«O então capitão Diniz de Almeida recorda que tinha em mente a infelicidade de Varela Gomes em Beja quando foi prender o seu comandante no 25 de Abril de 1974: teve então o cuidado de enfrentá-lo com uma G3 em posição de rajada, avisando-o logo de que não queria ser obrigado a abatê-lo.»
Esta é uma das novidades apresentadas agora pelo historiador António Louçã em Varela Gomes, Biografia (Parsifal, 2016) e comprova, como outros exemplos, a ligação umbilical entre a revolta de Beja no último dia de 1961 e a revolução consumada doze anos depois. O precedente de Beja esteve sempre na mente dos conspiradores de 1974 – pela espontaneidade ingénua, pela ausência de planificação de longo curso, pela coragem de um punhado de homens, pela força do exemplo de um militar. Falhou como falham quase todos os actos desesperados na história, mas vincou um ponto e isso basta para João Varela Gomes.
Autor, entre outras obras, do estudo sobre os negócios de ouro do Estado Novo com a Alemanha nazi, Louçã lançou-se agora num projecto biográfico ingrato sobre o militar de quem pouco se escreve. Como nota no prefácio, nem a exposição organizada em 2014 por Pacheco Pereira sobre 200 personalidades associadas à III República, nem os volumes de Filipe Ribeiro de Meneses ou de Rui Ramos sobre a história do Estado Novo, mencionam Varela Gomes. Porque será?
É provável que o percurso do coronel, regularmente no lado errado da história, jogue um papel decisivo na definição histórica da sua relevância. A história é escrita por aqueles que enforcaram os heróis — queixa-se Robert the Bruce no início de "Braveheart". Derrotado nas eleições de 1961, vencido e baleado em Beja no final desse ano, preso pela PIDE e julgado pelos tribunais da ditadura, alheio à conspiração de 1974, vencido em 25 de Novembro de 1975 e mal tolerado no exílio africano em Angola e Moçambique, Varela Gomes foi alvo de sucessivas derrotas simbólicas, mas isso não apaga o seu papel na história do século XX português.
Bem documentado, juntando entrevistas contemporâneas com trechos escritos pelos protagonistas nos últimos cinquenta anos, Louçã produziu uma saborosa biografia que se lê num ápice. Estabelece como premissa de partida que João Varela Gomes não foi o promotor de quase nenhum dos actos de ruptura de que o acusam, mas nunca se esquivou a neles participar, fosse nas eleições, no golpe de Beja, na resistência, na revolução de 1974 ou no combate à contra-revolução.
As passagens sobre a campanha eleitoral de 1961, a revolta de Beja e a prisão subsequente são notáveis – as melhores da obra. A não participação do autor nos actos de 1974 é igualmente explorada e resumida nas duras palavras de Vasco Lourenço sobre os militares que não fizeram as suas revoluções quando puderam e vinham agora estragar as dos outros. Curiosamente, Agostinho Neto retomará as mesmas palavras em 1977 sobre os revolucionários que não fizeram a revolução nos seus países e vão agora tentar fazê-la no dos outros!
Voluntariamente, Louçã deixa em aberto duas das acusações mais graves que a história registou sobre Varela Gomes – a de que propusera a pena de morte após os acontecimentos de Março de 1975 e a de que se bateria com armas e sangue em Novembro de 1975 para travar a contra-revolução se a ocasião o permitisse e a liderança da esquerda o quisesse.
Por decisão do autor – e eventualmente cumplicidade de barricada –, o livro termina com uma apreciação dos contributos teóricos de Varela Gomes para o projecto da revista Versus. É uma opção cronologicamente justificada, mas que impede o livro de terminar com um “bang”, como mereceria.
«Que outros triunfem onde nós fomos vencidos», disse Varela Gomes na intervenção que lhe foi permitida, no final do seu julgamento público após o golpe de Beja. É a revolta de Beja que constitui o principal legado de um militar diferente de qualquer outro (o insuspeito Google associa de imediato as palavras “Varela Gomes” a “Beja” e isso diz quase tudo). É todo um programa de intervenção que ali ficou expresso e que António Louçã meritoriamente agora recupera.