quarta-feira, dezembro 26, 2012

Documentos sobre o logro jornalístico do ano

Cartão de visita que Artur Baptista da Silva apresentava para confirmar a sua associação à ONU (Fonte: "Expresso").

Começou em Portugal, mas galgou fronteiras e alimentou notícias internacionais, levando inclusivamente gigantes jornalísticos como a "Reuters" e o "Chicago Tribune" a errar também. Refiro-me ao caso Artur Baptista da Silva.
Para memória futura, reúno aqui os principais textos e documentos audiovisuais produzidos sobre o caso do indivíduo que se fazia passar por economista da Organização das Nações Unidas e consultor do Banco Mundial. Passo a passo, Baptista da Silva enganou a generalidade dos órgãos de comunicação social portugueses no último mês de 2012.
Os documentos aqui reunidos não pretendem alimentar uma caça às bruxas, mas sim congregar as fontes de informação num só local, de forma a que estudantes e docentes de jornalismo tenham acesso aos elementos que construíram o caso do "falso especialista", sobretudo quando existe o receio fundado de que os órgãos de comunicação lesados apaguem ou aparem os conteúdos originais dos seus sítios de Internet.

  • O cartaz do Grémio Literário, anunciando a conferência de Baptista da Silva no dia 4 de Dezembro de 2012, foi este [recuperado por Frederico Duarte Carvalho]:



    • No dia 30 de Novembro, o jornal "Público" cita várias declarações de Artur Baptista da Silva, identificando-o como "consultor do Banco Mundial" [infelizmente, não tenho este recorte]
    • O vídeo de 15 minutos com a aparição de Baptista da Silva no programa "Expresso da Meia Noite" de 22 de Dezembro de 2012 está disponível neste endereço.
    • Infelizmente, a longa entrevista de Baptista da Silva à TSF (disponível no site da rádio com o título "Portugal deve renegociar já parte da dívida") no dia 23 foi retirada da antena e da página de Internet nessa mesma noite, conforme reconheceu Paulo Tavares, o editor de política.
    • A intervenção mais convincente de Baptista da Silva foi publicada nas páginas do "Expresso" do dia 15 de Dezembro, através de uma entrevista que teve ecos em vários países. A digitalização dessas cinco páginas está aqui em baixo, com a colaboração da empresa de clipping Faxinforme.


    • A embaraçosa coluna de opinião de Nicolau Santos no "Expresso" de 22 de Dezembro está também aqui digitalizada: "O Que Diz Artur e o Governo Não Ouve".
     
    • O vídeo da SIC Notícias que sugeriu pela primeira vez a impostura, difundido a 23 de Dezembro, pode ser acedido neste link
    • A nota do jornalista do "Expresso" Nicolau Santos, reconhecendo o erro que cometera e historiando todo o processo que o levou a entrevistar e a publicitar as palavras de Baptista da Silva, está neste endereço. Nessa intervenção, o jornal cunhou um novo termo jornalístico, ao assumir ter "despublicado" a entrevista de Baptista do Silva do seu sítio de Internet.
    • A investigação a posteriori da RTP, também ela burlada pelas falsas credenciais do economista, resultou nesta notícia.
    • O trabalho exaustivo do "Diário de Notícias" de 24 de Dezembro, recolhendo todos os elementos suspeitos no currículo de Baptista da Silva está digitalizado em baixo.


    • A coluna de opinião do comentador Rui Tavares no "Público" de 24 de Dezembro é igualmente pertinente como proposta de explicação para a ausência de critérios de validação da informação nas redacções.


    • Depois da pausa natalícia, a imprensa portuguesa redobrou esforços para compensar o brio perdido. No dia 26 de Dezembro, o Jornal I descobriu que a Associação Abril desconfiara em Outubro do falso currículo de Baptista da Silva e cancelara uma conferência na qual ele deveria ter sido orador principal. Por outras palavras, uma ONG tivera mais capacidade de verificação das fontes do que os media tradicionais.




    • No mesmo dia 26, Alfredo Leite, no "Jornal de Notícias", usou a sua coluna de opinião para sair em defesa das redacções e dos jornalistas (aqui). Ali escreveu: "A tese vigarista vingou porque uma parte da sociedade portuguesa pensa como ele e acredita nela. Havia, portanto, terreno fértil para a propagação da teoria. E ela espalhou-se não por ter sido turbinada através da prosa de inexperientes estagiários ou jornalistas (mal) pagos à peça, mas por experientes membros de direções, editores ou jornalistas seniores."
    • O dia 27 foi igualmente pródigo em revelações e comentários. No "Público", Pedro Lomba perguntou: "É verdadeiramente absurdo que SIC, TSF e Expresso pensem em processar Artur Baptista da Silva. Se o fizerem, não deveremos nós processar também a SIC, a TSF e o Expresso?"


