Absolutamente fascinante! A entrada na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT/UNL), no monte da Caparica, tornou-se mais difícil do que o acesso a prisões de alta segurança. Pelo menos para quem cumpre as regras e se anuncia na portaria.
14 horas. Com uma entrevista marcada com um docente, esperava, na minha ingenuidade, anunciar-me, entrar no recinto e dirigir-me ao gabinete do investigador que me esperava. Puro engano! O procedimento de verificação de viaturas é meticuloso e é seguido com minúcia. Tive de repetir três vezes quem era, ao que ia e porque vinha. Fui, desde logo, compelido a "encostar" o carro enquanto o Gabinete de Segurança Interna (nome pomposo, este) confirmava as minhas credenciais. Pelo tempo que demoraram, apostaria que pesquisaram o meu nome nas bases de dados mais terríveis do globo. Quem sabe se não anda na margem sul uma célula vocacionada para ataques a instituições universitárias?
Esperei, esperei... De vez em quando, do lado de dentro do "guichet", olhavam-me com desconfiança. Que diabo! Senti-me como os foragidos da guerra fria no checkpoint Charlie, de Berlim.
O tempo foi passando, e o docente, algures num gabinete, ia desesperando. Fui entretanto informado de que cometi um erro processual: na FCT/UNL, as entrevistas têm de ser anunciadas previamente ao Gabinete de Segurança Interna (GSI). Desconheço os motivos. Será uma questão de juri? Imagino um painel de seguranças, em redor de uma mesa, cogitando sobre a pertinência do meu pedido de entrevista com um docente de mineralogia, curiosos perante o meu interesse num projecto de química orgânica ou intrigados pela minhas solicitações sobre a qualidade do ar.
Enquanto aguardo, verifico que outros carros entram e saem sem verificações. Aparentemente, esbarrei numa greve de zelo, tanto mais que, à saída, não há qualquer controlo. Perguntou por isso à fucionária se poderei estacionar no exterior e entrar a pé. Travo um diálogo de surdos.
"Também não pode entrar incógnito", responde ela, como se não visse as dezenas de pessoas que entram e saem sem qualquer controlo.
"E se eu não me anunciasse, como saberia o GSI quem eu era e se me deveria barrar a entrada?"
"Nós descobríamo-lo", retorque com um sorriso próprio de quem está seguro por um sistema de vigilância electrónica. Encolho os ombros. Deve ser para os "apanhados". E não evito um sorriso interior, enquanto imagino patrulhas de elementos do GSI vigiando as várias avenidas da FCT/UNL.
Finalmente, o meu pedido foi "deferido" e entrei. No interior dos departamentos, como seria de esperar, é a confusão total e dou por mim, semiperdido e isolado, num laboratório com espectómetros que valem certamente mais de 100 mil euros. Ninguém me diz nada e pondero a possibilidade de pegar num microscópio e levá-lo debaixo do braço. Na portaria, aposto, ninguém daria por nada. Porque, ao contrário de Alcatraz , no monte da Caparica não se consegue entrar, mas sai-se com toda a limpeza.
terça-feira, novembro 30, 2004
segunda-feira, novembro 29, 2004
Análises inquinadas
Que responsabilidade têm as autarquias transmontanas nos recentes casos de contaminação do abastecimento de água por arsénio? – questionou-me um leitor hoje de manhã. Enquadremos o caso para os mais distraídos.
No início de Novembro, uma investigação de dois docentes transmontanos revelou níveis extraordinariamente altos de arsénio na rede de abastecimento de água em Vila Flor e Alfândega da Fé (Trás-os-Montes).
Todos os anos, realizam-se entre três e quatro mil análises à qualidade das águas de abastecimento público de todo o país. Algumas são realizadas a pedido das autarquias; outras a pedido de particulares ou privados; outras ainda, a maioria, por iniciativa das delegações regionais de saúde. Os dois docentes afirmaram que 28% das análises de arsénio exigidas por lei em Portugal não tinham sido solicitadas pelas autarquias. O que é grave e prenuncia um cenário de total irresponsabilidade.
Compreendo e aceito o facto de estes municípios transmontanos viverem com carências elevadas, que reduzem a capacidade de intervenção das autarquias. Com tantos fogos para acorrer e com recursos bastante limitados, é forçoso tornear algumas exigências legais. Não se aplaude, mas percebe-se.
Mas, ao mesmo tempo, as autarquias em causa não podem, em circunstância alguma, lavar as mãos como Pilatos. Sabia-se que, nos últimos cinco anos, tinham ocorrido sérios problemas de saúde nas aldeias de Macedinho e Valbom, no concelho de Vila Flor, e de Vilares da Vilariça, em Alfândega da Fé. As populações queixavam-se do estranho sabor da água da rede pública, água essa que "deixava os dentes pretos", queixou-se uma moradora aos jornais. Não acredito, nem por um momento, que as duas autarquias não tivessem tomado conta da gravidade das queixas. Não concebo que, em aldeias tão pequenas, ninguém tivesse mencionado o caso aos autarcas. E a partir desse momento as câmaras municipais, que têm a obrigação legal de encomendar análises (com ou sem indícios de alteração química) com regularidade, têm culpas morais no cartório.
É óbvio que a perturbação da composição química da água pode ter explicações naturais. Pode até não ter sido motivada por qualquer actividade humana. Por enquanto, desconhece-se a causa da deterioração, embora as análises posteriores, encomendadas ao Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, possam lançar luz sobre o assunto brevemente. Mas, a meu ver, isso não isenta as autarquias implicadas de alguma cumplicidade moral – autarquias essas que, depois da publicitação do estudo dos dois docentes, se apressaram a pedir inquéritos, a encomendar análises e a gritar "aqui d’el rei, isto é um escândalo".
P.S.: Segundo os dois investigadores, há mais 16 autarquias em Portugal que não comunicaram no último ano os resultados das suas análises ao Ministério da Saúde e aos delegados regionais de saúde. Desconhece-se se os testes foram, ou não, conduzidos. Mas há pelo menos dezasseis municípios onde a água da rede de abastecimento público não oferece garantias mínimas ao consumidor…
P.S.1: Nem por coincidência! Os dois investigadores publicaram ontem uma carta no jornal "Público", na secção "Cartas ao Director". Sintetiza na perfeição o que penso sobre o assunto.
No início de Novembro, uma investigação de dois docentes transmontanos revelou níveis extraordinariamente altos de arsénio na rede de abastecimento de água em Vila Flor e Alfândega da Fé (Trás-os-Montes).
Todos os anos, realizam-se entre três e quatro mil análises à qualidade das águas de abastecimento público de todo o país. Algumas são realizadas a pedido das autarquias; outras a pedido de particulares ou privados; outras ainda, a maioria, por iniciativa das delegações regionais de saúde. Os dois docentes afirmaram que 28% das análises de arsénio exigidas por lei em Portugal não tinham sido solicitadas pelas autarquias. O que é grave e prenuncia um cenário de total irresponsabilidade.
Compreendo e aceito o facto de estes municípios transmontanos viverem com carências elevadas, que reduzem a capacidade de intervenção das autarquias. Com tantos fogos para acorrer e com recursos bastante limitados, é forçoso tornear algumas exigências legais. Não se aplaude, mas percebe-se.
Mas, ao mesmo tempo, as autarquias em causa não podem, em circunstância alguma, lavar as mãos como Pilatos. Sabia-se que, nos últimos cinco anos, tinham ocorrido sérios problemas de saúde nas aldeias de Macedinho e Valbom, no concelho de Vila Flor, e de Vilares da Vilariça, em Alfândega da Fé. As populações queixavam-se do estranho sabor da água da rede pública, água essa que "deixava os dentes pretos", queixou-se uma moradora aos jornais. Não acredito, nem por um momento, que as duas autarquias não tivessem tomado conta da gravidade das queixas. Não concebo que, em aldeias tão pequenas, ninguém tivesse mencionado o caso aos autarcas. E a partir desse momento as câmaras municipais, que têm a obrigação legal de encomendar análises (com ou sem indícios de alteração química) com regularidade, têm culpas morais no cartório.
É óbvio que a perturbação da composição química da água pode ter explicações naturais. Pode até não ter sido motivada por qualquer actividade humana. Por enquanto, desconhece-se a causa da deterioração, embora as análises posteriores, encomendadas ao Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, possam lançar luz sobre o assunto brevemente. Mas, a meu ver, isso não isenta as autarquias implicadas de alguma cumplicidade moral – autarquias essas que, depois da publicitação do estudo dos dois docentes, se apressaram a pedir inquéritos, a encomendar análises e a gritar "aqui d’el rei, isto é um escândalo".
P.S.: Segundo os dois investigadores, há mais 16 autarquias em Portugal que não comunicaram no último ano os resultados das suas análises ao Ministério da Saúde e aos delegados regionais de saúde. Desconhece-se se os testes foram, ou não, conduzidos. Mas há pelo menos dezasseis municípios onde a água da rede de abastecimento público não oferece garantias mínimas ao consumidor…
P.S.1: Nem por coincidência! Os dois investigadores publicaram ontem uma carta no jornal "Público", na secção "Cartas ao Director". Sintetiza na perfeição o que penso sobre o assunto.
domingo, novembro 28, 2004
Aliança exemplar
Há cerca de um mês, desloquei-me a Turim onde tive oportunidade de conhecer pormenorizadamente o funcionamento de uma organização não governamental (ONG) muito particular - a Rainforest Alliance.
Sediada em Nova Iorque e em San Jose (Costa Rica), esta ONG opera como um carimbo de validade ambiental. Empresas e estados solicitam a certificação ambiental para os seus projectos na floresta tropical centro-americana e a Rainforest estrutura cadernos de encargo, constituídos por várias etapas, antes de oferecer a sua garantia.
O processo é engenhoso e visa criar infra-estruturas que sirvam as populações locais muito depois de as empresas abandonarem a região. Pretende também educar locais e estrangeiros para as virtudes de comportamentos mais racionais na gestão da floresta, na utilização de cursos de água, no abate de árvores e até no tratamento dos solos.
Em Turim, tive oportunidade de analisar um caso concreto. Uma marca produtora de cafés solicitara os serviços da Rainforest Alliance para certificar as suas explorações de café em três países da América Central. Pretendia por isso ganhar o reconhecimento de uma entidade independente, que avalizasse as suas operações como parte "daquilo" que a ONG considera desenvolvimento sustentável. Foram impostas metas que fariam qualquer empresa empalidecer.
Foi dito aos produtores de café que seria imperioso que nenhuma das explorações afectasse os ecossistemas da região; que respeitasse, protegesse e reflorestasse todas as áreas onde operasse; que desenvolvesse mecanismos de prevenção e controlo de incêndios; que protegesse os habitats onde as explorações agrícolas seriam dinamizadas; que construísse melhores infra-estruturas para os trabalhadores (casas, escolas, estradas); que contratualizasse sempre os seus trabalhadores; que promovesse a liberdade de associação e de sindicalismo; que desenvolvesse serviços de assistência médica no trabalho; que consultasse e respeitasse as comunidades onde se inserisse; que não usasse pesticidas e respeitasse as práticas tradicionais agrícolas da região; que encontrasse forma de gerir integradamente os resíduos derviados da produção, reciclando-os, protegendo cursos de água e lençóis freáticos; que controlasse a erosão do solo através da reflorestação e da utilização periódica de novos solos...
Todas estas etapas foram vigiadas durante dois anos antes de ser concedida uma certificação. Aliás, é possível que o processo recue várias etapas se se detectarem comportamentos nocivos para o ambiente.
Neste momento, a Rainforest Alliance já certificou mais de 1.000 explorações agrícolas na América Central e a sua acção teve impactes directos na vida de 95 mil famílias (mais detalhes aqui).
Em Portugal, apenas em Novembro, acordámos com as notícias de que uma fábrica no estuário do Sado derramou os seus efluentes directamente no rio; que as minas de urânio de Canas de Senhorim continuam a operar com claro desrespeito pela população local; que algumas freguesias de Trás-os-Montes apresentam níveis de arsénio na água dez vezes superiores ao limite legal.
Isto passa-se em Portugal e não na América Central. Dá que pensar…
Sediada em Nova Iorque e em San Jose (Costa Rica), esta ONG opera como um carimbo de validade ambiental. Empresas e estados solicitam a certificação ambiental para os seus projectos na floresta tropical centro-americana e a Rainforest estrutura cadernos de encargo, constituídos por várias etapas, antes de oferecer a sua garantia.
O processo é engenhoso e visa criar infra-estruturas que sirvam as populações locais muito depois de as empresas abandonarem a região. Pretende também educar locais e estrangeiros para as virtudes de comportamentos mais racionais na gestão da floresta, na utilização de cursos de água, no abate de árvores e até no tratamento dos solos.
Em Turim, tive oportunidade de analisar um caso concreto. Uma marca produtora de cafés solicitara os serviços da Rainforest Alliance para certificar as suas explorações de café em três países da América Central. Pretendia por isso ganhar o reconhecimento de uma entidade independente, que avalizasse as suas operações como parte "daquilo" que a ONG considera desenvolvimento sustentável. Foram impostas metas que fariam qualquer empresa empalidecer.
Foi dito aos produtores de café que seria imperioso que nenhuma das explorações afectasse os ecossistemas da região; que respeitasse, protegesse e reflorestasse todas as áreas onde operasse; que desenvolvesse mecanismos de prevenção e controlo de incêndios; que protegesse os habitats onde as explorações agrícolas seriam dinamizadas; que construísse melhores infra-estruturas para os trabalhadores (casas, escolas, estradas); que contratualizasse sempre os seus trabalhadores; que promovesse a liberdade de associação e de sindicalismo; que desenvolvesse serviços de assistência médica no trabalho; que consultasse e respeitasse as comunidades onde se inserisse; que não usasse pesticidas e respeitasse as práticas tradicionais agrícolas da região; que encontrasse forma de gerir integradamente os resíduos derviados da produção, reciclando-os, protegendo cursos de água e lençóis freáticos; que controlasse a erosão do solo através da reflorestação e da utilização periódica de novos solos...
Todas estas etapas foram vigiadas durante dois anos antes de ser concedida uma certificação. Aliás, é possível que o processo recue várias etapas se se detectarem comportamentos nocivos para o ambiente.
Neste momento, a Rainforest Alliance já certificou mais de 1.000 explorações agrícolas na América Central e a sua acção teve impactes directos na vida de 95 mil famílias (mais detalhes aqui).
Em Portugal, apenas em Novembro, acordámos com as notícias de que uma fábrica no estuário do Sado derramou os seus efluentes directamente no rio; que as minas de urânio de Canas de Senhorim continuam a operar com claro desrespeito pela população local; que algumas freguesias de Trás-os-Montes apresentam níveis de arsénio na água dez vezes superiores ao limite legal.
Isto passa-se em Portugal e não na América Central. Dá que pensar…
sábado, novembro 27, 2004
Silva Costa, dois anos depois
A demissão de João Silva Costa da presidência do Instituto da Conservação da Natureza (ICN) não surpreendeu. Sabia-se que o engenheiro hidráulico estava francamente desgastado por dois anos e meio de intensa actividade e que a recente redução do orçamento atribuído ao ICN pelo Orçamento de Estado para 2005 caíra mal. A saída, directamente para a empresa Águas de Santo André, era previsível.
Impõe-se nesta altura, e enquanto se discute arduamente o seu sucessor, traçar um balanço a estes dois anos e meio de gestão de Silva Costa. É inegável que a decadência financeira do ICN de hoje não se compara com os problemas de tesouraria de 2002. A crise agudizou-se, mas acredito que a responsabilidade não deve ser imputada ao presidente demissionário.
Silva Costa foi nomeado por Isaltino de Morais, a estranha escolha do executivo de Durão Barroso para o Ministério das Cidades, do Ambiente e do Ordenamento do Território. Bem conhecido pelo seu trabalho à frente da direcção regional de Ambiente de Lisboa e Vale do Tejo (onde escapou com distinção das "batalhas" rijas relacionadas com a construção da ponte Vasco da Gama), Silva Costa foi um nome bem recebido no interior da instituição. Em entrevistas e declarações públicas datadas de 2002, o engenheiro estabeleceu a seguinte lista de prioridades:
1) Aproximar a gestão das áreas protegidas das autarquias e, porventura, torná-las dependentes dos executivos camarários.
