Já aqui contei que colecciono avidamente os livros de ficção portuguesa que colocam jornais e jornalistas no centro da acção. A lista vai crescendo com vagar, embora a amostra não seja extensa. Junto-lhe hoje mais um – Torel-Norte, 5853, de Artur Inês (publicado em 1934 pela Guimarães Editora).
Trata-se do único volume de ficção publicado pelo antigo subchefe da redacção da República e percebe-se porquê. Torel-Norte, 5853 é um livro ingénuo. A acção decorre entre o Bairro Alto dos jornais e a Estrada de Loures, «passada a Porta de Carriche» e, portanto, já fora da grande cidade. As acções precipitam-se sem que o leitor possa assimilar cada personagem. Começamos a compreender o escritor Mariano de Paiva e Inês mata-o com um tiro «que parte das trevas». Assimilamos a personagem do capitão-aviador Óscar de Mendonça e Inês mata-o num acidente de aviação. Apresenta-nos Arnaldo Cruz, o homem-criado dos ingleses do Estoril que parece ter alguma influência na narrativa, mas afoga-o de seguida. As personagens de Artur Inês duram menos do que as seis mulheres de Henrique VIII.
Artur Inês não era um esteta: a linguagem de Torel-Norte, 5853 é rude e as personagens de uma simplicidade pueril. O próprio título, aparentemente enigmático, não é mais do que a extensão telefónica da esquadra de polícia. Dir-se-ia que o próprio autor se enfastia do enredo. Há, claro, um génio na narrativa – o jornalista (é um must do estilo). Rui Galvão, redactor político, ligeiramente enjoado e empertigado, descobre tudo sem ajuda. Manda os agentes de polícia executarem detenções e ainda vai a tempo de assistir à sessão da noite «de um grande filme americano no São Luiz». Seduz mulheres e desarma fontes só com perguntas penetrantes. Não dá qualquer explicação sobre as pistas que o conduzem ao desfecho. As mulheres, essas, são sedutoras até desatarem em pranto, com «os olhos sufocados de lágrimas». Desmoronam-se ao primeiro grito, as pobres.
Como é natural, não é minha intenção destruir um livro publicado há 86 anos e ao qual o Diário de Lisboa recusou a recensão, limitando-se a um eco de seis curtas linhas – talvez tenha sido a justa paga de Joaquim Manso pela caracterização que Inês fez do Ecos de Lisboa no seu romance e de um certo «Oliveira e Silva», director de O Sul, que escreve sempre o mesmo artigo.
Interessam-me nestas obras as marcas do ofício e as personagens encriptadas. No Ecos de Lisboa, rival de O Sul dos nossos protagonistas, trabalha Adelino Mendia, «um renegado, com algum talento e muitas ambições, que escrevia com a ponta de uma navalha, a coberto de uma impunidade infame». Não é preciso muito para deduzir que é Adelino Mendes, o redactor de O Século que ali figura – o homem que criava ou destroçava reputações à medida dos desejos do patrão.
O jornal O Sul é uma réplica dos jornais possíveis da década de 1930, com um fundo editorial que ninguém lê, um cronista político que encadeia factos e discursos em previsões da semana que nunca se confirmam e amplo espaço consagrado ao noticiário criminal. Num desabafo, o herói Rui Galvão dirá: «Aí está um género de jornalismo que não me interessa, mas que interessa o grande burro que é o público… e a grande burra do patrão.»
Os repórteres rivais cooperam, zombando dos polícias. Quando não podem acorrer a um serviço, pedem um caldo a um camarada, que lhes levará ao final da noite os pormenores essenciais da notícia. E os textos de última hora são enviados para a tipografia sem revisão. Pressupõe-se que um jornalista tarimbado consegue encadear a sua notícia sem precisar de a reler. Por isso, Gervásio (que recebe de Rui Galvão a prenda do exclusivo, pois o herói tem repugnância desses pequenos triunfos), «à medida que ia escrevendo os linguados, ia-os mandando para a tipografia pelo velho Militão». Quando acabou, «foi ele próprio levar o último quarto de papel ao tipógrafo de piquete».
Terminada a faina da impressão do jornal do dia (e Artur Inês conhecia-a na perfeição pois começara a carreira como tipógrafo antes de enveredar pelo jornalismo desportivo e, mais tarde, pelos jornais da oposição depois de assinar o muito controverso opúsculo Ouça, António Ferro!), lança-se «serradura humedecida no chão da tipografia», como nas tabernas, varrendo-se em seguida a mistura para que no dia seguinte o espaço seja de novo transitável.
Há uma última nota que merece ser feita a propósito de Torel-Norte, 5853: a naturalidade da violação. Na manhã em que tudo se revela, há apenas duas pessoas na sede do jornal O Sul: o velho contínuo Militão e a pequena Josefina, «mocetona de Silves». Em menos tempo do que demora a pronunciar a palavra «violador», já Militão, «doido e feroz», está a abusar da rapariga. Tudo na cena é atroz. A brutalidade. A inutilidade para o enredo. A circunstância de ser a violada a dizer: «Vocemecê está doido, tio Militão. Isto nem sei o que foi… mas acabou. A gente tem de esquecer isto…» Ou a cereja em cima do bolo: o herói Rui Galvão, que chega ao local de trabalho, percebe logo o que se passou e sorri com indulgência, ignorando um queixume da rapariga com a sentença: «Ah! Isso é a vida!»
Há livros que envelhecem bem e outros nem por isso. Apesar da belíssima ilustração de Roberto Nobre na capa, Torel-Norte, 5853 apodreceu.
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