente ad eternum de Marco de Canaveses e aparente novo candidato a Amarante, como se procederá a contagem dos mandatos? Em princípio, fiel ao espírito da limitação, fulano X não pode cumprir mais de 12 anos à frente da Câmara Y. Mas se ele cumprir entretanto quatro na câmara W, já pode? O conta-quilómetros volta a zero?
E já agora, pensando em alguns especialistas de poder local e central: o tempo de serviço de um deputado da nação poderia ser acumulado com a vigência numa autarquia? E intercalado? Quem sabe se criamos uma nova roda da sorte e, daqui a uns anos, temos Alberto João Jardim em Sever do Vouga, a cumprir quatro anos de penitência, antes de iniciar nova série de mandatos no governo regional? Criávamos o princípio do governante rotativo. Era da maneira que ouvíamos Sever do Vouga queixar-se dos custos da interioridade - com algazarra e fogo de artifício.
A autonomia do poder local deriva directamente do pós-revolução e ninguém duvida que foi uma conquista saudável, em nome da descentralização. Os princípios inerentes a esta modificação do sistema político, então como hoje, eram nobres: dotar as instâncias locais e regionais de poder financeiro e de responsabilização directa, aproximá-las das populações e das suas necessidades e desonerar o governo central da necessidade de resolver à distância problemas minúsculos – da rotunda no centro da vila ao saneamento do largo principal.
A prática, porém, não tem merecido tantos encómios. Em alguns pontos do país, criaram-se coutadas, terras onde impera a lei do faroeste e onde o xerife é incontestado. Não é preciso procurar muito. De A a Z, os exemplos abundam. Alguns fazem-nos rir e, no íntimo, escarnecemos dos tolinhos locais que votam sistematicamente no mesmo bigode ufano, ou na mesma careca, ou no mesmo par de óculos. Outros chocam-nos porque desrespeitam a lei e disso se ufanam em público. Outros ainda operam em municípios pequenos, que raramente encontram brechas nas secções locais dos jornais e televisões e por isso nunca chegam à arena nacional.
Há uma semana, o executivo anunciou a reciclagem do velho projecto de limite dos mandatos políticos – projecto aliás cuja paternidade até parece pertencer ao PSD. Aparentemente, os dois principais partidos estão de acordo e poder-se-á avançar para a indispensável revisão constitucional, que permita estipular um limite de 12 anos para os titulares do cargo de primeiro-ministro (três mandatos), presidente de governos regionais e, ao que se ventilou, presidentes da câmara.
Esperei, sentado e quieto, pela primeira reacção. Aos microfones da TSF, escutei o presidente da Associação Nacional de Freguesias, que até nem se opôs. Considerou a medida justa e até avançou que a mesma poderia ser pensada para abranger os titulares de pastas no executivo e mesmo os deputados. Seguiu-se o presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, Fernando Ruas. Balbuciou a frase de introdução (“até nem me oponho”), seguida do inevitável “mas”. Mas ela é desnecessária, anunciou. Em democracia, são os eleitores que devem limitar os mandatos. E se eles estão contentes com um edil há vinte anos, será justo retirar-lhes o direito democrático de serem governados pelos políticos da sua preferência?
Discordo profundamente.
Teoricamente, o serviço político em instâncias de poder local, regional ou nacional é isso mesmo: um serviço. Uma requisição temporária do indivíduo, finda a qual, cumprido o seu exercício de cidadania com nobreza e honradez, se devolve o indivíduo à procedência. Uma câmara municipal não é uma fonte de emprego, pelo menos para políticos. Não cabe ao município vestir e calçar o candidato até à velhice. O princípio de raciocínio está errado a partir do momento em que há presidentes da câmara no activo desde a década de 1970. Ou presidentes de governo regional. Ou deputados.
PS e PSD parecem estar de acordo quanto à necessidade de aplicar este novo critério já para as eleições autárquicas de Outubro. Mas esta revisão, como outras, tem curiosas nuances. Antecipo duas perguntas: num caso como o de Avelino Ferreira Torres, presidente ad eternum de Marco de Canaveses e aparente novo candidato a Amarante, como se procederá a contagem dos mandatos? Em princípio, fiel ao espírito da limitação, fulano X não pode cumprir mais de 12 anos à frente da Câmara Y. Mas se ele cumprir entretanto quatro na câmara W, já pode? O conta-quilómetros volta a zero?
E já agora, pensando em alguns especialistas de poder local e central: o tempo de serviço de um deputado da nação poderia ser acumulado com a vigência numa autarquia? E intercalado? Quem sabe se criamos uma nova roda da sorte e, daqui a uns anos, temos Alberto João Jardim em Sever do Vouga, a cumprir quatro anos de penitência, antes de iniciar nova série de mandatos no governo regional? Criávamos o princípio do governante rotativo. Era da maneira que ouvíamos Sever do Vouga queixar-se dos custos da interioridade - com algazarra e fogo de artifício.
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