2) Finalizar todos os Planos de Ordenamento em falta nas áreas protegidas portuguesas.
3) Compensar as lacunas financeiras com o recurso a financiamento comunitário. Ao longo dos dois anos da sua presidência, Silva Costa foi constantemente recordado da sua ingénua proposta de que, por cada euro orçamental recebido do Estado português, o ICN deveria encontrar dois euros em financiamento europeu!
4) Travar os impulsos de investigação no seio do ICN, uma vez que não seria essa a vocação da instituição. Ao ICN, segundo Silva Costa, caberia a tarefa conservacionista. A investigação deveria ficar a cargo de universidades ou grupos independentes.
5) Investir fortemente no corpo de vigilantes, privilegiando a formação e a consolidação salarial deste núcleo tão importante de funcionários
6) Encontrar fórmulas criativas de receitas, nomeadamente através da cobrança de serviços normalmente oferecidos pelo ICN: pareceres às câmaras municipais relativamente a construções, taxas pela introdução de parques eólicos no interior de áreas protegidas, pagamento por serviços de guias e funções associadas em sessões de turismo ecológico...
Olhando para este ambicioso quadro programático, é legítimo concluir que SIlva Costa não teve sucesso à frente do ICN: é verdade que alguns planos de ordenamento foram publicados entretanto, mas este problema estrutural arrasta-se e ainda mantém na ilegalidade algumas áreas protegidas; é verdade igualmente que o ICN começou a cobrar alguns serviços (que deveria ter cobrado desde sempre), mas o seu peso nas receitas globais foi escasso.
Do lado mais pesado da balança, estão claramente os falhanços. O financiamento comunitário, embora razoável, nunca atingiu a meta ingenuamente estipulada e, pior do que isso, os dinheiros chegavam ao ICN, mas ficavam regularmente retidos antes de serem distribuídos aos respectivos projectos. Houve claramente um retrocesso na investigação da instituição que, acrescento, está precisamente vocacionada para coordenar esforços de investigação que permitam melhor direccionar as acções de conservação. Neste aspecto, o censo do lince ibérico entretanto desenvolvido foi uma excepção, uma gota de água num instituto que menosprezou uma das suas funções centrais nestes dois anos e meio.
Diria ainda que a aproximação das áreas protegidas à gestão autárquica também retrocedeu. E, neste caso, felizmente. Sou claramente suspeito para falar de gestão autárquica. Tenho uma péssima ideia da capacidade dos municípios para tomar decisões de âmbito ambiental. E antecipo com receio o dia em que um projecto desta natureza ganhar corpo, porque as câmaras municipais, salvo honrosas excepções, não têm sensibilidade ambiental, nem conseguem tomar decisões estruturais baseadas em valores simbólicos, como a preservação ou a conservação.
Por fim, não por responsabilidade de Silva Costa, o corpo de vigilantes do ICN é hoje mais reduzido do que em 2002. Há menos vigilantes, o quadro está mais envelhecido e não se consegue recrutar, porque não há dinheiro, nem se oferece segurança profissional.
Perante tudo isto, importa perguntar: como conseguiu João Silva Costa abandonar o ICN com o prestígio reforçado e sendo alvo de despedidas respeitosas no interior e exterior do ICN? Pelo que pude ver, João Silva Costa foi genuníno. Assumiu como suas as dores da instituição e nunca, em circunstância alguma, atacou ou deixou atacar a instituição a que presidia. Viu o orçamento regularmente retalhado e ripostou. Sentiu a perda de influência do ICN e contestou. Apercebeu-se de ataques a áreas protegidas e saiu em sua defesa. Não foi um presidente bem sucedido, como se viu em cima. Mas foi paradoxalmente um presidente que deixou saudades.
Impõe-se nesta altura, e enquanto se discute arduamente o seu sucessor, traçar um balanço a estes dois anos e meio de gestão de Silva Costa. É inegável que a decadência financeira do ICN de hoje não se compara com os problemas de tesouraria de 2002. A crise agudizou-se, mas acredito que a responsabilidade não deve ser imputada ao presidente demissionário.
Silva Costa foi nomeado por Isaltino de Morais, a estranha escolha do executivo de Durão Barroso para o Ministério das Cidades, do Ambiente e do Ordenamento do Território. Bem conhecido pelo seu trabalho à frente da direcção regional de Ambiente de Lisboa e Vale do Tejo (onde escapou com distinção das "batalhas" rijas relacionadas com a construção da ponte Vasco da Gama), Silva Costa foi um nome bem recebido no interior da instituição. Em entrevistas e declarações públicas datadas de 2002, o engenheiro estabeleceu a seguinte lista de prioridades:
1) Aproximar a gestão das áreas protegidas das autarquias e, porventura, torná-las dependentes dos executivos camarários.
2) Finalizar todos os Planos de Ordenamento em falta nas áreas protegidas portuguesas.
3) Compensar as lacunas financeiras com o recurso a financiamento comunitário. Ao longo dos dois anos da sua presidência, Silva Costa foi constantemente recordado da sua ingénua proposta de que, por cada euro orçamental recebido do Estado português, o ICN deveria encontrar dois euros em financiamento europeu!
4) Travar os impulsos de investigação no seio do ICN, uma vez que não seria essa a vocação da instituição. Ao ICN, segundo Silva Costa, caberia a tarefa conservacionista. A investigação deveria ficar a cargo de universidades ou grupos independentes.
5) Investir fortemente no corpo de vigilantes, privilegiando a formação e a consolidação salarial deste núcleo tão importante de funcionários
6) Encontrar fórmulas criativas de receitas, nomeadamente através da cobrança de serviços normalmente oferecidos pelo ICN: pareceres às câmaras municipais relativamente a construções, taxas pela introdução de parques eólicos no interior de áreas protegidas, pagamento por serviços de guias e funções associadas em sessões de turismo ecológico...
Olhando para este ambicioso quadro programático, é legítimo concluir que SIlva Costa não teve sucesso à frente do ICN: é verdade que alguns planos de ordenamento foram publicados entretanto, mas este problema estrutural arrasta-se e ainda mantém na ilegalidade algumas áreas protegidas; é verdade igualmente que o ICN começou a cobrar alguns serviços (que deveria ter cobrado desde sempre), mas o seu peso nas receitas globais foi escasso.
Do lado mais pesado da balança, estão claramente os falhanços. O financiamento comunitário, embora razoável, nunca atingiu a meta ingenuamente estipulada e, pior do que isso, os dinheiros chegavam ao ICN, mas ficavam regularmente retidos antes de serem distribuídos aos respectivos projectos. Houve claramente um retrocesso na investigação da instituição que, acrescento, está precisamente vocacionada para coordenar esforços de investigação que permitam melhor direccionar as acções de conservação. Neste aspecto, o censo do lince ibérico entretanto desenvolvido foi uma excepção, uma gota de água num instituto que menosprezou uma das suas funções centrais nestes dois anos e meio.
Diria ainda que a aproximação das áreas protegidas à gestão autárquica também retrocedeu. E, neste caso, felizmente. Sou claramente suspeito para falar de gestão autárquica. Tenho uma péssima ideia da capacidade dos municípios para tomar decisões de âmbito ambiental. E antecipo com receio o dia em que um projecto desta natureza ganhar corpo, porque as câmaras municipais, salvo honrosas excepções, não têm sensibilidade ambiental, nem conseguem tomar decisões estruturais baseadas em valores simbólicos, como a preservação ou a conservação.
Por fim, não por responsabilidade de Silva Costa, o corpo de vigilantes do ICN é hoje mais reduzido do que em 2002. Há menos vigilantes, o quadro está mais envelhecido e não se consegue recrutar, porque não há dinheiro, nem se oferece segurança profissional.
Perante tudo isto, importa perguntar: como conseguiu João Silva Costa abandonar o ICN com o prestígio reforçado e sendo alvo de despedidas respeitosas no interior e exterior do ICN? Pelo que pude ver, João Silva Costa foi genuníno. Assumiu como suas as dores da instituição e nunca, em circunstância alguma, atacou ou deixou atacar a instituição a que presidia. Viu o orçamento regularmente retalhado e ripostou. Sentiu a perda de influência do ICN e contestou. Apercebeu-se de ataques a áreas protegidas e saiu em sua defesa. Não foi um presidente bem sucedido, como se viu em cima. Mas foi paradoxalmente um presidente que deixou saudades.
sexta-feira, novembro 26, 2004
Requiem esperado
O Parque Marinho da Arrábida (PMA) foi, desde o início, uma presa apetecida. Como César, o PMA esteve sempre cercado de inimigos, decididos a esperar pela ocasião ideal para o apunhalamento. Lamentavelmente, essa ocasião chegou.
Há anos, assisti à discussão pública do Plano de Oordenamento do PMA realizada em Sesimbra. Dizem-me que a sessão de Setúbal decorreu nos mesmos contornos. Nessa noite, percebi tristemente que o PMA seria sempre uma miragem, porque os seus apoiantes se limitavam à comunidade científica. Ao contrário de outras áreas protegidas, onde as populações sentem que a classificação trará turismo ou não afectará as actividades económicas da região, praticamente ninguém gastou saliva para defender o PMA. Isso é sintomático da artificialidade de um parque.
Na sala, estavam representantes de várias sensibilidades. Praticamente todos os presentes criticavam a área protegida e tinham-se deslocado ao auditório para assegurar que os seus interesses não seriam afectados. A maioria era gente da terra, pescadores genuinamente preocupados com a alteração da sua área de trabalho e com a nova obrigatoriedade de fugir dos limites do parque para as pescarias. Compreendiam que cada vez mais espécies não se desenvolviam completamente nem chegavam à fase adulta, porque a pesca intensiva arrebatava do mar os juvenis. Percebiam também que a arte xávega, tradicional no concelho, continuaria a ser permitida. Mas não estavam dispostos a mudar práticas geracionais, nem compreendiam porque não podiam usar as técnicas de sempre.
Havia também proprietários de embarcações de lazer, também eles indispostos, também eles irritados por terem de alterar as rotas preferidas de navegação, junto à Arrábida. Um núcleo de mergulhadores, de praticantes de jet ski e de outras actividades náuticas estava exaltado com as restrições de acesso à "Meca", um nome carinhoso que os profissionais de mergulho dão a esta zona providencial da costa portuguesa, onde o clima praticamente permite mergulhar todo o ano. E havia dirigentes autárquicos que, tomando o pulso ao descontentamento, rapidamente mudaram de trincheira e tornaram-se críticos. Assisti, incrédulo, enquanto o velho axioma político foi refeito pelos autarcas: Nós somos os líderes eleitos; estes são os eleitores; por isso, somos nós… que temos de os seguir.
Do lado do PMA, havia apenas duas linhas de defesa. Por um lado, os representantes do Instituto da Conservação da Natureza (ICN), que abordaram a sessão da pior forma possível. Apresentaram o Plano de Ordenamento como uma realidade fechada e discutida. Na sua ingenuidade, cuidaram que anunciavam a borrasca e saíam incólumes. Quando um objecto voou na direcção de um dos funcionários do ICN, a mensagem finalmente passou: não se anunciam projectos destes sem uma explicação acessível e intensiva às comunidades locais.
E havia ainda os biólogos, investigadores que tinham despendido tempo e recursos para avaliar a saúde daquele ecossistema e que se tinham assustado com a perspectiva terrível que se adivinhava para a vida marinha da região. Eram infelizmente poucos e não tinham claramente capacidade de persuasão.
O resto da história é conhecido. O Plano de Ordenamento provisório tornou-se um compromisso entre as posições dos biólogos e o sentimento das populações afectadas. A área protegida foi reduzida, as zonas "tampão" diminuídas. E o Plano nunca foi publicado. Foi sendo adiado para as calendas gregas, impedindo o natural funcionamento do parque.
Anteontem, a Quercus e a Liga para a Protecção da Natureza anunciaram que o PMA perderá o estatuto de área protegida, uma vez que, sem Plano de Ordenamento, a área não só é inútil como ilegal. O esclarecimento do Governo não foi suficiente: aparentemente, no Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida (o terrestre), será proposta uma redução da área marinha classificada. Na prática, o processo retira autonomia ao PMA e transforma-o numa miragem.
Era o requiem que eu esperava desde aquela noite em Sesimbra. Ironicamente, ocorre uma semana depois dos compromissos verbais assumidos durante a Semana do Mar. Quererá o ministro da Defesa e dos Assuntos do Mar comentar?
Há anos, assisti à discussão pública do Plano de Oordenamento do PMA realizada em Sesimbra. Dizem-me que a sessão de Setúbal decorreu nos mesmos contornos. Nessa noite, percebi tristemente que o PMA seria sempre uma miragem, porque os seus apoiantes se limitavam à comunidade científica. Ao contrário de outras áreas protegidas, onde as populações sentem que a classificação trará turismo ou não afectará as actividades económicas da região, praticamente ninguém gastou saliva para defender o PMA. Isso é sintomático da artificialidade de um parque.
Na sala, estavam representantes de várias sensibilidades. Praticamente todos os presentes criticavam a área protegida e tinham-se deslocado ao auditório para assegurar que os seus interesses não seriam afectados. A maioria era gente da terra, pescadores genuinamente preocupados com a alteração da sua área de trabalho e com a nova obrigatoriedade de fugir dos limites do parque para as pescarias. Compreendiam que cada vez mais espécies não se desenvolviam completamente nem chegavam à fase adulta, porque a pesca intensiva arrebatava do mar os juvenis. Percebiam também que a arte xávega, tradicional no concelho, continuaria a ser permitida. Mas não estavam dispostos a mudar práticas geracionais, nem compreendiam porque não podiam usar as técnicas de sempre.
Havia também proprietários de embarcações de lazer, também eles indispostos, também eles irritados por terem de alterar as rotas preferidas de navegação, junto à Arrábida. Um núcleo de mergulhadores, de praticantes de jet ski e de outras actividades náuticas estava exaltado com as restrições de acesso à "Meca", um nome carinhoso que os profissionais de mergulho dão a esta zona providencial da costa portuguesa, onde o clima praticamente permite mergulhar todo o ano. E havia dirigentes autárquicos que, tomando o pulso ao descontentamento, rapidamente mudaram de trincheira e tornaram-se críticos. Assisti, incrédulo, enquanto o velho axioma político foi refeito pelos autarcas: Nós somos os líderes eleitos; estes são os eleitores; por isso, somos nós… que temos de os seguir.
Do lado do PMA, havia apenas duas linhas de defesa. Por um lado, os representantes do Instituto da Conservação da Natureza (ICN), que abordaram a sessão da pior forma possível. Apresentaram o Plano de Ordenamento como uma realidade fechada e discutida. Na sua ingenuidade, cuidaram que anunciavam a borrasca e saíam incólumes. Quando um objecto voou na direcção de um dos funcionários do ICN, a mensagem finalmente passou: não se anunciam projectos destes sem uma explicação acessível e intensiva às comunidades locais.
E havia ainda os biólogos, investigadores que tinham despendido tempo e recursos para avaliar a saúde daquele ecossistema e que se tinham assustado com a perspectiva terrível que se adivinhava para a vida marinha da região. Eram infelizmente poucos e não tinham claramente capacidade de persuasão.
O resto da história é conhecido. O Plano de Ordenamento provisório tornou-se um compromisso entre as posições dos biólogos e o sentimento das populações afectadas. A área protegida foi reduzida, as zonas "tampão" diminuídas. E o Plano nunca foi publicado. Foi sendo adiado para as calendas gregas, impedindo o natural funcionamento do parque.
Anteontem, a Quercus e a Liga para a Protecção da Natureza anunciaram que o PMA perderá o estatuto de área protegida, uma vez que, sem Plano de Ordenamento, a área não só é inútil como ilegal. O esclarecimento do Governo não foi suficiente: aparentemente, no Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida (o terrestre), será proposta uma redução da área marinha classificada. Na prática, o processo retira autonomia ao PMA e transforma-o numa miragem.
