Pode um mistério estar à vista de todos durante quatrocentos anos e não ser descodificado?
Atente-se na história desta Madona com o Menino e Anjos Músicos (1415). No início do século XIX, pouco se sabia em Portugal sobre o pintor Álvaro Pires, de Évora. Giorgio Vassari, na sua memória do pintor renascentista Taddeo Bartoli, mencionara-o vagamente, como Alvaro Piero di Portogallo. José da Cunha Taborda, em Regras da Arte da Pintura, fazia-lhe alusão em 1815, repetindo a informação do historiador quinhentista. Em 1846, G. Milanesi acrescentara um dado importante, confessando ter visto um quadro assinado pelo pintor numa igreja dos arredores de Pisa. E pouco mais.
Em 1922, o médico Reinaldo dos Santos visitou Itália. Ia em missão a um congresso médico em Génova, mas, apaixonado por história de arte e amigo de José de Figueiredo, director e fundador do Museu Nacional de Arte Antiga, adicionou um itinerário invulgar ao périplo. Visava sobretudo uma igreja remota, a Igreja de Santa Croce de Fossabanda. Dando «um pequeno repouso às minhas preocupações profissionais», decidiu investigar. Pisa, porém, mudara muito. De igreja em igreja, Reinaldo acabou por terminar a busca num templo meio arruinado, ladeado pela cerca de um convento.
«Na galilé, toda especada em esporas, floriam sobre os fustes desaprumados alguns capitéis de velha arte pisana. A sua antiguidade pareceu-me de bom augúrio», escreveu numa crónica para o Diário de Lisboa no dia 10 de Julho de 1922. «Entretanto, um franciscano abriu o portal e logo, ao ouvir declinar a minha nacionalidade e o interesse em visitar a igreja, perguntou-me, sorrindo: “Vem então para ver o Álvaro?” Alguns minutos depois, toda a incerteza estava maravilhosamente dissipada. Não era o deslumbramento de me encontrar diante de uma das mais encantadoras madonas que a arte do quattrocento deixara no vale do Arno. Era, sobretudo, a emoção de ver – distintamente escrita em português – a assinatura do artista, cujas letras brilhavam diante dos meus olhos comovidos: “Álvaro Pires d’Evora Pintou”.»
O artigo de Reinaldo dos Santos no Diário de Lisboa (que precedeu a publicação de um opúsculo sobre o caso) motivou uma réplica de Carlos Lobo, outro erudito amador, que garantia ter visto o mesmo quadro «num dia de Inverno de 1912» enquanto andava «solitário, percorrendo a grande nave da Igreja de San Francesco, em busca do panteão da família Della Gherardesca a que pertencia o famoso conde Ugolino». Ali encontrara um frade que, vendo-o interessado, lhe perguntou se não quereria ver o «quadro de um espanhol» numa igreja próxima. A obra estava então escondida «por detrás de uma cortina de chita encarnada. O frade puxou um cordelinho e o quadro apareceu!»
Lobo teve a mesma epifania de Reinaldo dez anos depois, ao contemplar a assinatura de Álvaro Pires. De regresso a Lisboa, escreveu a José de Figueiredo e deu-lhe conta do achado. O director do MNA escreveu um artigo em O Século, de 5 de Março de 1913, contando a descoberta singular.
Três dias depois do artigo de Carlos Lobo, no dia 15 de Julho de 1922, Reinaldo encerrou a polémica: «Nada mais fútil nas questões históricas do que uma discussão de prioridades», começou. «Nem eu, ao procurar intencionalmente em Santa Croce, a Madona de Álvaro, nem V. Ex.ª ao tê-la encontrado inesperadamente em Pisa, a descobrimos senão para nós. Para a história da arte, foi Milanesi quem, no meado do século passado, a descobriu.»
Reinaldo teria mais concorrência nesse mesmo ano, pois também Vergílio Correia, o historiador de Coimbra, publicou um opúsculo com informação biográfica inédita sobre o pintor alentejano. Quem, afinal, descobriu para os portugueses a Madona de Álvaro Pires? Carlos Lobo? José de Figueiredo? Reinaldo dos Santos? Vergílio Correia?
Na verdade, não parece ter sido nenhum deles e a resposta não é particularmente gloriosa. Joaquim Vasconcelos, o historiador de arte do Porto, publicou, em 1896, um volume monumental sobre o grande Francisco de Holanda e, nele, en passant, contava a história da Madona de Pisa. Estava tão obcecado por Francisco de Holanda e Albrecht Dürer que não valorizou excessivamente que tinha em mãos o primeiro pintor português de Quatrocentos.
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