Declaração de interesses: o leitor tem o direito de
saber que não sou isento na apreciação dos factos que apresentarei de seguida,
pois fui arrolado, com meu acordo, como testemunha de defesa do arguido no
processo em curso no 5.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.
Tentarei, apesar disso, apresentar o objecto de discussão com a maior
imparcialidade possível. Do (in)sucesso desse esforço, avaliarão os leitores.
Pode um mosquito travar uma locomotiva?
Não é do domínio público, nem foi ainda noticiado em
Portugal, mas há um processo criminal em curso em Lisboa que definirá
brevemente a hierarquia de prioridades entre o direito à honra, ao bom nome e à
reputação de uma instituição e a liberdade de expressão de um investigador
que, considerando o interesse público do que tinha a dizer sobre a actividade
de uma empresa e estando convencido da verosimilhança do que afirmava, utilizou
a emissão de um programa de rádio para denunciar más práticas. Direitos essenciais
numa sociedade moderna podem, com frequência, sobrepor-se, exigindo
clarificação sobre a respectiva prioridade. Seremos ainda a sociedade do “respeitinho é
muito bonito” e o bom nome prevalecente sobre a crítica ou, em alternativa,
admitiremos o direito de um homem da ciência exercer um papel de denúncia,
mesmo quando utiliza frases mais cáusticas?
Os factos são simples e apresento-os sumariamente.
Naturalmente, apresentarei as duas partes em disputa apenas com iniciais,
respeitando a privacidade dos intervenientes.
No dia 20 de Outubro de 2012, pelas 9h40, o programa
Cientificamente, da RDP-África, apresentado pela jornalista Ana Paula Gomes,
entrevistou dois arqueólogos – A.M. e R. T. D. O pano de fundo era um congresso
internacional organizado pelo Instituto de Investigação Científica e Tropical,
no qual, entre outros assuntos, se discutiu o património cultural dos países
africanos de expressão portuguesa.
Durante a emissão, o arqueólogo A.M. expressou a sua
preocupação por ver autorizada em Moçambique a actividade da empresa AW, de
arqueologia marítima/salvados (o seu objecto difere radicalmente de acordo com
quem a descreve). Empresa alemã sediada em Portugal desde 1994, aproveitando
então um curto intervalo permitido pelo triste decreto-lei 289/93, assinado por
Pedro Santana Lopes, secretário de Estado da Cultura, a AW opera
maioritariamente em países que não assinaram a Convenção da UNESCO de 2001 para
a Protecção do Património Cultural Submerso. Já esteve em Cabo Verde, no
Vietname, na Indonésia e obteve licença para operar em Moçambique em 1999,
tendo a sua licença sido prorrogada em 2004, 2007 e 2011 (de acordo com esclarecimentos prestados por dois porta-vozes da empresa, entrevistados no mesmo programa uma semana depois, ao abrigo de um direito de resposta que a RDP aceitou conceder-lhes).
Durante a emissão, A.M. considerou que chegara a
altura certa para, de uma forma mais oficial e académica, “expressar as
preocupações da comunidade arqueológica – neste caso, da que lida com o
património cultural subaquático, relativamente às orientações
político-culturais que têm sido imprimidas a um património, que é moçambicano,
e à revelia de todo um pensamento científico, que é corrente nesta altura, e
também contra as recomendações de organismos como a UNESCO, expressar a nossa
preocupação e tentar apontar alternativas para que esse património seja
estudado e usufruído e que não passem necessariamente pela sua pilhagem e pela
sua venda em leilão”.
De que falava A.M.? A publicação do D.L. de 1993 abriu
temporariamente a porta à legalização de empresas com o propósito mais ou menos
declarado de extrair artefactos de valor de sítios arqueológicos submersos,
sempre que a sua preservação estivesse ameaçada. Não entrarei pelos caminhos
já explorados por uma edição do “Semanário” de 27 de Agosto de 1994, que
associou um então funcionário da Secretaria de Estado da Cultura à redacção da
lei, ao mesmo tempo que exercia o papel de advogado de um dos principais interessados
na aprovação de legislação.
Socorro-me, porém, da intervenção pública do então
presidente da AW, numa edição de 28 de Abril de 1995 do jornal “Independente”.
Com inesperada franqueza, o responsável da empresa referia: “Quando encontramos
artefactos em mau estado, não se deve perder tempo. Nessa altura, temos de
recolher só o que tem valor comercial. O que nos interessa são os galeões, que
dos séculos XVI a XVIII transportavam pedras do Oriente e prata e ouro das
Américas. Os navios que tenham valores a bordo é que nos interessam.”
No outro lado do espectro, os principais arqueólogos
do país (e a UNESCO; e o ICOMOS...) entendem que, numa escavação, o paradigma
do artefacto valioso correspondia à perspectiva do século XIX, valorizando o
achado e não o contexto ou a informação. Os Gabinetes de Curiosidades, como o
que o Duque de Palmela apresentava aos leitores da Ilustração Portuguesa em 1907,
juntando na mesma sala sarcófagos egípcios, vasos etruscos e esqueletos maias,
estão ultrapassados.