Era o requiem que eu esperava desde aquela noite em Sesimbra. Ironicamente, ocorre uma semana depois dos compromissos verbais assumidos durante a Semana do Mar. Quererá o ministro da Defesa e dos Assuntos do Mar comentar?
segunda-feira, novembro 22, 2004
Dividir as fileiras
O segredo do império britânico para as transições coloniais seguras traduziu-se historicamente numa simples fórmula: a hostilização de duas ou mais partes em confronto, de forma a que, abandonando a gestão das suas ex-colónias, os britânicos deixassem um rastilho imparável atrás de si. A fórmula traduziu-se invariavelmente em guerra civil. Foi assim na Irlanda, foi assim na Índia e no Paquistão. Foi assim lamentavelmente no Médio Oriente.
Passe a imagem, creio que esse é o legado deixado à medida que as sucessivas direcções-gerais cederam a gestão do território e/ou recursos a institutos criados de raiz para tal. O campo de batalha ficou de tal maneira minado que os diversos parceiros se tornaram beligerantes incorríveis. A meu ver, esse é o mal de que enferma por exemplo o antagonismo entre biólogos e geólogos, entre biólogos e arqueólogos ou entre arqueólogos e paleontólogos.
Absurdo? Procurem convencer um biólogo da importância da classificação geológica de "monumento natural" para um fenómeno que, à primeira vista, parece um conjunto de rochas partidas. Ou tentem persuadir um arqueólogo a não escavar uma jazida inserida num ecossistema protegido ou, no mínimo, a limitar o seu trabalho a horários menos agressivos. Ou peçam a um arqueólogo que se pronuncie sobre os métodos de trabalho, de investigação e escavação de um paleontólogo.
Cada área é ciosa do seu território, dos seus jargões e da sua tradição cultural. Defende-os de dentes cerrados, certa de que a sua razão é inabalável e de que os seus méritos pesam mais na balança do património.
Ora, na minha opinião, estas divergências derivam claramente da separação metodológica que caracteriza as várias áreas que destaquei. A aprendizagem é claramente separada, como rios independentes que raramente se cruzam. Um arqueólogo pouco estuda de biologia. Um biólogo dificilmente saberá o que quer que seja sobre a geologia do solo que defende. Um paleontólogo termina o curso praticamente sem uma aula prática que lhe permita desenvolver uma escavação metodologicamente correcta.
Há dias, Galopim de Carvalho, velho cruzado destas guerras, lamentava ao "Diário de Notícias": «Algumas pessoas da ciência não dão importância à geologia (...) Quando os ecologistas falam de ambiente, estão a pensar nas couves e nos morcegos, e não na rocha, nem no solo. Se não houvesse solo, não havia erva, nem borrego e não existindo tudo isso não haveria o ensopado de borrego!», brincou o professor jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. A brincar, o antigo director do Museu Nacional de História Natural tocou na ferida das lacunas curriculares.
A licenciatura de Biologia perdeu disciplinas como a mineralogia, a geologia ou a paleontologia. Percebe-se que um currículo não é infinito e que a tendência aponta no sentido do "mono-perito", mas, na especialização constante a que obrigamos os futuros licenciados, importa que se reconheça que também se perdem oportunidades.
Que importância terá isso?, pergunta o leitor. A interdisciplinariedade é fundamental na acção de conservação, respondo. Os responsáveis pelo Parque Nacional Peneda-Gerês lidam com património biológico, mas também geológico e arqueológico. Nas serras de Aire e Candeeiros, há valores mineralógicos que se fundem com património paleontológico, faunístico e arqueológico. Sem respeito pelas áreas tangenciais, a conservação é incompleta e injusta porque não apreende o todo.
Mas, tal qual as velhas colónias britânicas, os senhores biólogos, arqueólogos, paleontólogos e geólogos entretêm-se em guerrilhas estéreis, lutando por recursos finitos e invejando a atenção que os colegas merecem. No dia em que houver coordenação e respeito entre estas vontades, talvez não se construam com tanta facilidade barragens no Sabor, nem se destruam jazidas impunemente ou se danifiquem irremediavelmente impressões na rocha que testemunham a longa história do planeta.
Escrevo este "post" quase como uma resposta a um desafio que me foi lançado na sequência da nota escrita sobre Foz Côa. É para mim inaceitável que, na presente batalha pela preservação do Sabor, se derrubem os méritos da preservação arqueológica no rio Côa. Não vale tudo nestas guerras!
Passe a imagem, creio que esse é o legado deixado à medida que as sucessivas direcções-gerais cederam a gestão do território e/ou recursos a institutos criados de raiz para tal. O campo de batalha ficou de tal maneira minado que os diversos parceiros se tornaram beligerantes incorríveis. A meu ver, esse é o mal de que enferma por exemplo o antagonismo entre biólogos e geólogos, entre biólogos e arqueólogos ou entre arqueólogos e paleontólogos.
Absurdo? Procurem convencer um biólogo da importância da classificação geológica de "monumento natural" para um fenómeno que, à primeira vista, parece um conjunto de rochas partidas. Ou tentem persuadir um arqueólogo a não escavar uma jazida inserida num ecossistema protegido ou, no mínimo, a limitar o seu trabalho a horários menos agressivos. Ou peçam a um arqueólogo que se pronuncie sobre os métodos de trabalho, de investigação e escavação de um paleontólogo.
Cada área é ciosa do seu território, dos seus jargões e da sua tradição cultural. Defende-os de dentes cerrados, certa de que a sua razão é inabalável e de que os seus méritos pesam mais na balança do património.
Ora, na minha opinião, estas divergências derivam claramente da separação metodológica que caracteriza as várias áreas que destaquei. A aprendizagem é claramente separada, como rios independentes que raramente se cruzam. Um arqueólogo pouco estuda de biologia. Um biólogo dificilmente saberá o que quer que seja sobre a geologia do solo que defende. Um paleontólogo termina o curso praticamente sem uma aula prática que lhe permita desenvolver uma escavação metodologicamente correcta.
Há dias, Galopim de Carvalho, velho cruzado destas guerras, lamentava ao "Diário de Notícias": «Algumas pessoas da ciência não dão importância à geologia (...) Quando os ecologistas falam de ambiente, estão a pensar nas couves e nos morcegos, e não na rocha, nem no solo. Se não houvesse solo, não havia erva, nem borrego e não existindo tudo isso não haveria o ensopado de borrego!», brincou o professor jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. A brincar, o antigo director do Museu Nacional de História Natural tocou na ferida das lacunas curriculares.
A licenciatura de Biologia perdeu disciplinas como a mineralogia, a geologia ou a paleontologia. Percebe-se que um currículo não é infinito e que a tendência aponta no sentido do "mono-perito", mas, na especialização constante a que obrigamos os futuros licenciados, importa que se reconheça que também se perdem oportunidades.
Que importância terá isso?, pergunta o leitor. A interdisciplinariedade é fundamental na acção de conservação, respondo. Os responsáveis pelo Parque Nacional Peneda-Gerês lidam com património biológico, mas também geológico e arqueológico. Nas serras de Aire e Candeeiros, há valores mineralógicos que se fundem com património paleontológico, faunístico e arqueológico. Sem respeito pelas áreas tangenciais, a conservação é incompleta e injusta porque não apreende o todo.
Mas, tal qual as velhas colónias britânicas, os senhores biólogos, arqueólogos, paleontólogos e geólogos entretêm-se em guerrilhas estéreis, lutando por recursos finitos e invejando a atenção que os colegas merecem. No dia em que houver coordenação e respeito entre estas vontades, talvez não se construam com tanta facilidade barragens no Sabor, nem se destruam jazidas impunemente ou se danifiquem irremediavelmente impressões na rocha que testemunham a longa história do planeta.
Escrevo este "post" quase como uma resposta a um desafio que me foi lançado na sequência da nota escrita sobre Foz Côa. É para mim inaceitável que, na presente batalha pela preservação do Sabor, se derrubem os méritos da preservação arqueológica no rio Côa. Não vale tudo nestas guerras!
sábado, novembro 20, 2004
Pérola ruidosa
Na semana passada, o "Diário de Notícias" (DN) publicou uma notícia que começa a ser tradicional nesta altura do ano, divulgando os resultados das cartas de ruído de Almada e de Lisboa. As notícias sobre ruído urbano fazem hoje parte do menu sazonal de informação. E ainda bem! A directiva comunitária de ruído ambiental (2002/49/EC) estabelece precisamente como primeiros objectivos a monitorização regular do ruído e a informação cuidadosa do público. Só acompanhando a evolução do problema é que o cidadão se torna consciente da sua gravidade e, ao mesmo tempo, se tranquiliza com a investigação que tem vindo a ser produzida. Mais do que isso: só assim haverá um núcleo relevante de indivíduos que exijam ao poder político medidas concretas para reduzir o impacte de automóveis, aviões, comboios e outras fontes de poluição sonora.
O terceiro objectivo da directiva europeia estabelece a importância da colaboração das entidades locais. A monitorização terá de partir das autarquias que, coordenadas centralmente, deverão produzir uma carta nacional do ruído. Infelizmente, apenas Lisboa e Almada aderiram ao processo e dinamizaram as suas cartas regulares de ruído.
Ora a abordagem noticiosa do "Diário de Notícias" foi grotesca. A articulista podia ter questionado os municípios do Porto, de Coimbra, de Faro, de Aveiro ou do Funchal: afinal, as directivas comunitárias ainda não se impuseram naquelas paragens. Mas o texto reflecte esta barbaridade: Almada é a segunda cidade mais barulhenta do país!
Só há duas cartas de ruído publicadas regularmente em Portugal. Não há dados sobre poluição sonora em mais nenhuma cidade. Como pode alguém objectivamente considerar que Almada é a segunda cidade mais ruidosa se nenhuma outra se submete a escrutínio? E já agora, como se chega à conclusão de que a Almada é a segunda e não se menciona que Lisboa é a primeira?
Definitivamente, compensa muito mais não aderir ao programa. Sem dados, não há ruído registado, pelo que não há notícias desagradáveis. Proponho até a extensão do raciocínio a outro tipo de cadastros pedidos pela administração central. Que o distrito de Castelo Branco não entregue o seu levantamento de área ardida em 2004: evitará aparecer como o distrito mais flagelado pelos incêndios! O "Diário de Notícias" pegará no último da lista oficial e será esse o pior.
Que Alcochete não entregue o seu levantamento de rendimentos per capita. Evitará a incómoda distinção de concelho mais pobre do país no próximo relato noticioso do DN; que Bragança não se incomode em apresentar os registos de imigrantes ilegais detidos em bares de alterne: evitará ser distinguido pelo DN como a cidade com mais brasileiras ilegais por metro quadrado.
A lista de possibilidades é interminável. Quem sabe se não inauguramos uma nova era da sociedade de informação, em que cada município guarda para si os seus levantamentos e impede qualquer esforço de centralização de informação? Sem dados, os problemas desaparecem por encanto. Não há carta de ruído no Porto e em Coimbra, pelo que, pela lógica, não há ruído nestas duas cidades. Quod erat demonstrandum.
O texto integral da directiva comunítária sobre o ruído pode ser lido aqui.
O terceiro objectivo da directiva europeia estabelece a importância da colaboração das entidades locais. A monitorização terá de partir das autarquias que, coordenadas centralmente, deverão produzir uma carta nacional do ruído. Infelizmente, apenas Lisboa e Almada aderiram ao processo e dinamizaram as suas cartas regulares de ruído.
Ora a abordagem noticiosa do "Diário de Notícias" foi grotesca. A articulista podia ter questionado os municípios do Porto, de Coimbra, de Faro, de Aveiro ou do Funchal: afinal, as directivas comunitárias ainda não se impuseram naquelas paragens. Mas o texto reflecte esta barbaridade: Almada é a segunda cidade mais barulhenta do país!
Só há duas cartas de ruído publicadas regularmente em Portugal. Não há dados sobre poluição sonora em mais nenhuma cidade. Como pode alguém objectivamente considerar que Almada é a segunda cidade mais ruidosa se nenhuma outra se submete a escrutínio? E já agora, como se chega à conclusão de que a Almada é a segunda e não se menciona que Lisboa é a primeira?
Definitivamente, compensa muito mais não aderir ao programa. Sem dados, não há ruído registado, pelo que não há notícias desagradáveis. Proponho até a extensão do raciocínio a outro tipo de cadastros pedidos pela administração central. Que o distrito de Castelo Branco não entregue o seu levantamento de área ardida em 2004: evitará aparecer como o distrito mais flagelado pelos incêndios! O "Diário de Notícias" pegará no último da lista oficial e será esse o pior.
Que Alcochete não entregue o seu levantamento de rendimentos per capita. Evitará a incómoda distinção de concelho mais pobre do país no próximo relato noticioso do DN; que Bragança não se incomode em apresentar os registos de imigrantes ilegais detidos em bares de alterne: evitará ser distinguido pelo DN como a cidade com mais brasileiras ilegais por metro quadrado.
A lista de possibilidades é interminável. Quem sabe se não inauguramos uma nova era da sociedade de informação, em que cada município guarda para si os seus levantamentos e impede qualquer esforço de centralização de informação? Sem dados, os problemas desaparecem por encanto. Não há carta de ruído no Porto e em Coimbra, pelo que, pela lógica, não há ruído nestas duas cidades. Quod erat demonstrandum.
O texto integral da directiva comunítária sobre o ruído pode ser lido aqui.
sexta-feira, novembro 19, 2004
Novelo paleolítico
Um provérbio polaco aconselha que nunca se deve mergulhar duas vezes no mesmo rio. Diz a sabedoria eslava que, sabendo de antemão as desvantagens de uma experiência negativa, não faz sentido repeti-la. Seria curioso testar a sensibilidade polaca no caso das gravuras paleolíticas de Foz Côa.
O processo que levou à qualificação das gravuras rupestres e suspensão da barragem hidroeléctrica projectada pela EDP é sinuoso e ainda hoje polémico. Compromete transversalmente dois executivos – o último de Cavaco Silva e o primeiro de António Guterres. Têm ambos culpas no cartório e é a eles que devem ser assacadas responsabilidades pelo descontentamento crescente da população de Vila Nova de Foz Côa.
Este mês, cumprem-se dez anos sobre a validação científica do achado e a natural reivindicação de que as obras da barragem cessassem. Entre o final de 1994 e o ano de 1995, desenrolou-se em Portugal uma trama curiosa, que serviu inclusivamente de tubo de ensaio para uma obra sociológica notável de Maria Eduarda Gonçalves ("O Caso de Foz Côa", edições 70).
Errou primeiro o executivo de Cavaco Silva. E que erro! Demonstrou arrogância e falta de sensibilidade para o património cultural. Preferiu colocar em causa gratuitamente a credibilidade de peritos e deu a entender que se sentiria satisfeito se a datação das gravuras não correspondesse ao Paleolítico. Quando um membro do governo se referiu aos "rabiscos na parede", sintetizou na perfeição o que pensava o executivo daquele pequeno grão de areia na engrenagem. Nas rochas de xisto do vale do Côa, ficou gravada a imperícia ministerial para lidar com o património arqueológico.
Seguiu-se António Guterres, que herdara o conflito pelo lado mais confortável. Ele, Guterres, era o defensor da herança cultural contra a bárbara EDP e o governo composto por filisteus. Até tinha razão, mas ninguém pode contornar impunemente a lei básica da hermenêutica: és prisioneiro da palavra que proferires! E Guterres ficou refém das promessas irrealistas que deixou na Beira Alta. Prometeu um turismo cultural de 200 mil pessoas/ano. Prometeu três centenas de projectos de investimento privado, ao abrigo do programa Procôa, que melhorariam infra-estruturas e trariam sangue novo à região. Prometeu auto-estradas e hotéis. As expectativas geradas na região, que facilmente se constavam em 1996 e 1997, foram elevadíssimas. Nas margens do Côa, estava a galinha dos ovos de ouro.
Os anos passaram, e os projectos ficaram na gaveta. Segundo o "Jornal de Notícias", em dez anos apenas surgiram quatro candidaturas ao programa de modernização do comércio local. O número de visitantes do Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC) cifra-se em 20 mil/ano. As estradas e os hotéis ficaram em projecto e diz-se hoje, à boca cheia na vila, que melhor seria que a água do rio tivesse coberto as rochas.
