Há cerca de três anos, momentos antes de
começar uma entrevista, foi-me mostrada uma cabeça. Melhor: a cabeça. A cabeça de Diogo Alves, o infame assassino em série
que atormentou a cidade de Lisboa no segundo quartel do século XIX. Divertido
com a minha incredulidade, o interlocutor de ocasião contou-me mais pormenores.
Falou-me da frenologia, ciência ou pseudo-ciência com pretensões behavioristas,
que partia do princípio de que a análise morfológica da cabeça de um
ser humano talvez fornecesse pistas para o seu comportamento desviante. Em
nome desta prática, serraram-se cabeças de criminosos executados. Fizeram-se
medições. Publicaram-se estudos académicos. Houve correspondência acesa entre
cirurgiões portugueses e austríacos sobre as “descobertas”. Os phrenologistas permaneceram activos em Portugal até à viragem do
século.
Meses mais tarde, ainda com a imagem de
Diogo Alves conservado em formol bem presente na minha mente, fiz uma viagem de
carro com dois ilustradores de quem muito gosto. Um, ao volante, cumpria
escrupulosamente o código da estrada, motivo pelo qual demoramos sempre quatro
horas para chegar ao Porto [não avanço o seu nome para evitar represálias…]; o
outro era o Miguel Alves.
Calhou em conversa contar-lhe a observação
que fizera e de como começara a pesquisar o universo esquecido da frenologia. O
Miguel foi fazendo perguntas. Estava precisamente à procura de um tema para
explorar numa banda desenhada ainda em embrião. Queria trabalhar um tema
histórico, mas, herdeiro da tradição de Frank Miller, queria algo mais escuro.
Mais negro. Mais perturbador.
Dessa conversa, nasceu um guião que fiz
com todo o gosto e com a ingenuidade própria de quem trabalha em banda
desenhada pela primeira vez (segunda, se contarmos com a saga Trondheim, cujo
humilhante epílogo levarei para a cova). Desse barro, o Miguel construiu uma
dissertação de mestrado muitíssimo bem argumentada. Tomou opções. Construiu
todo um edifício narrativo, com opções maduras, próprias de quem sabe o que
quer. Contou a história de Diogo Alves como ela nunca foi contada – ajudado
pela orientação sábia do João Paulo Cotrim, um homem que parece conhecer o
segredo para esticar as 24 horas do dia para lá dos limites da física
heisenberguiana.
© Miguel Alves, 2015 |
Não tenham ilusões. No nosso projecto
conjunto, o Miguel foi o carregador de piano e arcou com 95% da transpiração.
Cabe-lhe todo o mérito.
Na passada sexta-feira, no pólo de
Guimarães da Escola Superior Artística do Porto, com arguição de João Miguel
Lameiras, o Miguel defendeu com sucesso o seu projecto académico e a sua
interpretação em banda desenhada da história de Diogo Alves, o assassino do
aqueduto.
Terminou com 19 valores.
Quase que aposto que, em Lisboa,
conservada em formol há mais de século e meio, a cabeça do galego maldito
piscou o olho quando soube da novidade!