domingo, janeiro 11, 2015

A caixa de Pandora dos desastres naturais



Acabei agora de ler “Disasters and the Media”, obra de síntese de Mervi Pantti, Karin Wahl-Jorgensen e Simon Cottle sobre este campo fascinante da representação jornalística dos desastres. Como quase tudo o que Cottle publicou, é exaustivo e passa em revista os contributos importantes sobre as várias dimensões do tema.
Aborda as tragédias na era da televisão e a impossível missão jornalística de conciliar padrões profissionais de equilíbrio, distância e objectividade com a realidade crua do Haiti’10, de Bam’04, de Sechuan’08 ou de Paddington’96. Reflecte sobre a ânsia que nos consome face a estes registos de incerteza manufacturada que nos entram pela sala adentro e que nos motivam a exigir culpados e a atribuir culpas. Por fim, não esconde que a profusão de cidadãos-jornalistas entre membros do pessoal de socorro, vítimas, sobreviventes e testemunhas anónimas tem criado uma cacofonia de som e imagem difícil de gerir, provocando atrito no monopólio que os media tradicionais tinham para mediar estas crises.
Foi com grata surpresa que detectei uma investigadora portuguesa citada abundantemente na obra, no capítulo sobre a era das tragédias globais. Sem favores nem falsos patriotismos, é gratificante verificar que a obra de Helena Murteira, da Universidade de Évora, galgou fronteiras e fornece elementos úteis para contextualizar o grande sismo de Lisboa de 1755 no quadro desta questão. Murteira chama-lhe “o primeiro grande acontecimento da história” – acontecimento no sentido jornalístico, na medida em que a ocorrência foi transformada em notícia por toda a Europa e América do Norte e mobilizou/escandalizou jornalistas, políticos e pensadores.
Murteira argumenta também que data de 1755 o princípio das respostas a emergências coordenadas pelo Estado, uma determinação evidente no século XXI, mas profundamente revolucionária para o século XVIII. Nasceram também em Lisboa, em 1755, as primeiras demonstrações transnacionais de solidariedade e oferta de apoio que ainda hoje sucedem na sequência de grandes desastres. De muitas maneiras, o sismo de 1755 foi o primeiro desastre moderno.
A esta linha de raciocínio, Paanti e colegas juntaram um dado adicional: foi o sismo de 1755 que constituiu a divisória fundamental na compreensão colectiva dos desastres naturais e das forças que os causam. Com o infausto evento de Lisboa, terminou definitivamente o paradigma do desastre como punição para os pecados humanos. E abriu-se espaço para o confronto entre a responsabilidade da agência humana e da aleatoriedade natural na profusão de desastres. A caixa de Pandora do risco abriu-se para nunca mais ser fechada: se não temos influência nos desastres, se nada podemos fazer para os prevenir, mais vale, como o “Cândido” de Voltaire, assumir essa imprevisibilidade e não descurar o cultivo do nosso jardim...
A ler, se tiverem oportunidade.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gonçalamigo

Estive no terramoto da Roménia (1977), no tremendo desastre de Saint Louis, na derroca da Rocinha, em três desastre ferroviários, no abanão na Serra Pelada, na monstruosidade do Haiti, no terramoto da Cidade do México sempre em serviço do DN.

Sei bem o que tudo isso foi e infelizmente é e será. E também como é difícil concatenar ideias, escolher fotografias. E na época das linotypes.. Por isso vou ler esta obra que analisa, escrever textos, passá-los a tempo e horas para "não se perderam os comboios". E engolir o medo, o sofrimento a desolação e até as lágrimas.

Nesses momentos em que o Jornalista supera o Homem (os dois em caixa alta) descobri como somos e o que fazemos - e faremos - e também que não passamos duma cagadela de mosquito face ao Mundo e, ainda pior, ao Universo.

O nónio apaga-se, o cronómetro desaparece, o cronómetro fica parado e, por incrível que pareça "e pur si muove". Esfrangalhados os nervos, há que seguir em frente, há que mandar o serviço: "Cuidar dos vivos, enterrar os mortos!"

Há que louvar a Helena Murteira (que não conheço, mas tentarei conhecer) por ter levado ao mundo o ano da desgraça, que não da graça de 1755.

E prometo-te que vou ler O "Disasters and the Media" porque me aguçaste o apetite...

Espero que faças duas coisas (aue afinal são três...):

1) Ir à minha Travessa, ser seu seguidor e comentar, jáaaaaaaa;
2) Comprar e ler o meu Crónicas das minhas teclas e
3) Mandar-me o teu imeile (criação minha...) para te incluir na minha lista de chateados. Obrigado

Abç