Há cerca de um ano, escrevi uma notícia que dava conta do desconforto local com a previsível perda de fundos estruturais para construir o famoso museu do Côa. Se as obras não arrancassem até final de 2004, o financiamento teria de ser exclusivamente fornecido pelo governo português. Ou seja, o museu seria adiado para as calendas gregas.
Noto hoje com alguma ironia que as obras vão avançar no próximo mês, a escassos dias do fim do prazo. O Museu de Arte e Arqueologia estará pronto em 2007 e custará 15 milhões de euros, provenientes em grande parte do III Quadro Comunitário de Apoio. Aleluia!
O que devemos extrair da gestão deste caso para a sociedade portuguesa? Espero, em primeira instância, que prevaleça a conclusão sadia de que o turismo cultural de excelência não se cria com pós de perlimpimpim, num passe de mágica. Pelo contrário. A dinamização de projectos culturais é lenta e progressiva e exige investimento contínuo.
Quer se queira quer não, o caso do Côa fez também jurisprudência, marcou o desfecho de casos futuros. Daqui para a frente, haverá sempre opositores ferozes da protecção de sítios arqueológicos, que lembrarão o que não se fez em Foz Côa; e haverá sempre árduos defensores do património, que evocarão o que foi possível fazer graças à mobilização cívica e à valorização da herança cultural.
Rebato no entanto a ideia de que Vila Nova de Foz Côa só perdeu com o caso das gravuras:
- O emprego na barragem era limitado aos quatro anos de construção. O PAVC gerou emprego permanente na região. Escasso mas certo.
- As gravuras colocaram Foz Côa e a Beira Alta no mapa. Vinte mil visitantes/ano numa zona de interior profundo são uma conquista louvável.
- A investigação arqueológica ganhou adeptos e institucionalizou-se, ganhando acesso mais regular ao espectro mediático, graças a este caso.
- O curso do rio Côa não foi adulterado, mantendo alguma relação com o seu percurso prístino.
- E não esqueçamos o principal apesar da tristeza que invade esta vila beirã: preservámos o que não tem preço.
Uma coisa, porém, o caso do Côa não fez: não gerou a publicitada riqueza "Ovomaltine", tão abundante como instantânea. E o mais trágico é que todos embarcámos nessa falácia.
O processo que levou à qualificação das gravuras rupestres e suspensão da barragem hidroeléctrica projectada pela EDP é sinuoso e ainda hoje polémico. Compromete transversalmente dois executivos – o último de Cavaco Silva e o primeiro de António Guterres. Têm ambos culpas no cartório e é a eles que devem ser assacadas responsabilidades pelo descontentamento crescente da população de Vila Nova de Foz Côa.
Este mês, cumprem-se dez anos sobre a validação científica do achado e a natural reivindicação de que as obras da barragem cessassem. Entre o final de 1994 e o ano de 1995, desenrolou-se em Portugal uma trama curiosa, que serviu inclusivamente de tubo de ensaio para uma obra sociológica notável de Maria Eduarda Gonçalves ("O Caso de Foz Côa", edições 70).
Errou primeiro o executivo de Cavaco Silva. E que erro! Demonstrou arrogância e falta de sensibilidade para o património cultural. Preferiu colocar em causa gratuitamente a credibilidade de peritos e deu a entender que se sentiria satisfeito se a datação das gravuras não correspondesse ao Paleolítico. Quando um membro do governo se referiu aos "rabiscos na parede", sintetizou na perfeição o que pensava o executivo daquele pequeno grão de areia na engrenagem. Nas rochas de xisto do vale do Côa, ficou gravada a imperícia ministerial para lidar com o património arqueológico.
Seguiu-se António Guterres, que herdara o conflito pelo lado mais confortável. Ele, Guterres, era o defensor da herança cultural contra a bárbara EDP e o governo composto por filisteus. Até tinha razão, mas ninguém pode contornar impunemente a lei básica da hermenêutica: és prisioneiro da palavra que proferires! E Guterres ficou refém das promessas irrealistas que deixou na Beira Alta. Prometeu um turismo cultural de 200 mil pessoas/ano. Prometeu três centenas de projectos de investimento privado, ao abrigo do programa Procôa, que melhorariam infra-estruturas e trariam sangue novo à região. Prometeu auto-estradas e hotéis. As expectativas geradas na região, que facilmente se constavam em 1996 e 1997, foram elevadíssimas. Nas margens do Côa, estava a galinha dos ovos de ouro.
Os anos passaram, e os projectos ficaram na gaveta. Segundo o "Jornal de Notícias", em dez anos apenas surgiram quatro candidaturas ao programa de modernização do comércio local. O número de visitantes do Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC) cifra-se em 20 mil/ano. As estradas e os hotéis ficaram em projecto e diz-se hoje, à boca cheia na vila, que melhor seria que a água do rio tivesse coberto as rochas.
Há cerca de um ano, escrevi uma notícia que dava conta do desconforto local com a previsível perda de fundos estruturais para construir o famoso museu do Côa. Se as obras não arrancassem até final de 2004, o financiamento teria de ser exclusivamente fornecido pelo governo português. Ou seja, o museu seria adiado para as calendas gregas.
Noto hoje com alguma ironia que as obras vão avançar no próximo mês, a escassos dias do fim do prazo. O Museu de Arte e Arqueologia estará pronto em 2007 e custará 15 milhões de euros, provenientes em grande parte do III Quadro Comunitário de Apoio. Aleluia!
O que devemos extrair da gestão deste caso para a sociedade portuguesa? Espero, em primeira instância, que prevaleça a conclusão sadia de que o turismo cultural de excelência não se cria com pós de perlimpimpim, num passe de mágica. Pelo contrário. A dinamização de projectos culturais é lenta e progressiva e exige investimento contínuo.
Quer se queira quer não, o caso do Côa fez também jurisprudência, marcou o desfecho de casos futuros. Daqui para a frente, haverá sempre opositores ferozes da protecção de sítios arqueológicos, que lembrarão o que não se fez em Foz Côa; e haverá sempre árduos defensores do património, que evocarão o que foi possível fazer graças à mobilização cívica e à valorização da herança cultural.
Rebato no entanto a ideia de que Vila Nova de Foz Côa só perdeu com o caso das gravuras:
- O emprego na barragem era limitado aos quatro anos de construção. O PAVC gerou emprego permanente na região. Escasso mas certo.
- As gravuras colocaram Foz Côa e a Beira Alta no mapa. Vinte mil visitantes/ano numa zona de interior profundo são uma conquista louvável.
- A investigação arqueológica ganhou adeptos e institucionalizou-se, ganhando acesso mais regular ao espectro mediático, graças a este caso.
- O curso do rio Côa não foi adulterado, mantendo alguma relação com o seu percurso prístino.
- E não esqueçamos o principal apesar da tristeza que invade esta vila beirã: preservámos o que não tem preço.
Uma coisa, porém, o caso do Côa não fez: não gerou a publicitada riqueza "Ovomaltine", tão abundante como instantânea. E o mais trágico é que todos embarcámos nessa falácia.
quinta-feira, novembro 18, 2004
O partido enjeitado
O Partido Ecologista "Os Verdes" (PEV) é normalmente atacado em todas as frentes, como um soldado munido apenas de uma fisga num campo de batalha de artilharia pesada. Há cerca de dois meses, Paulo Portas atacou a legitimidade do PEV, acusando-o de ser apenas um artifício político para duplicar a expressão parlamentar do PCP; do PS chovem mais críticas do que elogios; o CDS-PP e o PSD ignoram constantemente esta voz ambiental; e o Bloco de Esquerda nem se lhe refere, sobretudo porque a sua agenda política oblitera o ambiente e o desenvolvimento sustentável. Definitivamente, o partido de Louçã não vive dos votos da comunidade ambientalista.
Do lado da sociedade civil, inclusivamente entre os responsáveis de organizações não governamentais, também não advém nenhum reconhecimento da representação política do PEV. Em ensaios recentes, Luísa Schmidt e Viriato Soromenho-Marques, dois dos mais prolíferos pensadores do movimento ambientalista português, consideraram que a fundação do PEV em 1982, à boleia de movimentos idênticos gerados na Europa, impediu a criação de uma força política desvinculada e verdadeiramente representante da sociedade civil. Não discordo totalmente, mas considero que, apesar disso, o PEV tem uma função importante na Assembleia da República e seria uma pena se, em futuras legislaturas, a deputada Heloísa Apolónia estivesse ausente.
O espaço de intervenção de cada partido nos debates parlamentares é forçosamente controlado. As munições são contadas criteriosamente e as áreas de contestação têm de ser seleccionadas para provocar o máximo impacte.
Acredito sinceramente que as secções de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de cada partido sejam genuínas. Acredito igualmente que tenham propostas a apresentar no hemiciclo. Mas sei, com indisfarçável clareza, que em nome da simplicidade partidária, são sistematicamente silenciadas.
E chegamos assim à discussão do mais recente Orçamento de Estado, iniciada na quinta-feira passada e que terá agora sessões de discussão da especialidade até 9 de Dezembro. Das seis forças políticas representadas na Assembleia, adivinhem quem tocou no tema do Ambiente durante a discussão do OE. Naturalmente, o PEV, através de uma interpelação de Heloísa Apolónia.
A deputada pronunciou-se sobre o recente plano de redução da dependência portuguesa face ao petróleo e apresentou a dúvida que preocupa verdadeiramente quem trabalha e investiga no sector das energias renováveis: qual o motivo pelo qual estas medidas fundamentais, já apontadas aliás no Plano Nacional de Alterações Climáticas, não têm qualquer tradução no OE para 2005? Que garantias dá o governo de que o programa vai começar se nem sequer contempla dotação orçamental para a sua aplicação? Com o passado de Álvaro Barreto, convenhamos que é legítimo acreditar que este programa não vinculado ao OE pode durar tão pouco como as últimas cinco mulheres de Henrique VIII.
Simultaneamente, a deputada do PEV disse também o que não podia deixar de ser dito: 259 milhões de euros para o Ambiente não chegam. O sector é sempre o parente infeliz, que recebe as moedas de cobre e vive ligado à máquina. E o Instituto da Conservação da Natureza "tem sido completamente estrangulado", disse ainda Heloísa Apolónia, lamentando mais um corte orçamental numa instituição para a qual, recordo, o ministro Nobre Guedes apresentou a solução absurda: fazer mais com menos dinheiro.
Nenhuma destas marcas discursivas será incluída nos compêndios de oratória parlamentar. Nenhuma passagem será imitada nos debates de retórica. Mas num hemiciclo de mais de duzentos deputados, na sessão mais importante do ano, mais ninguém se preocupou em discutir a causa ambiental, o ICN e as tropelias de Barreto.
É por isso que o PEV é e será fundamental. E não ficaria mal a algumas ONG reconhecê-lo.
Do lado da sociedade civil, inclusivamente entre os responsáveis de organizações não governamentais, também não advém nenhum reconhecimento da representação política do PEV. Em ensaios recentes, Luísa Schmidt e Viriato Soromenho-Marques, dois dos mais prolíferos pensadores do movimento ambientalista português, consideraram que a fundação do PEV em 1982, à boleia de movimentos idênticos gerados na Europa, impediu a criação de uma força política desvinculada e verdadeiramente representante da sociedade civil. Não discordo totalmente, mas considero que, apesar disso, o PEV tem uma função importante na Assembleia da República e seria uma pena se, em futuras legislaturas, a deputada Heloísa Apolónia estivesse ausente.
O espaço de intervenção de cada partido nos debates parlamentares é forçosamente controlado. As munições são contadas criteriosamente e as áreas de contestação têm de ser seleccionadas para provocar o máximo impacte.
Acredito sinceramente que as secções de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de cada partido sejam genuínas. Acredito igualmente que tenham propostas a apresentar no hemiciclo. Mas sei, com indisfarçável clareza, que em nome da simplicidade partidária, são sistematicamente silenciadas.
E chegamos assim à discussão do mais recente Orçamento de Estado, iniciada na quinta-feira passada e que terá agora sessões de discussão da especialidade até 9 de Dezembro. Das seis forças políticas representadas na Assembleia, adivinhem quem tocou no tema do Ambiente durante a discussão do OE. Naturalmente, o PEV, através de uma interpelação de Heloísa Apolónia.
A deputada pronunciou-se sobre o recente plano de redução da dependência portuguesa face ao petróleo e apresentou a dúvida que preocupa verdadeiramente quem trabalha e investiga no sector das energias renováveis: qual o motivo pelo qual estas medidas fundamentais, já apontadas aliás no Plano Nacional de Alterações Climáticas, não têm qualquer tradução no OE para 2005? Que garantias dá o governo de que o programa vai começar se nem sequer contempla dotação orçamental para a sua aplicação? Com o passado de Álvaro Barreto, convenhamos que é legítimo acreditar que este programa não vinculado ao OE pode durar tão pouco como as últimas cinco mulheres de Henrique VIII.
Simultaneamente, a deputada do PEV disse também o que não podia deixar de ser dito: 259 milhões de euros para o Ambiente não chegam. O sector é sempre o parente infeliz, que recebe as moedas de cobre e vive ligado à máquina. E o Instituto da Conservação da Natureza "tem sido completamente estrangulado", disse ainda Heloísa Apolónia, lamentando mais um corte orçamental numa instituição para a qual, recordo, o ministro Nobre Guedes apresentou a solução absurda: fazer mais com menos dinheiro.
Nenhuma destas marcas discursivas será incluída nos compêndios de oratória parlamentar. Nenhuma passagem será imitada nos debates de retórica. Mas num hemiciclo de mais de duzentos deputados, na sessão mais importante do ano, mais ninguém se preocupou em discutir a causa ambiental, o ICN e as tropelias de Barreto.
É por isso que o PEV é e será fundamental. E não ficaria mal a algumas ONG reconhecê-lo.
quarta-feira, novembro 17, 2004
Trincheiras governamentais
Uma das falácias mais comuns na apreciação de um governo é a percepção de que todos tocam no mesmo tom, sob a batuta de um maestro incontestado e obedecendo à mesma partitura. Nada mais falso. Winston Churchill temia os inimigos do partido adversário, mas mais ainda aqueles que, sob o amplo e difuso guarda-chuva do seu partido, não perdiam uma oportunidade de o apunhalar pelas costas. Um governo não é um exército disciplinado. É uma confederação de alianças momentâneas, de ódios incorrigíveis e de ambições desmedidas.
Surpreendido, caro leitor? Basta pensar nas rasteiras que os sucessivos ministros de Cavaco Silva pregaram aos colegas de gabinete. Ou no contentamento dos rivais de Fernando Gomes, quando o tristemente célebre ministro socialista da Administração Interna foi toureado pela população de Barrancos.
Os piores inimigos de cada ministro não são os respectivos ministros-sombra. Esses partilham uma percepção comum da generalidade da área de intervenção e operam sob os mesmos pressupostos. O pior inimigo do ministro da Economia é o ministro que tutela a Segurança Social. O pior rival do político que controla o sector dos Transportes é o ministro que tutela a Energia. O ministro da Agricultura é odiado pelo do Turismo. O do Desporto pega-se com a da Cultura. Cada área tem uma antítese, uma área concorrente, que luta pelos mesmos recursos sob outra hierarquia de prioridades. No fim desta cadeia, está o Ambiente. O ministro que a tutela, qualquer que ele seja, é minado pelos sectores tangentes: da Economia ao Turismo, da Agricultura, Pescas e Florestas aos Transportes. Há um forte lobby que visa impulsionar o ministro do Ambiente borda fora, o mais rapidamente possível e preferencialmente com um lastro que o leve, de supetão, até ao fundo.
Há semanas, Nobre Guedes admitiu que ninguém o escuta no Conselho de Ministros. Ou, por outras palavras, que ninguém quer saber da sua visão do mundo. Acredito piamente que a tarefa do ministro do Ambiente seja a mais solitária do leque político, quando todos os outros conspiram para esvaziar a sua área de influência. Mas sabendo desta animosidade inerente ao posto, pasmo quando leio que Nobre Guedes foi ontem a Canas de Senhorim conversar com a população desesperada, que quis impedir a saída de mais urânio da Empresa Nacional de Urânio.