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"Ilustração Portuguesa", 93, 1907
(a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
Numa escavação, recolhe-se, acima de tudo, informação. Que
pode não ser opulenta e pode não ter valor de mercado, mas permite aprender,
sobretudo num contexto em que a informação sobre a construção naval de
embarcações quatrocentistas a seiscentistas ainda apresenta lacunas
consideráveis. Para um artigo recente, entrevistei o arqueólogo Francisco Alves, que acompanhou a descoberta de duas pirogas pré-históricas no rio Lima em 2002 e que demorou cinco/seis anos a extrair delas informação sobre a navegação fluvial em Portugal naquele contexto – o mais antigo de que há registo. Ninguém argumenta que é um trabalho fascinante e posso testemunhar que raramente há Lara Crofts nos sítios arqueológicos, mas é a única maneira possível de operar cientificamente em arqueologia.
Mais do que isso: à partida, nenhum arqueólogo sabe o que se esconde no sítio arqueológico, pelo que avança com cuidado e processos normalizados. Numa entrevista que me concedeu para as páginas da National
Geographic (a propósito da expansão do detectorismo em Portugal), A.M.
descreveu as duas perspectivas com uma metáfora simples: “Imagine um livro
raro. Há duas maneiras de o ler. Se eu o ler com cuidado, manuseando lentamente
cada página, recolho o máximo de informação possível e não prejudico as
segundas e terceiras leituras de quem vier a seguir. Se eu avançar directamente
para as páginas que me interessam e têm valor comercial e as arrancar, mais
ninguém poderá ler o livro. É tão simples como isto!” Na emissão do
Cientificamente, A.M. lembrou que não existe ainda uma nau ou um galeão
português em contexto arqueológico, que possa ser estudado convenientemente.
Há uma segunda vaga de argumentos. A AW sublinha
regularmente que as suas intervenções justificam-se pelo carácter de
emergência, pois os sítios de naufrágio podem ser pilhados a qualquer altura ou
podem degradar-se subitamente. E lembra que lhe interessam os navios de carga
repetitiva, ou seja, aqueles que faziam parte de comboios marítimos,
transportando carga entre continentes e sobre os quais a ciência já terá
informação suficiente. Arqueólogos como A.M. sustentam que a decisão sobre o
que é repetitivo não pode ficar a cargo de uma empresa privada, que pretende
lucrar com a venda em leilão de artefactos. E acrescentou na referida emissão:
“O problema aqui nem é tanto aquilo que já foi retirado e que se sabe (...). É
aquilo que foi destruído e não se sabe.”
E, por fim, há o argumento da cientificidade. A
reputação que a AW granjeou na Europa e nos Estados Unidos não é lisonjeira e
assistiu-se, nos últimos cinco anos, a um redobrado esforço de publicação de
volumes descritivos de campanhas (com a chancela da própria AW) e a inscrição de
funcionários em congressos científicos para participação pública de achados.
Que eu saiba, a AW ainda não avançou para a fase verdadeiramente científica do
trabalho arqueológico, que se prende com a submissão de artigos a revistas ou jornais
científicos, reconhecidos internacionalmente, com revisão de pares e escrutínio
generalizado. Na minha definição de ciência, a AW não cumpre os requisitos
mínimos.
No programa Cientificamente, A.M. foi mais longe.
Lembrando a experiência da AW em Cabo Verde, chamou-lhe “empresa de caça ao
tesouro” e narrou uma campanha (não desmentida pela AW) que permitiu a
descoberta de um raro astrolábio banhado a prata, posteriormente vendido em
leilão para os Estados Unidos. Defendeu-se a AW, referindo que mandou fazer uma
cópia do artefacto para oferecer ao governo cabo-verdiano e ajudou a
implementar o Núcleo Museológico da Praia.
Está assim em fase de instrução um processo-crime
suscitado por queixa da AW e que avaliará, em última instância, se toleramos,
enquanto regime democrático cumpridor de convenções internacionais, a
actividade de uma empresa que aborda a arqueologia com fins utilitários. Os
danos não patrimoniais reportados, e que constam do pedido de indemnização,
ascendem a 50 mil euros!
Permitam-me, na nota mais pessoal deste texto,
expressar a minha incredulidade quando vi a lista de testemunhas arroladas pela
AW, que previsivelmente aplaudirão a actividade e métodos da empresa. Uma
ex-ministra da Cultura e a actual directora de um Museu Nacional vão testemunhar
em seu abono. Como dizem os espanhóis, senti verguenza ajena.
Esta é, afinal, uma batalha travada com vinte anos de atraso. É até discutível se o porta-estandarte deveria ser A.M. ou um representante consagrado do campo arqueológico ou patrimonial. Não tenho resposta para isso. Limito-me a referir que o que falta em patentes académicas a A.M. sobra-lhe em coragem cívica.
No fim de contas, a resposta à pergunta de partida
está nas mãos da senhora juíza. Pode um mosquito travar a marcha de uma
locomotiva? Espero que possa. Nem que seja zumbindo aos ouvidos do maquinista
até ao ponto em que ele interrompa, irritado, a marcha.