    • O jornal I, ainda no dia 27, deu voz à associação VIVA, organização não governamental sem grandes recursos, mas que, no Verão de 2012, fora capaz de escrutinar as referências curriculares de Baptista da Silva, detectando as fraudes. A VIVA avisou o International Club of Portugal de que a conferência que este agendava com Baptista da Silva baseava-se nos méritos inexistentes do orador. Mesmo assim, o Clube ignorou o aviso e organizou a conferência (aqui).
    • Um dia depois, a 28, o jornal I voltou à carga, noticiando que Baptista da Silva já apresentara credenciais falsas em 2005 numa candidatura à OIKOS. Aprovado no recrutamento como o melhor entre os candidatos, viria a ser contratado com base no seu "prestigiado" currículo (aqui).
    • Por fim, embora muito tenha sido publicado sobre a fraude jornalística entre o final de 2012 e a primeira semana de 2013, vale a pena contar uma última peripécia. No dia 28 de Dezembro, o blogue O Sexo e a Cidade relatou que o "Notícias Magazine", revista dominical do "Diário de Notícias" e do "Jornal de Notícia", fora igualmente enganado na voragem do falso especialista. No seu texto, Fernando Brito Moura revelou – com impressionantes pormenores internos que muito irritaram o grupo ControlInveste – que a revista antecipara a produção do número de 30 de Dezembro para os dias 23 e 24, de forma a garantir a execução atempada na semana do Natal. Nessa edição, dispunha de cinco páginas atribuídas a uma entrevista com Artur Baptista da Silva, na secção "Vida Inteligente". O blogue referia ainda que, alertados pela desmontagem pública do caso no dia 23, os responsáveis da revista apressaram-se a encontrar um novo interlocutor, que pudesse ser entrevistado no dia 24 para a edição em causa. Assim nasceu a entrevista com José Manuel Diogo, efectivamente publicada. Sem querer deitar mais achas para a fogueira, refira-se que o "blogger" acertou em praticamente tudo o que escreveu e que a entrevista a Artur Baptista da Silva, inicialmente prevista para cinco páginas, acabou por ser maquetada a quatro páginas, sob o título "Portugal na Mira das Nações Unidas" e assinatura de Célia Rosa.
    • Nela, acrescentavam-se mais pormenores inéditos ao currículo de Artur Baptista da Silva, "professor na Universidade de Wisconsin" e funcionário da ONU com passagens por "Bangladesh, Zâmbia, Cabo Verde e Paquistão". Teve sorte o NM: apagou o conteúdo e não saiu envergonhado. Ou, visto por outro prisma, teve durante algumas horas a entrevista que todos gostariam de ter lido e escolheu apagá-la.

    sábado, dezembro 15, 2012

    O participante justo

    Frontline, "The Suicide Plan", 2012, © PBS

    (INFELIZMENTE, POR QUEIXA RELACIONADA COM DIREITOS DE AUTOR, ESTE VÍDEO TEVE DE SER REMOVIDO DO YOUTUBE. LAMENTO.)

    Desafio-o a reservar uma hora para ver este documentário do Frontline dedicado ao debate sobre o suicídio assistido (como de costume, as legendas são da minha autoria, pelo que peço antecipadamente desculpa pelos erros de sintonia entre texto e imagem). Não é uma abordagem jornalística tradicional, no sentido em que não assume que estamos na fase de discussão pública entre a aceitação da prática e a sua recusa absoluta.
    O documentário parte da premissa de que essa fase já passou. Assume que, para muitos cidadãos americanos (e portugueses?), não é viável esperar pela clarificação absoluta da lei, pelo que o ponto de partida do documentário é expresso noutro enunciado, a saber: que grau de autonomia de decisão deve a lei assegurar ao cidadão consciente que quer terminar a sua vida nos seus próprios termos?
    O debate ético, filosófico, moral e religioso interessa-me menos do que a discussão jornalística e aqui há elementos para um debate aprofundado sobre a adequabilidade das normas de objectividade à prática jornalística moderna, sobretudo nestes temas de fronteira nos quais se discute o direito à vida, o exercício da medicina e os direitos civis de cada indivíduo.
    Os autores do documentário superam o tradicional impasse provocado pela aplicação das normas de objectividade ao desempenho jornalístico. Num guião tradicional, esperar-se-ia que os repórteres escutassem igual número de defensores e críticos do suicídio assistido (que, a propósito, não é eutanásia, no sentido em que em nenhum momento o doente transfere a responsabilidade do acto para outro – aqui, é sempre o doente que executa o acto, ou actos, que levam à sua morte), sem penderem para nenhum dos lados da contenda.
    A equipa do Frontline parece ter superado a questão, despindo a pele do observador não participante que a ideologia da profissão nos sugere/impõe, por troca com as roupas mais confortáveis, mas mais perigosas, do participante justo, que avalia os argumentos da contenda, que os pesa, que os expressa na reportagem, mas que não tem receio de atribuir mais proeminência a determinados pressupostos.
    Note-se, paradoxalmente, que, ao longo da reportagem, não se adivinha a opinião do(s) jornalista(s). Ali, não se advoga a militância por uma causa, mesclando informação e opinião, como tantas vezes se vê. Chegamos ao fim do documentário sem ter ouvido do repórter um adjectivo, à excepção talvez do rótulo "radical" aplicado ao grupo Final Exit.
    Em contrapartida, ao longo dos sucessivos testemunhos de médicos, familiares, doentes, representantes do sistema legal e agentes da ordem, o debate vai sendo recentrado naquilo que se torna a nova questão de fundo: Onde pode ser colocada a fronteira entre o desejo do invidíduo de colocar fim à sua vida nos seus próprios termos e a responsabilidade estatal de garantir que a sociedade se mantém humana e responsável, sem banalizar o direito da vida?
    É admissível aceitar, como nos estados de Washington e Oregon, que o suicídio assistido seja autorizado a doentes em fase terminal?
    Deve o privilégio ser alargado a doentes sujeitos a dor crónica, sejam eles, ou não, portadores de doença terminal?
    Ou, em alternativa, pode qualquer indivíduo lúcido e consciente dos seus actos decidir que chegou a sua hora, independentemente do quadro clínico que possa registar?
    O debate está em aberto e aberto ficará. Mas parece-me que estas reportagens abrem uma alameda de possibilidades metodológicas ao jornalista, que exigem um debate rigoroso no seio da profissão, até porque a fronteira entre o "participante justo" e o "activista mobilizado" é igualmente ténue.