As regras de ouro em sobrevivência política podem ser enunciadas da seguinte forma: "Não abras nenhuma pasta que não tenhas de abrir. Não destapes nenhum assunto sem seres obrigado. Não te envolvas em polémicas que não sejam indispensáveis!" A isto, Nobre Guedes respondeu com uma entrada olímpica em cena, mergulhando de cabeça numa luta que não era sua. O que diabo foi o ministro fazer a Canas de Senhorim, negociando compromissos com associações que querem que o proveito da venda de urânio reverta para intervenções na região? Não tem a pasta do Ambiente suficientes causas que evitem mais uma imolação pública do ministro? Não havia ninguém do vasto elenco de secretários de estado e chefes de gabinete que pudesse ser despachado para a Urgeiriça, sem danos de maior?
Há semanas, Álvaro Barreto, em entrevista radiofónica, puxou as orelhas a Nobre Guedes, acusando-o de ter divulgado a despropósito o relatório sobre o incêndio da refinaria da Galp. Como se sentirá agora o ministro das Actividades Económicas, depois desta ingerência ambiental na sua área? Haverá nova reprimenda? Não gosto muito de fazer previsões, mas atrevo-me a dizer que Luís Nobre Guedes tornou-se a partir de ontem uma espécie em vias de extinção. E a ele nem a convenção CITES vai valer.
Surpreendido, caro leitor? Basta pensar nas rasteiras que os sucessivos ministros de Cavaco Silva pregaram aos colegas de gabinete. Ou no contentamento dos rivais de Fernando Gomes, quando o tristemente célebre ministro socialista da Administração Interna foi toureado pela população de Barrancos.
Os piores inimigos de cada ministro não são os respectivos ministros-sombra. Esses partilham uma percepção comum da generalidade da área de intervenção e operam sob os mesmos pressupostos. O pior inimigo do ministro da Economia é o ministro que tutela a Segurança Social. O pior rival do político que controla o sector dos Transportes é o ministro que tutela a Energia. O ministro da Agricultura é odiado pelo do Turismo. O do Desporto pega-se com a da Cultura. Cada área tem uma antítese, uma área concorrente, que luta pelos mesmos recursos sob outra hierarquia de prioridades. No fim desta cadeia, está o Ambiente. O ministro que a tutela, qualquer que ele seja, é minado pelos sectores tangentes: da Economia ao Turismo, da Agricultura, Pescas e Florestas aos Transportes. Há um forte lobby que visa impulsionar o ministro do Ambiente borda fora, o mais rapidamente possível e preferencialmente com um lastro que o leve, de supetão, até ao fundo.
Há semanas, Nobre Guedes admitiu que ninguém o escuta no Conselho de Ministros. Ou, por outras palavras, que ninguém quer saber da sua visão do mundo. Acredito piamente que a tarefa do ministro do Ambiente seja a mais solitária do leque político, quando todos os outros conspiram para esvaziar a sua área de influência. Mas sabendo desta animosidade inerente ao posto, pasmo quando leio que Nobre Guedes foi ontem a Canas de Senhorim conversar com a população desesperada, que quis impedir a saída de mais urânio da Empresa Nacional de Urânio.
As regras de ouro em sobrevivência política podem ser enunciadas da seguinte forma: "Não abras nenhuma pasta que não tenhas de abrir. Não destapes nenhum assunto sem seres obrigado. Não te envolvas em polémicas que não sejam indispensáveis!" A isto, Nobre Guedes respondeu com uma entrada olímpica em cena, mergulhando de cabeça numa luta que não era sua. O que diabo foi o ministro fazer a Canas de Senhorim, negociando compromissos com associações que querem que o proveito da venda de urânio reverta para intervenções na região? Não tem a pasta do Ambiente suficientes causas que evitem mais uma imolação pública do ministro? Não havia ninguém do vasto elenco de secretários de estado e chefes de gabinete que pudesse ser despachado para a Urgeiriça, sem danos de maior?
Há semanas, Álvaro Barreto, em entrevista radiofónica, puxou as orelhas a Nobre Guedes, acusando-o de ter divulgado a despropósito o relatório sobre o incêndio da refinaria da Galp. Como se sentirá agora o ministro das Actividades Económicas, depois desta ingerência ambiental na sua área? Haverá nova reprimenda? Não gosto muito de fazer previsões, mas atrevo-me a dizer que Luís Nobre Guedes tornou-se a partir de ontem uma espécie em vias de extinção. E a ele nem a convenção CITES vai valer.
O desígnio do mar
Irritam-me solenemente os desígnios nacionais, as vocações
lusitanas e as recordações distorcidas da glória de outros
tempos. Ciclicamente, temos desígnios nacionais inseridos no
discurso político e rapidamente esquecidos. É a nossa sina,
diria, para recuperar outro estigma discursivo.
Cumpriram-se agora dois anos sobre o desastre ecológico
provocado pelo naufrágio do Prestige, mas a efeméride passou
em claro, discretamente varrida para baixo do tapete da
actualidade sem memória.
Ironicamente, esta foi a semana que o ministro da Defesa e dos
Assuntos do Mar escolheu para anunciar a aplicação prática do
nosso desígnio oceânico. E fê-lo com a tradicional mestria no
domínio da arte comunicacional, acertando timings com jornais
e televisões.
Recapitulemos os passos da última semana, até porque
importa arquivar estas lições no manual do bom político.
Fase 1: O «Expresso», jornal de seriedade inquestionável,
avançou com uma manchete anunciando catastroficamente o
fim da soberania nacional sobre a nossa zona costeira. A União
Europeia absorverá a gestão de todos os recursos marinhos,
pelo que o futuro das nossas pescas será sombrio – escreveu
o jornal.
Fase 2: A Comissão Estratégica dos Oceanos anunciou a sua
dissolução futura, depois de entregue o caderno de
recomendações e sobretudo perante a ausência de medidas
políticas concretas.
Fase 3: Depois da tempestade, a bonança. Saído das brumas,
o ministro Paulo Portas anunciou um pacote de medidas
estratégicas, que reconciliará os portugueses com o seu
desígnio nacional e com a sua vocação marinheira. Foi
fotografado de boné, de semblante preocupado, enquanto
mirava nostalgicamente a água. Marcou-se um Conselho de
Ministros a bordo da "Sagres" e anunciaram-se protocolos
transversais, imagem dialéctica de marca dos novos tempos.
Organizou-se ainda uma lista de "Novos Heróis do Mar",
condecorados em velocidade supersónica e sob critérios nebulosos.
E pronto! Está feito! Leiam-se os destaques que, por exemplo, o
«Jornal de Notícias» redigiu hoje sobre a semana do mar:
Portugal deve ser nação oceânica! Há que aprofundar o
conhecimento! Desenvolvimento mais sustentável! Dar
visibilidade ao país no exterior! Criar um conselho
especializado.
O vazio das propostas é evidente. Uma mão cheia de coisa
nenhuma é o resultado do espalhafato que, arrisco prevê-lo,
extinguir-se-á amanhã ou depois sem qualquer resultado
prático. O governo dormirá de consciência tranquila; os
cidadãos extrairão a ideia imprecisa de que há um programa de
acção para recuperar recursos e oportunidades das actividades
marítimas. Os jornalistas partirão para outras não-histórias com
a mesma desenvoltura.
E entretanto, um país com 1,7 milhões de quadrados de área
marítima, equivalentes a 18 vezes a área terrestre, que possui
mais de 20 mil pescadores e 924 quilómetros de costa
estagna, sem ideias, como um barco-fantasma.
Deixo-vos por isso um rol de perguntas tristemente sem
resposta:
1) Alguém poderá garantir, dois anos depois, que o naufrágio
do «Prestige» não teria hoje o terrível impacte de 2002? A
vigilância melhorou? A capacidade de patrulha foi
incrementada? A capacidade de intervenção em derrames de
crude agilizou?
2) Não será absurdo que durante a semana do mar, em que
tanto se falou de acção e intervenção, ninguém tenha dedicado
uma linha que fosse ao Parque Marinho da Arrábida Luiz
Saldanha, única área protegida na zona costeira continental e
alvo diário de atentados ecológicos?
Talvez seja esse o desígnio nacional: esquecer o que está à
mão e partir para aventuras desmioladas, mistos de coragem
poética e inconsciência prática. Temos por isso o mar que merecemos.
lusitanas e as recordações distorcidas da glória de outros
tempos. Ciclicamente, temos desígnios nacionais inseridos no
discurso político e rapidamente esquecidos. É a nossa sina,
diria, para recuperar outro estigma discursivo.
Cumpriram-se agora dois anos sobre o desastre ecológico
provocado pelo naufrágio do Prestige, mas a efeméride passou
em claro, discretamente varrida para baixo do tapete da
actualidade sem memória.
Ironicamente, esta foi a semana que o ministro da Defesa e dos
Assuntos do Mar escolheu para anunciar a aplicação prática do
nosso desígnio oceânico. E fê-lo com a tradicional mestria no
domínio da arte comunicacional, acertando timings com jornais
e televisões.
Recapitulemos os passos da última semana, até porque
importa arquivar estas lições no manual do bom político.
Fase 1: O «Expresso», jornal de seriedade inquestionável,
avançou com uma manchete anunciando catastroficamente o
fim da soberania nacional sobre a nossa zona costeira. A União
Europeia absorverá a gestão de todos os recursos marinhos,
pelo que o futuro das nossas pescas será sombrio – escreveu
o jornal.
Fase 2: A Comissão Estratégica dos Oceanos anunciou a sua
dissolução futura, depois de entregue o caderno de
recomendações e sobretudo perante a ausência de medidas
políticas concretas.
Fase 3: Depois da tempestade, a bonança. Saído das brumas,
o ministro Paulo Portas anunciou um pacote de medidas
estratégicas, que reconciliará os portugueses com o seu
desígnio nacional e com a sua vocação marinheira. Foi
fotografado de boné, de semblante preocupado, enquanto
mirava nostalgicamente a água. Marcou-se um Conselho de
Ministros a bordo da "Sagres" e anunciaram-se protocolos
transversais, imagem dialéctica de marca dos novos tempos.
Organizou-se ainda uma lista de "Novos Heróis do Mar",
condecorados em velocidade supersónica e sob critérios nebulosos.
E pronto! Está feito! Leiam-se os destaques que, por exemplo, o
«Jornal de Notícias» redigiu hoje sobre a semana do mar:
Portugal deve ser nação oceânica! Há que aprofundar o
conhecimento! Desenvolvimento mais sustentável! Dar
visibilidade ao país no exterior! Criar um conselho
especializado.
O vazio das propostas é evidente. Uma mão cheia de coisa
nenhuma é o resultado do espalhafato que, arrisco prevê-lo,
extinguir-se-á amanhã ou depois sem qualquer resultado
prático. O governo dormirá de consciência tranquila; os
cidadãos extrairão a ideia imprecisa de que há um programa de
acção para recuperar recursos e oportunidades das actividades
marítimas. Os jornalistas partirão para outras não-histórias com
a mesma desenvoltura.
E entretanto, um país com 1,7 milhões de quadrados de área
marítima, equivalentes a 18 vezes a área terrestre, que possui
mais de 20 mil pescadores e 924 quilómetros de costa
estagna, sem ideias, como um barco-fantasma.
Deixo-vos por isso um rol de perguntas tristemente sem
resposta:
1) Alguém poderá garantir, dois anos depois, que o naufrágio
do «Prestige» não teria hoje o terrível impacte de 2002? A
vigilância melhorou? A capacidade de patrulha foi
incrementada? A capacidade de intervenção em derrames de
crude agilizou?
2) Não será absurdo que durante a semana do mar, em que
tanto se falou de acção e intervenção, ninguém tenha dedicado
uma linha que fosse ao Parque Marinho da Arrábida Luiz
Saldanha, única área protegida na zona costeira continental e
alvo diário de atentados ecológicos?
Talvez seja esse o desígnio nacional: esquecer o que está à
mão e partir para aventuras desmioladas, mistos de coragem
poética e inconsciência prática. Temos por isso o mar que merecemos.
quarta-feira, novembro 10, 2004
As pintas do leopardo
E tu serás o leopardo. Serás ardiloso nas tuas emboscadas. Serás obstinado na tua acção. Serás matreiro e teimoso. Não abdicarás das tuas ideias mesmo que elas sejam nocivas para a tua espécie. Para que todos te reconheçam, terás pintas no corpo, que nunca se perderão.
Ocorreu-me esta fábula infantil enquanto relia o documento produzido pelo Ministério do Trabalho e das Actividades Económicas (MAET) para reduzir a dependência portuguesa face ao petróleo. Um ponto continua a intrigar-me: a criação da rede de postos de combustível que Álvaro Barreto considerou indispensável para o sucesso da operação de fomento de combustíveis alternativos ao petróleo.
Arthur Conan Doyle sempre disse que quando estiver excluído o impossível, tudo o resto, mesmo o mais improvável, deve ser verdadeiro. Todavia, na minha primeira leitura, confesso que interpretei o documento por simpatia. Associei a expressão "alternativos ao petróleo" como biocombustível e nunca me passou pela cabeça que poderia haver uma solução mais óbvia.
Pergunto: e se o MAET tiver em mente uma aposta considerável no gás natural enquanto combustível? A tese faz sentido, sobretudo para um ministro com o perfil de Álvaro Barreto. Aproveitando os valores actuais absurdos do barril de petróleo, Barreto podia promover uma aposta num novo combustível fóssil, uma nova matéria-prima que obriga Portugal a depender do estrangeiro e, ainda por cima, constitui também uma fonte finita. Há naturalmente vantagens na utilização do gás natural. É mais limpo do que os derivados de petróleo e permite diversificar as fontes energéticas, impedindo que toda a indústria automóvel dependa do mesmo recurso. Mas não diminui as emissões de CO2, como o fariam os biocombustíveis, pelo que não pode ser considerado uma ferramenta para cumprir as exigências do Protocolo de Quioto.
Como chego a esta conclusão? Se Barreto efectivamente quisesse apostar nos biocombustíveis (não como um balão de ensaio mas como uma fonte sustentada que pudesse equipar uma boa parte do futuro parque automóvel nacional), a rede actual de abastecimento de combustíveis seria suficiente. A experiência noutras paragens diz-nos que são as próprias concessionárias que se encarregam da mistura dos biocombustíveis e a incorporam nas suas estações, como mais um serviço disponibilizado. Os veículos actuais podem inclusivamente usar misturas de biocombustíveis com gasolina ou gasóleo em determinadas percentagens sem necessidade de alterar os motores. O único obstáculo é o facto de a produção nacional de biocombustíveis ainda ser insuficiente para dar conta do recado – e aí entraria um plano governamental de incentivo.
Com o gás, o caso muda de figura. O abastecimento com gás natural exige uma estrutura independente, alheia às petrolíferas que concessionam as estações. É uma área de negócio totalmente independente, que exige a extensão das infra-estruturas de distribuição de gás natural a todo o país, de forma a incitar o consumidor a adquirir um carro abastecido a gás natural sabendo que ele poderá ser reabastecido em todo o território. Essa rede ainda é limitada e, mesmo a pequena parte que já foi desenvolvida, obrigou os contribuintes a custear um investimento grotesco.
Assalta-me agora a dúvida? Que combustível alternativo tinha Barreto em mente? Será que o leopardo afinal não perdeu as pintas?
Ocorreu-me esta fábula infantil enquanto relia o documento produzido pelo Ministério do Trabalho e das Actividades Económicas (MAET) para reduzir a dependência portuguesa face ao petróleo. Um ponto continua a intrigar-me: a criação da rede de postos de combustível que Álvaro Barreto considerou indispensável para o sucesso da operação de fomento de combustíveis alternativos ao petróleo.
Arthur Conan Doyle sempre disse que quando estiver excluído o impossível, tudo o resto, mesmo o mais improvável, deve ser verdadeiro. Todavia, na minha primeira leitura, confesso que interpretei o documento por simpatia. Associei a expressão "alternativos ao petróleo" como biocombustível e nunca me passou pela cabeça que poderia haver uma solução mais óbvia.
