domingo, julho 18, 2021

Quem, afinal, descobriu a Madona de Álvaro Pires?


 

         Pode um mistério estar à vista de todos durante quatrocentos anos e não ser descodificado?        

         Atente-se na história desta Madona com o Menino e Anjos Músicos (1415). No início do século XIX, pouco se sabia em Portugal sobre o pintor Álvaro Pires, de Évora. Giorgio Vassari, na sua memória do pintor renascentista Taddeo Bartoli, mencionara-o vagamente, como Alvaro Piero di Portogallo. José da Cunha Taborda, em Regras da Arte da Pintura, fazia-lhe alusão em 1815, repetindo a informação do historiador quinhentista. Em 1846, G. Milanesi acrescentara um dado importante, confessando ter visto um quadro assinado pelo pintor numa igreja dos arredores de Pisa. E pouco mais.      

        Em 1922, o médico Reinaldo dos Santos visitou Itália. Ia em missão a um congresso médico em Génova, mas, apaixonado por história de arte e amigo de José de Figueiredo, director e fundador do Museu Nacional de Arte Antiga, adicionou um itinerário invulgar ao périplo. Visava sobretudo uma igreja remota, a Igreja de Santa Croce de Fossabanda. Dando «um pequeno repouso às minhas preocupações profissionais», decidiu investigar. Pisa, porém, mudara muito. De igreja em igreja, Reinaldo acabou por terminar a busca num templo meio arruinado, ladeado pela cerca de um convento.      

        «Na galilé, toda especada em esporas, floriam sobre os fustes desaprumados alguns capitéis de velha arte pisana. A sua antiguidade pareceu-me de bom augúrio», escreveu numa crónica para o Diário de Lisboa no dia 10 de Julho de 1922. «Entretanto, um franciscano abriu o portal e logo, ao ouvir declinar a minha nacionalidade e o interesse em visitar a igreja, perguntou-me, sorrindo: “Vem então para ver o Álvaro?” Alguns minutos depois, toda a incerteza estava maravilhosamente dissipada. Não era o deslumbramento de me encontrar diante de uma das mais encantadoras madonas que a arte do quattrocento deixara no vale do Arno. Era, sobretudo, a emoção de ver – distintamente escrita em português – a assinatura do artista, cujas letras brilhavam diante dos meus olhos comovidos: “Álvaro Pires d’Evora Pintou”.»      

        O artigo de Reinaldo dos Santos no Diário de Lisboa (que precedeu a publicação de um opúsculo sobre o caso) motivou uma réplica de Carlos Lobo, outro erudito amador, que garantia ter visto o mesmo quadro «num dia de Inverno de 1912» enquanto andava «solitário, percorrendo a grande nave da Igreja de San Francesco, em busca do panteão da família Della Gherardesca a que pertencia o famoso conde Ugolino». Ali encontrara um frade que, vendo-o interessado, lhe perguntou se não quereria ver o «quadro de um espanhol» numa igreja próxima. A obra estava então escondida «por detrás de uma cortina de chita encarnada. O frade puxou um cordelinho e o quadro apareceu!»      

         Lobo teve a mesma epifania de Reinaldo dez anos depois, ao contemplar a assinatura de Álvaro Pires. De regresso a Lisboa, escreveu a José de Figueiredo e deu-lhe conta do achado. O director do MNA escreveu um artigo em O Século, de 5 de Março de 1913, contando a descoberta singular.      

        Três dias depois do artigo de Carlos Lobo, no dia 15 de Julho de 1922, Reinaldo encerrou a polémica: «Nada mais fútil nas questões históricas do que uma discussão de prioridades», começou. «Nem eu, ao procurar intencionalmente em Santa Croce, a Madona de Álvaro, nem V. Ex.ª ao tê-la encontrado inesperadamente em Pisa, a descobrimos senão para nós. Para a história da arte, foi Milanesi quem, no meado do século passado, a descobriu.»     

        Reinaldo teria mais concorrência nesse mesmo ano, pois também Vergílio Correia, o historiador de Coimbra, publicou um opúsculo com informação biográfica inédita sobre o pintor alentejano. Quem, afinal, descobriu para os portugueses a Madona de Álvaro Pires? Carlos Lobo? José de Figueiredo? Reinaldo dos Santos? Vergílio Correia?      

         Na verdade, não parece ter sido nenhum deles e a resposta não é particularmente gloriosa. Joaquim Vasconcelos, o historiador de arte do Porto, publicou, em 1896, um volume monumental sobre o grande Francisco de Holanda e, nele, en passant, contava a história da Madona de Pisa. Estava tão obcecado por Francisco de Holanda e Albrecht Dürer que não valorizou excessivamente que tinha em mãos o primeiro pintor português de Quatrocentos.



segunda-feira, julho 05, 2021

Ah! Isso é a vida!