Pergunto: e se o MAET tiver em mente uma aposta considerável no gás natural enquanto combustível? A tese faz sentido, sobretudo para um ministro com o perfil de Álvaro Barreto. Aproveitando os valores actuais absurdos do barril de petróleo, Barreto podia promover uma aposta num novo combustível fóssil, uma nova matéria-prima que obriga Portugal a depender do estrangeiro e, ainda por cima, constitui também uma fonte finita. Há naturalmente vantagens na utilização do gás natural. É mais limpo do que os derivados de petróleo e permite diversificar as fontes energéticas, impedindo que toda a indústria automóvel dependa do mesmo recurso. Mas não diminui as emissões de CO2, como o fariam os biocombustíveis, pelo que não pode ser considerado uma ferramenta para cumprir as exigências do Protocolo de Quioto.
Como chego a esta conclusão? Se Barreto efectivamente quisesse apostar nos biocombustíveis (não como um balão de ensaio mas como uma fonte sustentada que pudesse equipar uma boa parte do futuro parque automóvel nacional), a rede actual de abastecimento de combustíveis seria suficiente. A experiência noutras paragens diz-nos que são as próprias concessionárias que se encarregam da mistura dos biocombustíveis e a incorporam nas suas estações, como mais um serviço disponibilizado. Os veículos actuais podem inclusivamente usar misturas de biocombustíveis com gasolina ou gasóleo em determinadas percentagens sem necessidade de alterar os motores. O único obstáculo é o facto de a produção nacional de biocombustíveis ainda ser insuficiente para dar conta do recado – e aí entraria um plano governamental de incentivo.
Com o gás, o caso muda de figura. O abastecimento com gás natural exige uma estrutura independente, alheia às petrolíferas que concessionam as estações. É uma área de negócio totalmente independente, que exige a extensão das infra-estruturas de distribuição de gás natural a todo o país, de forma a incitar o consumidor a adquirir um carro abastecido a gás natural sabendo que ele poderá ser reabastecido em todo o território. Essa rede ainda é limitada e, mesmo a pequena parte que já foi desenvolvida, obrigou os contribuintes a custear um investimento grotesco.
Assalta-me agora a dúvida? Que combustível alternativo tinha Barreto em mente? Será que o leopardo afinal não perdeu as pintas?
domingo, novembro 07, 2004
Inovações, Reciclagens e Banha da Cobra
As resoluções do Plano Nacional de Alterações Climáticas tardaram, mas chegaram. Já lá vai o tempo em que os alertas de ambientalistas e os pareceres do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável caíam em saco roto. A prova disso é, convenhamos, a conversão do céptico Álvaro Barreto. Descrente inveterado no passado, Barreto fala hoje com descontracção do efeito de estufa, das energias renováveis, da dependência energética e, virtude das virtudes, dos malefícios do petróleo.
O recente programa de acção para reduzir a dependência portuguese face ao petróleo (cujo link para o texto integral deixei no último post) tem claramente medidas positivas, verdadeiramente inovadoras em Portugal. Tem igualmente medidas antigas com novas roupagens, determinações de outros governos que nunca chegaram a ser implementadas. Tem por fim medidas vendidas como banha da cobra, falsas ou vazias de resultados potenciais. Proponho uma interpretação do quadro proposto de regulamentações, de acordo com esta grelha.
Inovações:
- Afectação do Imposto sobre Produtos Petrolíferos aos biocombustíveis, permitindo que estes não sejam taxados e, como tal, que se tornem realmente competitivos para o utilizador.
- Dinamização de uma rede de postos de combustível alternativo, condição indispensável para que o primeiro tópico venha a ter continuidade.
- Apoio concreto à investigação e desenvolvimento do hidrogénio como fonte de energia.
- Estímulo indirecto ao recurso a transportes públicos, através da penalização dos veículos privados ligeiros: em novas multas de velocidade e em tarifas (portagens) de acesso ao perímetro urbano.
Reciclagens:
Há claramente um conjunto de normas que já foram tentadas e nunca produziram resultados palpáveis. Estas são as medidas que, pela minha leitura, deverão ser atentamente monitorizadas. Desta vez, virão para ficar?
- Facilidades ao licenciamento de centrais eólicas, bem como incentivos a maiores potências contratadas.
- Introdução de uma taxa de carbono (entendendo-a como um incentivo à redução do consumo de electricidade), que onere os electrodomésticos menos eficientes.
- Estabelecimento de contratos-programa, de forma a que os edifícios do Estado dêem o exemplo às empresas e aos particulares, recorrendo a estratégias de maior eficiência energética (painéis solares para aquecimento de água; eficiência de utilização eléctrica...). Os melhores resultados serão premiados.
- Liberalização do mercado de electricidade e do gás, facilitando a entrada de parceiros competitivos
- Subsidiação do abate aos veículos em fim de vida (já foi tentada, mas o parque automóvel ainda é antigo e carece de substituição. Veremos o alcance prático desta inovação).
- Aceleração do licenciamento de mini-hídricas e de estações de aproveitamento da energia das marés (onde estão elas até agora? Num post futuro, falarei sobre a péssima experiência instalada na ilha do Pico).
Banha da cobra: O programa é ambicioso, é inegável. Mas há claramente medidas que despertam um sorriso.
- Aplicação de toda e qualquer verba decorrente das taxas de circulação automóvel privada ao melhoramento dos transportes públicos (não foi este Governo que anunciou que se gasta demasiado nos transportes públicos de Lisboa? Não foi este governo que avançou com um túnel no Marquês de Pombal que irá impulsionar a entrada de mais alguns milhares de veículos na cidade? Não foi este governo que obrigou a CP a um funcionamento mais racional, abdicando de trajectos e horários pouco económicos? Não foi por fim este governo que lançou a Carris para a pior crise do seu historial? É difícil acreditar que será o mesmo governo que aplicará receitas na modernização e flexibilização dos transportes públicos.)
- Fomento dos parques eólicos (o modelo de aproveitamento de energia eólica continua a esbarrar na ausência de incentivos fiscais para os promotores. Fala-se em facilidade de licenciamento ou de contratação de potência, mas o documento é omisso quanto a benefícios fiscais da actividade. Estes, sim, são o motor de desenvolvimento.
- Estímulo à utilização de energias renováveis na indústria através do Programa de Incentivos à Economia (Prime). Há duas formas de abordar o problema, e esta é a incorrecta. A indústria portuguesa é, lamento reconhecê-lo, indolente e incumpridora. Exige sanções e não tanto estímulos. Por outras palavras, o PRIME poderá contribuir alguma coisa, mas nunca terá sucesso se não for complementado com um forte programa de sanções para quem polui e para quem demonstra desrespeito pela eficiência energética.
- Benefícios fiscais na aquisição de equipamentos para energias renováveis. Eles já existem, mas são escassos e continuarão a sê-lo de acordo com o OE de 2005 (limite máximo de cerca de 730 euros/anos). Pior: anacronicamente, existe legislação que impede o seu recurso a todos os agregados que tiverem contraído uma dívida por aquisição de habitação. Ora, como 75% das famílias portuguesas têm empréstimos de habitação em curso, a medida é vazia e falaciosa).
- Agravamento dos custos de aquisição aos veículos todo-terreno, claramente os mais poluidores. Cá estarei para ver a aplicação desta regulamentação! Sobretudo, no ano em que algumas marcas do sector anunciaram o melhor resultado comercial de sempre!...
- Dedutibilidade fiscal das verbas gastas em títulos de transporte público (é irónico, confesso, num ano em que as tarifas do metropolitano de Lisboa aumentaram três vezes e em que a Carris já ameaça com novo aumento que seja proposta esta medida. Quanto gastámos este ano a mais em transportes públicos? Duvido que compense o que podemos amortizar no IRS de 2005).
O programa é, todavia, extremamente positivo e até corajoso, na medida em que avança com reformas há muito esperadas. Monitorizarei a sua aplicação e marco desde já encontro para daqui a seis meses fazermos o balanço do seu sucesso concreto.
O recente programa de acção para reduzir a dependência portuguese face ao petróleo (cujo link para o texto integral deixei no último post) tem claramente medidas positivas, verdadeiramente inovadoras em Portugal. Tem igualmente medidas antigas com novas roupagens, determinações de outros governos que nunca chegaram a ser implementadas. Tem por fim medidas vendidas como banha da cobra, falsas ou vazias de resultados potenciais. Proponho uma interpretação do quadro proposto de regulamentações, de acordo com esta grelha.
Inovações:
- Afectação do Imposto sobre Produtos Petrolíferos aos biocombustíveis, permitindo que estes não sejam taxados e, como tal, que se tornem realmente competitivos para o utilizador.
- Dinamização de uma rede de postos de combustível alternativo, condição indispensável para que o primeiro tópico venha a ter continuidade.
- Apoio concreto à investigação e desenvolvimento do hidrogénio como fonte de energia.
- Estímulo indirecto ao recurso a transportes públicos, através da penalização dos veículos privados ligeiros: em novas multas de velocidade e em tarifas (portagens) de acesso ao perímetro urbano.
Reciclagens:
Há claramente um conjunto de normas que já foram tentadas e nunca produziram resultados palpáveis. Estas são as medidas que, pela minha leitura, deverão ser atentamente monitorizadas. Desta vez, virão para ficar?
- Facilidades ao licenciamento de centrais eólicas, bem como incentivos a maiores potências contratadas.
- Introdução de uma taxa de carbono (entendendo-a como um incentivo à redução do consumo de electricidade), que onere os electrodomésticos menos eficientes.
- Estabelecimento de contratos-programa, de forma a que os edifícios do Estado dêem o exemplo às empresas e aos particulares, recorrendo a estratégias de maior eficiência energética (painéis solares para aquecimento de água; eficiência de utilização eléctrica...). Os melhores resultados serão premiados.
- Liberalização do mercado de electricidade e do gás, facilitando a entrada de parceiros competitivos
- Subsidiação do abate aos veículos em fim de vida (já foi tentada, mas o parque automóvel ainda é antigo e carece de substituição. Veremos o alcance prático desta inovação).
- Aceleração do licenciamento de mini-hídricas e de estações de aproveitamento da energia das marés (onde estão elas até agora? Num post futuro, falarei sobre a péssima experiência instalada na ilha do Pico).
Banha da cobra: O programa é ambicioso, é inegável. Mas há claramente medidas que despertam um sorriso.
- Aplicação de toda e qualquer verba decorrente das taxas de circulação automóvel privada ao melhoramento dos transportes públicos (não foi este Governo que anunciou que se gasta demasiado nos transportes públicos de Lisboa? Não foi este governo que avançou com um túnel no Marquês de Pombal que irá impulsionar a entrada de mais alguns milhares de veículos na cidade? Não foi este governo que obrigou a CP a um funcionamento mais racional, abdicando de trajectos e horários pouco económicos? Não foi por fim este governo que lançou a Carris para a pior crise do seu historial? É difícil acreditar que será o mesmo governo que aplicará receitas na modernização e flexibilização dos transportes públicos.)
- Fomento dos parques eólicos (o modelo de aproveitamento de energia eólica continua a esbarrar na ausência de incentivos fiscais para os promotores. Fala-se em facilidade de licenciamento ou de contratação de potência, mas o documento é omisso quanto a benefícios fiscais da actividade. Estes, sim, são o motor de desenvolvimento.
- Estímulo à utilização de energias renováveis na indústria através do Programa de Incentivos à Economia (Prime). Há duas formas de abordar o problema, e esta é a incorrecta. A indústria portuguesa é, lamento reconhecê-lo, indolente e incumpridora. Exige sanções e não tanto estímulos. Por outras palavras, o PRIME poderá contribuir alguma coisa, mas nunca terá sucesso se não for complementado com um forte programa de sanções para quem polui e para quem demonstra desrespeito pela eficiência energética.
- Benefícios fiscais na aquisição de equipamentos para energias renováveis. Eles já existem, mas são escassos e continuarão a sê-lo de acordo com o OE de 2005 (limite máximo de cerca de 730 euros/anos). Pior: anacronicamente, existe legislação que impede o seu recurso a todos os agregados que tiverem contraído uma dívida por aquisição de habitação. Ora, como 75% das famílias portuguesas têm empréstimos de habitação em curso, a medida é vazia e falaciosa).
- Agravamento dos custos de aquisição aos veículos todo-terreno, claramente os mais poluidores. Cá estarei para ver a aplicação desta regulamentação! Sobretudo, no ano em que algumas marcas do sector anunciaram o melhor resultado comercial de sempre!...
- Dedutibilidade fiscal das verbas gastas em títulos de transporte público (é irónico, confesso, num ano em que as tarifas do metropolitano de Lisboa aumentaram três vezes e em que a Carris já ameaça com novo aumento que seja proposta esta medida. Quanto gastámos este ano a mais em transportes públicos? Duvido que compense o que podemos amortizar no IRS de 2005).
O programa é, todavia, extremamente positivo e até corajoso, na medida em que avança com reformas há muito esperadas. Monitorizarei a sua aplicação e marco desde já encontro para daqui a seis meses fazermos o balanço do seu sucesso concreto.
Coincidências noticiosas
Há tempos, conheci um arqueólogo que se recusava a ler jornais. Dizia que a superficialidade o irritava e o privava de uma visão coerente e continuada de qualquer problemática. Lembrei-me destas palavras no decurso da semana que agora findou, mal ouvi o anúncio público das 96 medidas propostas por Álvaro Barreto para mitigar a terrível dependência portuguesa face ao petróleo.
Sabia o leitor que três dos principais jornais portugueses (o "Diário de Notícias", o "Público" e o "Jornal de Notícias") seleccionaram precisamente a mesma medida: o bloqueio das estradas citadinas aos veículos ligeiros privados? Em 96 medidas, editores e directores dos três jornais consideraram que esta era a medida mais importante e que portanto recolhia o maior número de valores-notícia. Era actual. Tinha implicações na vida de um grande número de pessoas. Era controversa. E era inédita. Estranha sintonia de espírito entre jornais com tão distintas orientações! Não contesto que a medida é relevante, embora rebata o seu ineditismo, uma vez que ela tinha sido anunciada pela candidatura de Pedro Santana Lopes à Câmara Municipal de Lisboa e há muito que se fala na experiência de Londres com estas portagens. Mas confesso que me surpreende a unanimidade. Terá sido induzida? Era esta medida que o proponente desejava realçar? Ou houve apenas um processo de sintonia de mente entre a Avenida da Liberdade, a Rua Viriato e a Rua Gonçalo Cristóvão, no Porto?
Naturalmente, perante esta unanimidade, a sociedade civil cuidou que o plano Barreto se limitava a impor limites económicos à entrada de veículos particulares em Lisboa e no Porto. O público ficou sem conhecer o restante pacote de medidas embora fixe que eram 96 (ai a importância dos números!). As medidas suplementares foram remetidas para o fundo de página ou, pior, foram obliteradas porque o espaço de um jornal não é infinito.
Cumprindo as normas de serviço público, deixo aqui o link para o programa completo anunciado pelo Ministério das Actividades Económicas e do Trabalho (em formato PDF). Convenhamos que discutir um pacote de medidas tão relevantes, como já vi discutir, sem conhecer todo o cardápio é no mínimo absurdo. Voltarei ao tema ainda hoje.
Para ler o programa de medidas para reduzir a dependência face ao petróleo, pulse aqui.
Sabia o leitor que três dos principais jornais portugueses (o "Diário de Notícias", o "Público" e o "Jornal de Notícias") seleccionaram precisamente a mesma medida: o bloqueio das estradas citadinas aos veículos ligeiros privados? Em 96 medidas, editores e directores dos três jornais consideraram que esta era a medida mais importante e que portanto recolhia o maior número de valores-notícia. Era actual. Tinha implicações na vida de um grande número de pessoas. Era controversa. E era inédita. Estranha sintonia de espírito entre jornais com tão distintas orientações! Não contesto que a medida é relevante, embora rebata o seu ineditismo, uma vez que ela tinha sido anunciada pela candidatura de Pedro Santana Lopes à Câmara Municipal de Lisboa e há muito que se fala na experiência de Londres com estas portagens. Mas confesso que me surpreende a unanimidade. Terá sido induzida? Era esta medida que o proponente desejava realçar? Ou houve apenas um processo de sintonia de mente entre a Avenida da Liberdade, a Rua Viriato e a Rua Gonçalo Cristóvão, no Porto?
Naturalmente, perante esta unanimidade, a sociedade civil cuidou que o plano Barreto se limitava a impor limites económicos à entrada de veículos particulares em Lisboa e no Porto. O público ficou sem conhecer o restante pacote de medidas embora fixe que eram 96 (ai a importância dos números!). As medidas suplementares foram remetidas para o fundo de página ou, pior, foram obliteradas porque o espaço de um jornal não é infinito.
Cumprindo as normas de serviço público, deixo aqui o link para o programa completo anunciado pelo Ministério das Actividades Económicas e do Trabalho (em formato PDF). Convenhamos que discutir um pacote de medidas tão relevantes, como já vi discutir, sem conhecer todo o cardápio é no mínimo absurdo. Voltarei ao tema ainda hoje.
Para ler o programa de medidas para reduzir a dependência face ao petróleo, pulse aqui.
Dois tiros em porta-aviões
Graves, gravíssimas as acusações implícitas nas manchetes de dois jornais deste sábado. No "Público", escreve-se que Pedro Silva Pereira, ex-secretário de Estado do Ordenamento do Território, facilitou a construção de um empreendimento hoteleiro nas dunas de Monte Gordo, contrariando pareceres da Comissão Coordenadora da Região do ALgarve (CCRA). No "Expresso", a manchete dá conta de que o novo Tratado de Roma permite pescar livremente na costa marítima portuguesa, já que desaparece o conceito de zona económica exclusiva, pelo que a competência exclusiva de exploração, aproveitamento, conservação e gestão dos recursos biológicos do mar caberá, a partir de agora, à União Europeia.
São histórias graves, que vão dar que falar, e que merecem alguma reflexão, nomeadamente porque contrariam, com ironia, declarações e posições públicas de dirigentes do PS e do CDS/PP. Vamos por partes.
A história do "Público", assinada por um dos nomes mais respeitáveis do jornal (José António Cerejo) dá conta do papel activo (ou passivo consoante a leitura que se fizer da história) do actual porta-voz do PS, Pedro Silva Pereira, num intrincado processo de licenciamento de um hotel. A área de construção, segundo a notícia, situava-se no interior de uma Reserva Ecológica, a escassos 30 metros do mar, em clara violação do PDM e tinha sido alvo de pareceres negativos da CCRA. O então secretário de Estado terá recusado ponderar estas opiniões desfavoráveis e autorizou a construção.
Estes processos, infelizmente, não são novos nem únicos. Não comentarei o último aspecto da notícia, relacionado com o possível favorecimento do filho de Almeida Santos, presidente do Partido Socialista. Mas parece-me que Pedro Silva Pereira terá forçosamente de clarificar esta acusação. Em primeiro lugar, porque o processo mancha a actuação de José Sócrates ao leme do Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território. Em segundo lugar, porque Pedro Silva Pereira não é apenas um ex-governante. Tem funções importantes no seio do PS e é largamente apontado como futuro ministro do Ambiente, caso Sócrates ganhe as eleições legislativas de 2006. Em terceiro e último lugar, parte da reputação da equipa governativa do PS na área do Ambiente foi ganha precisamente por ter conseguido fugir a escândalos odiosos de licenciamentos dúbios. Esta mancha precisa, por isso, de ser explicada. A bem ou mal.
Importa perceber porém como o "Público" obteve a notícia. O processo veio à tona na sequência de um pedido de esclarecimento do actual Ministério, nomeadamente do secretário de Estado Jorge Moreira da Silva. Ora, o pedido é tudo menos inocente e visa obrigar Silva Pereira a explicar publicamente o caso. Veremos como o ministro-sombra lida com este "cheque ao rei". Para já, tudo indica que, no Largo do Rato, alguém gritará brevemente "Homem ao Mar!"
Vamos à segunda história. O novo Tratado de Roma, exaltado por Santana Lopes e Jorge Sampaio, extingue o conceito de zona económica exclusiva na UE, o que quer dizer que as embarcações pesqueiras nacionais perderão o seu campo tradicional e exclusivo de trabalho. A implicação constitucional é grave e, a fazer fé no "Expresso", já era conhecida dentro do governo há algumas semanas.
Em primeiro lugar, importa perguntar se o Ministro da Defesa e dos Assuntos do Mar quer fazer o favor de explicar à opinião pública como se conjuga este triste desfecho com o anunciado desígnio nacional que era o mar. Paulo Portas, ao receber a nova pasta, teve o cuidado de mencionar que os portugueses andavam de costas voltadas para a sua ampla vocação marítima e que o seu ministério recuperaria esta vocação lusitana. Criou-se uma comissão, que apresentou recentemente o seu relatório e abordou oportunidades de pesca, de extracção mineira e de investigação oceanográfica. Falou dos portugueses de quinhentos e dos Descobrimentos. E da tradição atlantista deste país. Não coloco em causa o trabalho da comissão, que respeito e enalteço, mas creio agora que a sua criação não passou de fachada.
Com este Tratado, os pescadores portugueses terão de lutar por cada milha da costa. Aos arrastões espanhóis, juntar-se-ão previsivelmente pescadores britânicos, franceses, italianos e que o mais houver. Vai ser um fartar vilanagem e a incapacidade negocial dos diplomatas portugueses nesta questão sensível terá impactes em milhares de comunidades piscatórias.
Mais grave ainda é a acusação de que Portugal concedeu o ponto sem lutar por ele. "Em Bruxelas, ficaram muito admirados", conta João Salgueiro, a propósito da posição macia do principal prejudicado por esta imposição. Incompetência? Incúria? Escolha o leitor.
Entretanto, como lidarão os "stocks" pesqueiros com esta pressão adicional? Como lidarão os pescadores portugueses com esta competição feroz? Para já, apenas os recursos minerais ficam salvaguardados. Para já.
Paulo Portas e Pedro Silva Pereira, duas personagens em foco esta semana. Terão eles a fineza de explicar ao país as acusações de compadrio (num caso) e de incompetência negocial (no outro) de que foram alvo?
São histórias graves, que vão dar que falar, e que merecem alguma reflexão, nomeadamente porque contrariam, com ironia, declarações e posições públicas de dirigentes do PS e do CDS/PP. Vamos por partes.
A história do "Público", assinada por um dos nomes mais respeitáveis do jornal (José António Cerejo) dá conta do papel activo (ou passivo consoante a leitura que se fizer da história) do actual porta-voz do PS, Pedro Silva Pereira, num intrincado processo de licenciamento de um hotel. A área de construção, segundo a notícia, situava-se no interior de uma Reserva Ecológica, a escassos 30 metros do mar, em clara violação do PDM e tinha sido alvo de pareceres negativos da CCRA. O então secretário de Estado terá recusado ponderar estas opiniões desfavoráveis e autorizou a construção.
Estes processos, infelizmente, não são novos nem únicos. Não comentarei o último aspecto da notícia, relacionado com o possível favorecimento do filho de Almeida Santos, presidente do Partido Socialista. Mas parece-me que Pedro Silva Pereira terá forçosamente de clarificar esta acusação. Em primeiro lugar, porque o processo mancha a actuação de José Sócrates ao leme do Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território. Em segundo lugar, porque Pedro Silva Pereira não é apenas um ex-governante. Tem funções importantes no seio do PS e é largamente apontado como futuro ministro do Ambiente, caso Sócrates ganhe as eleições legislativas de 2006. Em terceiro e último lugar, parte da reputação da equipa governativa do PS na área do Ambiente foi ganha precisamente por ter conseguido fugir a escândalos odiosos de licenciamentos dúbios. Esta mancha precisa, por isso, de ser explicada. A bem ou mal.
Importa perceber porém como o "Público" obteve a notícia. O processo veio à tona na sequência de um pedido de esclarecimento do actual Ministério, nomeadamente do secretário de Estado Jorge Moreira da Silva. Ora, o pedido é tudo menos inocente e visa obrigar Silva Pereira a explicar publicamente o caso. Veremos como o ministro-sombra lida com este "cheque ao rei". Para já, tudo indica que, no Largo do Rato, alguém gritará brevemente "Homem ao Mar!"
Vamos à segunda história. O novo Tratado de Roma, exaltado por Santana Lopes e Jorge Sampaio, extingue o conceito de zona económica exclusiva na UE, o que quer dizer que as embarcações pesqueiras nacionais perderão o seu campo tradicional e exclusivo de trabalho. A implicação constitucional é grave e, a fazer fé no "Expresso", já era conhecida dentro do governo há algumas semanas.
Em primeiro lugar, importa perguntar se o Ministro da Defesa e dos Assuntos do Mar quer fazer o favor de explicar à opinião pública como se conjuga este triste desfecho com o anunciado desígnio nacional que era o mar. Paulo Portas, ao receber a nova pasta, teve o cuidado de mencionar que os portugueses andavam de costas voltadas para a sua ampla vocação marítima e que o seu ministério recuperaria esta vocação lusitana. Criou-se uma comissão, que apresentou recentemente o seu relatório e abordou oportunidades de pesca, de extracção mineira e de investigação oceanográfica. Falou dos portugueses de quinhentos e dos Descobrimentos. E da tradição atlantista deste país. Não coloco em causa o trabalho da comissão, que respeito e enalteço, mas creio agora que a sua criação não passou de fachada.
Com este Tratado, os pescadores portugueses terão de lutar por cada milha da costa. Aos arrastões espanhóis, juntar-se-ão previsivelmente pescadores britânicos, franceses, italianos e que o mais houver. Vai ser um fartar vilanagem e a incapacidade negocial dos diplomatas portugueses nesta questão sensível terá impactes em milhares de comunidades piscatórias.
Mais grave ainda é a acusação de que Portugal concedeu o ponto sem lutar por ele. "Em Bruxelas, ficaram muito admirados", conta João Salgueiro, a propósito da posição macia do principal prejudicado por esta imposição. Incompetência? Incúria? Escolha o leitor.
Entretanto, como lidarão os "stocks" pesqueiros com esta pressão adicional? Como lidarão os pescadores portugueses com esta competição feroz? Para já, apenas os recursos minerais ficam salvaguardados. Para já.
Paulo Portas e Pedro Silva Pereira, duas personagens em foco esta semana. Terão eles a fineza de explicar ao país as acusações de compadrio (num caso) e de incompetência negocial (no outro) de que foram alvo?
sexta-feira, novembro 05, 2004
Sinais de fumo
Ao reconhecimento público de que a situação financeira do Instituto da Conservação da Natureza (ICN) é de tal forma grave que os serviços telefónicos já foram suspensos pela Portugal Telecom, o ministro do Ambiente reagiu e proferiu esta extraordinária declaração: "É possível fazer mais com menos dinheiro." Nobre Guedes propõe no fundo a transposição da lide doméstica para a gestão de uma instituição pública.
Admitindo que a frase deve ser levada à letra e não foi um desabafo jocoso, Nobre Guedes reconhece que o dinheiro atribuído na dotação ambiental é suficiente e que o problema resume-se apenas à distribuição dessa verba pelas áreas de intervenção. Pensamento curioso, este, que revela provavelmente que o ministro ainda não deve ter franqueado a porta da instituição que tutela.
Mas como o exercício crítico deve ter um carácter pedagógico, proponho uma série de medidas de poupança. Porque, de facto, o ministro convenceu-me. Assim, eis os dez novos mandamentos que deverão ser aplicados brevemente na gestão futura do ICN:
1) Com 1,2 milhões de euros a menos para despesas correntes em 2005, o orçamento esgotar-se-á em Setembro/Outubro só com o pagamento de salários. É portanto lógico abater uma talhada nos salários dos funcionários. Que cada funcionário perca 20% do seu ordenado. Chamemos-lhe o imposto ecológico!
2) Um orçamento é, acima de tudo, um jogo de rácios entre verbas disponíveis e sectores a financiar. Ora se existem 11 parques naturais, 1 parque nacional , 12 reservas naturais, 6 monumentos naturais e 2 paisagens protegidas e se a dotação orçamental não chega para todos, que se extingam imediatamente três áreas protegidas. Aleatoriamente, sem critério. O dinheiro passará a sobejar e haverá três novas áreas em Portugal prontas a urbanizar.
3) Utilizando este mesmo princípio inovador, rapidamente chegamos à conclusão de que há espécies protegidas a mais em Portugal. Onde já se viu um país com a nossa grandeza possuir tanta fauna terrestre e marinha? Que se retire o estatuto de protecção a cinco espécies e melhoraremos o rácio orçamento/espécies. Em 2005, o ICN fará saber que já não protege a savelha, o roaz-corvineiro, o grifo, o cágado-de-carapaça-estriada e, não esquecendo o mundo vegetal, a Armeria berlengensis. A lista pode mudar para o ano, de forma a criar dinamismo na gestão de espécies protegidas.
4) Uma das pedras lançadas injustamente pela oposição é o facto de os telefones do ICN já estarem cortados há algumas semanas. Dentro da política de contenção previamente utilizada, propõe-se que as áreas protegidas passem a comunicar com os seus vigilantes e investigadores através de sinais de fumo. Cada funcionário passará a transportar uma pedra de sílex (para criar faúlha) e dois pequenos ramos de azinheira. Admite-se uma pequena excepção para a comunicação da administração central do ICN com as suas delegações. Que a esta, e excepcionalmente a esta, sejam atribuídos papel de escrita, envelopes e uma caneta. Os selos serão objecto de nova reflexão.
5) E os transportes, senhores, e os transportes? As direcções das áreas protegidas queixam-se sempre de que não há dinheiro para o combustíveis. Pois que se ande a pé, que é mais ecológico. Todos os vigilantes e investigadores deverão calcorrear os seus parques a trote ou a passo. Serão sorteados no início do ano dez vales de saúde para check-ups cardíacos. E nos formulários de contratação de novos funcionários deverão constar os resultados de cada um nos testes de Cooper e nos 110 metros barreiras. Claro está que esta medida ficará dependente do ano em que o ICN conseguir contratar mais alguém. Fonte do Ministério das Finanças assegura que esse desiderato deverá ser concluído antes da comemoração do centenário da implantação da República.
6) Uma das maiores queixas das nobres autarquias do país prende-se com as inspecções regularmente realizadas pelo ICN em busca de violações urbanas nas áreas protegidas. Pois que se passem imediatamente as inspecções para a esfera das autarquias, tão ciosas que elas estão de controlo sobre os apetitosos nacos de terreno protegido. E mais: chamemos a esta inovadora medida "O Plano Fernando Ruas", em homenagem ao presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses.
7) Todos os anos, chegado o mês de Setembro, os investigadores do ICN que ainda desejam participar em congressos começam a custear viagens e alojamento do seu próprio bolso. Pois que se aplique o passe social a esta classe desprotegida. Daqui para a frente, quem desejar assistir ou participar em congressos científicos terá desconto na compra do bilhete de autocarro ou furgoneta. Ficam naturalmente vedadas as participações em congressos que distem mais de 30 quilómetros da sede de cada área protegida.
8) Estamos na era do marketing, senhores, e o que faz o ICN? Não vende, não rentabiliza os seus activos. Propõe-se um conceito de fun park. Que o Parque Nacional da Peneda-Gerês se transforme num parque de diversões, onde o visitante poderá montar o dorso de um lobo, fazer festas numa águia-real ou gravar o seu nome numa das árvores seculares da mata do Ramiscal. Piqueniques debaixo dos monumentos megalíticos. Gincanas nos mantos de carvalhos. Há dinheiro para ganhar com os ecoparques.
9) Sob o mesmo conceito, há um punhado de investigadores que só se dedicam, de forma egoísta, ao estudo de uma espécie. Que miopia! Propõe-se que cada investigador inclua uma actividade extracurricular e lucrativa no seu plano de actividade. Que o responsável pela conservação do lince passe as quartas-feiras a vender cautelas no centro de Belmonte; que o investigador da víbora-cornuda do Gerês dedique as terças ao ofício de encantador de serpentes no mercado do Lindoso; que os biólogos do Parque Marinho da Arrábida dediquem os dias ímpares à pesca de robalo e dourada para vender na lota de Sesimbra. Com medidas com esta (que ainda ninguém na Europa teve visão de promover), os biólogos gerarão cash-flow suficiente para manter o ICN por muitos e bons anos.
10) Por fim, e a título excepcional, o Ministério do Ambiente deverá investir na aquisição de algumas centenas de tigelas de vime para distribuir por cada funcionário do ICN. Pede-se que todos se façam acompanhar deste novo equipamento e que promovam colectas em todos os locais que visitarem - em trabalho e em lazer. Que se organize uma colecta no metropolitano. Outra na repartição de finanças. Outra na feira do cavalo lusitano da Golegã! Que o contribuinte pague a crise. Quem danificar a tigela terá naturalmente de custear a sua substituição.