 



        Já aqui contei que colecciono avidamente os livros de ficção portuguesa que colocam jornais e jornalistas no centro da acção. A lista vai crescendo com vagar, embora a amostra não seja extensa. Junto-lhe hoje mais um – Torel-Norte, 5853, de Artur Inês (publicado em 1934 pela Guimarães Editora). 
    Trata-se do único volume de ficção publicado pelo antigo subchefe da redacção da República e percebe-se porquê. Torel-Norte, 5853 é um livro ingénuo. A acção decorre entre o Bairro Alto dos jornais e a Estrada de Loures, «passada a Porta de Carriche» e, portanto, já fora da grande cidade. As acções precipitam-se sem que o leitor possa assimilar cada personagem. Começamos a compreender o escritor Mariano de Paiva e Inês mata-o com um tiro «que parte das trevas». Assimilamos a personagem do capitão-aviador Óscar de Mendonça e Inês mata-o num acidente de aviação. Apresenta-nos Arnaldo Cruz, o homem-criado dos ingleses do Estoril que parece ter alguma influência na narrativa, mas afoga-o de seguida. As personagens de Artur Inês duram menos do que as seis mulheres de Henrique VIII. 
        Artur Inês não era um esteta: a linguagem de Torel-Norte, 5853 é rude e as personagens de uma simplicidade pueril. O próprio título, aparentemente enigmático, não é mais do que a extensão telefónica da esquadra de polícia. Dir-se-ia que o próprio autor se enfastia do enredo. Há, claro, um génio na narrativa – o jornalista (é um must do estilo). Rui Galvão, redactor político, ligeiramente enjoado e empertigado, descobre tudo sem ajuda. Manda os agentes de polícia executarem detenções e ainda vai a tempo de assistir à sessão da noite «de um grande filme americano no São Luiz». Seduz mulheres e desarma fontes só com perguntas penetrantes. Não dá qualquer explicação sobre as pistas que o conduzem ao desfecho. As mulheres, essas, são sedutoras até desatarem em pranto, com «os olhos sufocados de lágrimas». Desmoronam-se ao primeiro grito, as pobres. 
        Como é natural, não é minha intenção destruir um livro publicado há 86 anos e ao qual o Diário de Lisboa recusou a recensão, limitando-se a um eco de seis curtas linhas – talvez tenha sido a justa paga de Joaquim Manso pela caracterização que Inês fez do Ecos de Lisboa no seu romance e de um certo «Oliveira e Silva», director de O Sul, que escreve sempre o mesmo artigo. 
        Interessam-me nestas obras as marcas do ofício e as personagens encriptadas. No Ecos de Lisboa, rival de O Sul dos nossos protagonistas, trabalha Adelino Mendia, «um renegado, com algum talento e muitas ambições, que escrevia com a ponta de uma navalha, a coberto de uma impunidade infame». Não é preciso muito para deduzir que é Adelino Mendes, o redactor de O Século que ali figura – o homem que criava ou destroçava reputações à medida dos desejos do patrão. 
        O jornal O Sul é uma réplica dos jornais possíveis da década de 1930, com um fundo editorial que ninguém lê, um cronista político que encadeia factos e discursos em previsões da semana que nunca se confirmam e amplo espaço consagrado ao noticiário criminal. Num desabafo, o herói Rui Galvão dirá: «Aí está um género de jornalismo que não me interessa, mas que interessa o grande burro que é o público… e a grande burra do patrão.» 
        Os repórteres rivais cooperam, zombando dos polícias. Quando não podem acorrer a um serviço, pedem um caldo a um camarada, que lhes levará ao final da noite os pormenores essenciais da notícia. E os textos de última hora são enviados para a tipografia sem revisão. Pressupõe-se que um jornalista tarimbado consegue encadear a sua notícia sem precisar de a reler. Por isso, Gervásio (que recebe de Rui Galvão a prenda do exclusivo, pois o herói tem repugnância desses pequenos triunfos), «à medida que ia escrevendo os linguados, ia-os mandando para a tipografia pelo velho Militão». Quando acabou, «foi ele próprio levar o último quarto de papel ao tipógrafo de piquete». 
        Terminada a faina da impressão do jornal do dia (e Artur Inês conhecia-a na perfeição pois começara a carreira como tipógrafo antes de enveredar pelo jornalismo desportivo e, mais tarde, pelos jornais da oposição depois de assinar o muito controverso opúsculo Ouça, António Ferro!), lança-se «serradura humedecida no chão da tipografia», como nas tabernas, varrendo-se em seguida a mistura para que no dia seguinte o espaço seja de novo transitável. 
        Há uma última nota que merece ser feita a propósito de Torel-Norte, 5853: a naturalidade da violação. Na manhã em que tudo se revela, há apenas duas pessoas na sede do jornal O Sul: o velho contínuo Militão e a pequena Josefina, «mocetona de Silves». Em menos tempo do que demora a pronunciar a palavra «violador», já Militão, «doido e feroz», está a abusar da rapariga. Tudo na cena é atroz. A brutalidade. A inutilidade para o enredo. A circunstância de ser a violada a dizer: «Vocemecê está doido, tio Militão. Isto nem sei o que foi… mas acabou. A gente tem de esquecer isto…» Ou a cereja em cima do bolo: o herói Rui Galvão, que chega ao local de trabalho, percebe logo o que se passou e sorri com indulgência, ignorando um queixume da rapariga com a sentença: «Ah! Isso é a vida!» 
        Há livros que envelhecem bem e outros nem por isso. Apesar da belíssima ilustração de Roberto Nobre na capa, Torel-Norte, 5853 apodreceu.