E assim concluo o inovador plano de medidas que, seguindo a metodologia de Nobre Guedes, conseguirá fazer mais com menos dinheiro! Não perca o próximo post: abordaremos o tema "Como Produzir Energia Eólica Através do Vento que Circula na Cabeça de Alguns Ministros"
Desculpem o sarcasmo do post, aliás pouco habitual nas minhas intervenções, mas há coisas que, de facto, chateiam. Esta declaração entra claramente para esse lote.
Admitindo que a frase deve ser levada à letra e não foi um desabafo jocoso, Nobre Guedes reconhece que o dinheiro atribuído na dotação ambiental é suficiente e que o problema resume-se apenas à distribuição dessa verba pelas áreas de intervenção. Pensamento curioso, este, que revela provavelmente que o ministro ainda não deve ter franqueado a porta da instituição que tutela.
Mas como o exercício crítico deve ter um carácter pedagógico, proponho uma série de medidas de poupança. Porque, de facto, o ministro convenceu-me. Assim, eis os dez novos mandamentos que deverão ser aplicados brevemente na gestão futura do ICN:
1) Com 1,2 milhões de euros a menos para despesas correntes em 2005, o orçamento esgotar-se-á em Setembro/Outubro só com o pagamento de salários. É portanto lógico abater uma talhada nos salários dos funcionários. Que cada funcionário perca 20% do seu ordenado. Chamemos-lhe o imposto ecológico!
2) Um orçamento é, acima de tudo, um jogo de rácios entre verbas disponíveis e sectores a financiar. Ora se existem 11 parques naturais, 1 parque nacional , 12 reservas naturais, 6 monumentos naturais e 2 paisagens protegidas e se a dotação orçamental não chega para todos, que se extingam imediatamente três áreas protegidas. Aleatoriamente, sem critério. O dinheiro passará a sobejar e haverá três novas áreas em Portugal prontas a urbanizar.
3) Utilizando este mesmo princípio inovador, rapidamente chegamos à conclusão de que há espécies protegidas a mais em Portugal. Onde já se viu um país com a nossa grandeza possuir tanta fauna terrestre e marinha? Que se retire o estatuto de protecção a cinco espécies e melhoraremos o rácio orçamento/espécies. Em 2005, o ICN fará saber que já não protege a savelha, o roaz-corvineiro, o grifo, o cágado-de-carapaça-estriada e, não esquecendo o mundo vegetal, a Armeria berlengensis. A lista pode mudar para o ano, de forma a criar dinamismo na gestão de espécies protegidas.
4) Uma das pedras lançadas injustamente pela oposição é o facto de os telefones do ICN já estarem cortados há algumas semanas. Dentro da política de contenção previamente utilizada, propõe-se que as áreas protegidas passem a comunicar com os seus vigilantes e investigadores através de sinais de fumo. Cada funcionário passará a transportar uma pedra de sílex (para criar faúlha) e dois pequenos ramos de azinheira. Admite-se uma pequena excepção para a comunicação da administração central do ICN com as suas delegações. Que a esta, e excepcionalmente a esta, sejam atribuídos papel de escrita, envelopes e uma caneta. Os selos serão objecto de nova reflexão.
5) E os transportes, senhores, e os transportes? As direcções das áreas protegidas queixam-se sempre de que não há dinheiro para o combustíveis. Pois que se ande a pé, que é mais ecológico. Todos os vigilantes e investigadores deverão calcorrear os seus parques a trote ou a passo. Serão sorteados no início do ano dez vales de saúde para check-ups cardíacos. E nos formulários de contratação de novos funcionários deverão constar os resultados de cada um nos testes de Cooper e nos 110 metros barreiras. Claro está que esta medida ficará dependente do ano em que o ICN conseguir contratar mais alguém. Fonte do Ministério das Finanças assegura que esse desiderato deverá ser concluído antes da comemoração do centenário da implantação da República.
6) Uma das maiores queixas das nobres autarquias do país prende-se com as inspecções regularmente realizadas pelo ICN em busca de violações urbanas nas áreas protegidas. Pois que se passem imediatamente as inspecções para a esfera das autarquias, tão ciosas que elas estão de controlo sobre os apetitosos nacos de terreno protegido. E mais: chamemos a esta inovadora medida "O Plano Fernando Ruas", em homenagem ao presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses.
7) Todos os anos, chegado o mês de Setembro, os investigadores do ICN que ainda desejam participar em congressos começam a custear viagens e alojamento do seu próprio bolso. Pois que se aplique o passe social a esta classe desprotegida. Daqui para a frente, quem desejar assistir ou participar em congressos científicos terá desconto na compra do bilhete de autocarro ou furgoneta. Ficam naturalmente vedadas as participações em congressos que distem mais de 30 quilómetros da sede de cada área protegida.
8) Estamos na era do marketing, senhores, e o que faz o ICN? Não vende, não rentabiliza os seus activos. Propõe-se um conceito de fun park. Que o Parque Nacional da Peneda-Gerês se transforme num parque de diversões, onde o visitante poderá montar o dorso de um lobo, fazer festas numa águia-real ou gravar o seu nome numa das árvores seculares da mata do Ramiscal. Piqueniques debaixo dos monumentos megalíticos. Gincanas nos mantos de carvalhos. Há dinheiro para ganhar com os ecoparques.
9) Sob o mesmo conceito, há um punhado de investigadores que só se dedicam, de forma egoísta, ao estudo de uma espécie. Que miopia! Propõe-se que cada investigador inclua uma actividade extracurricular e lucrativa no seu plano de actividade. Que o responsável pela conservação do lince passe as quartas-feiras a vender cautelas no centro de Belmonte; que o investigador da víbora-cornuda do Gerês dedique as terças ao ofício de encantador de serpentes no mercado do Lindoso; que os biólogos do Parque Marinho da Arrábida dediquem os dias ímpares à pesca de robalo e dourada para vender na lota de Sesimbra. Com medidas com esta (que ainda ninguém na Europa teve visão de promover), os biólogos gerarão cash-flow suficiente para manter o ICN por muitos e bons anos.
10) Por fim, e a título excepcional, o Ministério do Ambiente deverá investir na aquisição de algumas centenas de tigelas de vime para distribuir por cada funcionário do ICN. Pede-se que todos se façam acompanhar deste novo equipamento e que promovam colectas em todos os locais que visitarem - em trabalho e em lazer. Que se organize uma colecta no metropolitano. Outra na repartição de finanças. Outra na feira do cavalo lusitano da Golegã! Que o contribuinte pague a crise. Quem danificar a tigela terá naturalmente de custear a sua substituição.
E assim concluo o inovador plano de medidas que, seguindo a metodologia de Nobre Guedes, conseguirá fazer mais com menos dinheiro! Não perca o próximo post: abordaremos o tema "Como Produzir Energia Eólica Através do Vento que Circula na Cabeça de Alguns Ministros"
Desculpem o sarcasmo do post, aliás pouco habitual nas minhas intervenções, mas há coisas que, de facto, chateiam. Esta declaração entra claramente para esse lote.
quinta-feira, novembro 04, 2004
Bush, Kerry e o Ambiente
A recente vitória de George W. Bush nas eleições presidenciais norte-americanas terá forte impacte na política americana de Ambiente e, por arrastamento, na percepção global do tema. Dificilmente se encontraria outra área de intervenção onde o papel dos dois candidatos fosse tão díspar. Infelizmente para o ambiente, porém, a América votou na outra direcção.
Em primeiro lugar, contrariamente ao que sucedera há quatro anos, o Ambiente não teve honras de debate. Segundo a Fox, nos três debates entre os candidatos, houve apenas uma pergunta relativa à política ambiental dos dois candidatos. Definitivamente, estas eleições comprovaram a perda de influência do Ambiente na agenda política e esse facto terá forçosamente de motivar a reflexão dos ambientalistas. O Ambiente já não interessa transversalmente à sociedade americana. Todas as sondagens Gallup reflectem esta tendência. Tornou-se marginal, pelo menos no grande fórum de discussão americano, e essa perda de notoriedade provoca claramente repercussões noutras latitudes.
O próximo quadriénio será por isso conturbado. O acesso das ONGA aos meios de comunicação será mais restrito; a mobilização popular mais difícil e mais localizada; o interesse dos governantes e os recursos investidos na gestão ambiental terão tendência a minguar.
O que perdeu a América ambiental com a eleição de George W. Bush? A questão é controversa, até porque nem sempre os programas partidários correspondem mais tarde a planos de acção concreta. Mas cingindo-me apenas às promessas de campanha, diria que o primeiro grande desaire sucederá na Reserva Natural de Vida Selvagem do Árctico (ANSWR). Protegida e classificada no segundo mandato de Bill Clinton, esta área de forte sensibilidade tem sido cobiçada pelo ímpeto petrolífero da administração Bush. É provável que, no segundo mandato, o estatuto de protecção seja revogado ou alterado para permitir a prospecção. A violação do Árctico selvagem está claramente na calha.
Nos fóruns de discussão ambiental, falou-se muito na recusa de Bush em assinar o protocolo de Quioto, mas convém contextualizar. É verdade que Clinton tinha criado bases para a assinatura, mas nunca o chegou a fazer e guardou o ónus da decisão para o mandato do seu sucessor. Bush, como é público, recuou e recusou a ratificação, num gesto egoísta e irresponsável do maior poluidor mundial. Mas alguém terá dado conta de que Kerry também não prometeu a ratificação do tratado? O senador disse apenas que iria repensar a posição americana. Vago, muito vago mesmo, para quem aparentemente representava parte da sensibilidade ambiental nas eleições.
Terceiro tópico: a redução do financiamento à agência de protecção ambiental (EPA). Financiada pela administração Clinton, a EPA foi claramente menosprezada por Bush. Os seus fundos diminuíram e a sua autonomia e autoridade esfumaram-se. Kerry prometeu a reactivação desta entidade, que há seis anos foi capaz de impor limites pioneiros de poluição ambiental e correspondentemente de criar bases para punir agentes poluidores. Não foi à toa que o grande tecido industrial americano apoiou a administração Bush. E a EPA previsivelmente será sufocada (um pouco como o nosso ICN, acrescento) nestes próximos quatro anos.
O problema energético constitui o quarto núcleo de diferenças de percepção entre os dois candidatos. Kerry tinha uma pontuação elevadíssima atribuída nas votações sobre eficiência energética no Senado. Bush não se pode gabar do mesmo. Kerry advogou uma política de claros incentivos às energias renováveis, de promoção fiscal dos modelos automóveis mais eficientes e, a médio prazo, de sanções fiscais aos fabricantes de veículos mais dispendiosos em termos de combustível. Bush não. Kerry e a esposa contribuíram com fundos para projectos de investigação no âmbito de veículos mais ecológicos e de fontes de energia menos agressivas. Bush não. O seu manifesto revelava a intenção de "proteger o estilo de vida americano", o mesmo que faz dos jeeps, dos todo-terreno, dos camiões, dos carros clássicos dos anos 1950 e 1960 e das furgonetas bafientas a sua imagem de marca. Creio que não há ilusões neste aspecto.
Em contrapartida, e esta foi a única bandeira da argumentação ambientalista de George W. Bush, a América e o mundo ganham o que parece ser o primeiro esforço real de controlo dos níveis de arsénio na rede nacional de águas públicas. A contaminação de aquíferos subterrâneos tem sido desleixada por muitos países (Portugal, incluído) e, neste aspecto, Bush promete um plano nacional da água, traduzido num instituto de controlo de qualidade, na divulgação regular dos resultados das análises e, muito importante, na punição dos poluidores. Um exemplo para outras latitudes, mas escasso perante um país que deveria acolher mais enfaticamente as suas obrigações morais.
Vamos esperar para ver.
Em primeiro lugar, contrariamente ao que sucedera há quatro anos, o Ambiente não teve honras de debate. Segundo a Fox, nos três debates entre os candidatos, houve apenas uma pergunta relativa à política ambiental dos dois candidatos. Definitivamente, estas eleições comprovaram a perda de influência do Ambiente na agenda política e esse facto terá forçosamente de motivar a reflexão dos ambientalistas. O Ambiente já não interessa transversalmente à sociedade americana. Todas as sondagens Gallup reflectem esta tendência. Tornou-se marginal, pelo menos no grande fórum de discussão americano, e essa perda de notoriedade provoca claramente repercussões noutras latitudes.
O próximo quadriénio será por isso conturbado. O acesso das ONGA aos meios de comunicação será mais restrito; a mobilização popular mais difícil e mais localizada; o interesse dos governantes e os recursos investidos na gestão ambiental terão tendência a minguar.
O que perdeu a América ambiental com a eleição de George W. Bush? A questão é controversa, até porque nem sempre os programas partidários correspondem mais tarde a planos de acção concreta. Mas cingindo-me apenas às promessas de campanha, diria que o primeiro grande desaire sucederá na Reserva Natural de Vida Selvagem do Árctico (ANSWR). Protegida e classificada no segundo mandato de Bill Clinton, esta área de forte sensibilidade tem sido cobiçada pelo ímpeto petrolífero da administração Bush. É provável que, no segundo mandato, o estatuto de protecção seja revogado ou alterado para permitir a prospecção. A violação do Árctico selvagem está claramente na calha.
Nos fóruns de discussão ambiental, falou-se muito na recusa de Bush em assinar o protocolo de Quioto, mas convém contextualizar. É verdade que Clinton tinha criado bases para a assinatura, mas nunca o chegou a fazer e guardou o ónus da decisão para o mandato do seu sucessor. Bush, como é público, recuou e recusou a ratificação, num gesto egoísta e irresponsável do maior poluidor mundial. Mas alguém terá dado conta de que Kerry também não prometeu a ratificação do tratado? O senador disse apenas que iria repensar a posição americana. Vago, muito vago mesmo, para quem aparentemente representava parte da sensibilidade ambiental nas eleições.
Terceiro tópico: a redução do financiamento à agência de protecção ambiental (EPA). Financiada pela administração Clinton, a EPA foi claramente menosprezada por Bush. Os seus fundos diminuíram e a sua autonomia e autoridade esfumaram-se. Kerry prometeu a reactivação desta entidade, que há seis anos foi capaz de impor limites pioneiros de poluição ambiental e correspondentemente de criar bases para punir agentes poluidores. Não foi à toa que o grande tecido industrial americano apoiou a administração Bush. E a EPA previsivelmente será sufocada (um pouco como o nosso ICN, acrescento) nestes próximos quatro anos.
O problema energético constitui o quarto núcleo de diferenças de percepção entre os dois candidatos. Kerry tinha uma pontuação elevadíssima atribuída nas votações sobre eficiência energética no Senado. Bush não se pode gabar do mesmo. Kerry advogou uma política de claros incentivos às energias renováveis, de promoção fiscal dos modelos automóveis mais eficientes e, a médio prazo, de sanções fiscais aos fabricantes de veículos mais dispendiosos em termos de combustível. Bush não. Kerry e a esposa contribuíram com fundos para projectos de investigação no âmbito de veículos mais ecológicos e de fontes de energia menos agressivas. Bush não. O seu manifesto revelava a intenção de "proteger o estilo de vida americano", o mesmo que faz dos jeeps, dos todo-terreno, dos camiões, dos carros clássicos dos anos 1950 e 1960 e das furgonetas bafientas a sua imagem de marca. Creio que não há ilusões neste aspecto.
Em contrapartida, e esta foi a única bandeira da argumentação ambientalista de George W. Bush, a América e o mundo ganham o que parece ser o primeiro esforço real de controlo dos níveis de arsénio na rede nacional de águas públicas. A contaminação de aquíferos subterrâneos tem sido desleixada por muitos países (Portugal, incluído) e, neste aspecto, Bush promete um plano nacional da água, traduzido num instituto de controlo de qualidade, na divulgação regular dos resultados das análises e, muito importante, na punição dos poluidores. Um exemplo para outras latitudes, mas escasso perante um país que deveria acolher mais enfaticamente as suas obrigações morais.
Vamos esperar para ver.
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