Morreu hoje o João Paulo Cotrim e o dia ficou ainda mais triste.
Já reparou neste monumento dedicado a Dona Leonor nas Caldas da Rainha?
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Magnânima, de Maximiano Alves |
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Proposta de Leopoldo Almeida e Carlos Ramos |
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Maximiano Alves em fotografia de O Século |
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A estátua de Francisco Franco |
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A proposta de Anjos Teixeira |
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A proposta de António da Costa |
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A proposta de Francisco dos Santos |
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A proposta de Júlio Vaz |
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A proposta de Luís Fernandes |
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A proposta de Norte Júnior |
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A proposta de Simões de Almeida, Leopoldo de Almeida e Carlos Ramos |
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A Imprensa da Manhã, 27 de Novembro de 1921 |
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Pode um mistério estar à vista de todos durante quatrocentos anos e não ser descodificado?
Atente-se na história desta Madona com o Menino e Anjos Músicos (1415). No início do século XIX, pouco se sabia em Portugal sobre o pintor Álvaro Pires, de Évora. Giorgio Vassari, na sua memória do pintor renascentista Taddeo Bartoli, mencionara-o vagamente, como Alvaro Piero di Portogallo. José da Cunha Taborda, em Regras da Arte da Pintura, fazia-lhe alusão em 1815, repetindo a informação do historiador quinhentista. Em 1846, G. Milanesi acrescentara um dado importante, confessando ter visto um quadro assinado pelo pintor numa igreja dos arredores de Pisa. E pouco mais.
Em 1922, o médico Reinaldo dos Santos visitou Itália. Ia em missão a um congresso médico em Génova, mas, apaixonado por história de arte e amigo de José de Figueiredo, director e fundador do Museu Nacional de Arte Antiga, adicionou um itinerário invulgar ao périplo. Visava sobretudo uma igreja remota, a Igreja de Santa Croce de Fossabanda. Dando «um pequeno repouso às minhas preocupações profissionais», decidiu investigar. Pisa, porém, mudara muito. De igreja em igreja, Reinaldo acabou por terminar a busca num templo meio arruinado, ladeado pela cerca de um convento.
«Na galilé, toda especada em esporas, floriam sobre os fustes desaprumados alguns capitéis de velha arte pisana. A sua antiguidade pareceu-me de bom augúrio», escreveu numa crónica para o Diário de Lisboa no dia 10 de Julho de 1922. «Entretanto, um franciscano abriu o portal e logo, ao ouvir declinar a minha nacionalidade e o interesse em visitar a igreja, perguntou-me, sorrindo: “Vem então para ver o Álvaro?” Alguns minutos depois, toda a incerteza estava maravilhosamente dissipada. Não era o deslumbramento de me encontrar diante de uma das mais encantadoras madonas que a arte do quattrocento deixara no vale do Arno. Era, sobretudo, a emoção de ver – distintamente escrita em português – a assinatura do artista, cujas letras brilhavam diante dos meus olhos comovidos: “Álvaro Pires d’Evora Pintou”.»
O artigo de Reinaldo dos Santos no Diário de Lisboa (que precedeu a publicação de um opúsculo sobre o caso) motivou uma réplica de Carlos Lobo, outro erudito amador, que garantia ter visto o mesmo quadro «num dia de Inverno de 1912» enquanto andava «solitário, percorrendo a grande nave da Igreja de San Francesco, em busca do panteão da família Della Gherardesca a que pertencia o famoso conde Ugolino». Ali encontrara um frade que, vendo-o interessado, lhe perguntou se não quereria ver o «quadro de um espanhol» numa igreja próxima. A obra estava então escondida «por detrás de uma cortina de chita encarnada. O frade puxou um cordelinho e o quadro apareceu!»
Lobo teve a mesma epifania de Reinaldo dez anos depois, ao contemplar a assinatura de Álvaro Pires. De regresso a Lisboa, escreveu a José de Figueiredo e deu-lhe conta do achado. O director do MNA escreveu um artigo em O Século, de 5 de Março de 1913, contando a descoberta singular.
Três dias depois do artigo de Carlos Lobo, no dia 15 de Julho de 1922, Reinaldo encerrou a polémica: «Nada mais fútil nas questões históricas do que uma discussão de prioridades», começou. «Nem eu, ao procurar intencionalmente em Santa Croce, a Madona de Álvaro, nem V. Ex.ª ao tê-la encontrado inesperadamente em Pisa, a descobrimos senão para nós. Para a história da arte, foi Milanesi quem, no meado do século passado, a descobriu.»
Reinaldo teria mais concorrência nesse mesmo ano, pois também Vergílio Correia, o historiador de Coimbra, publicou um opúsculo com informação biográfica inédita sobre o pintor alentejano. Quem, afinal, descobriu para os portugueses a Madona de Álvaro Pires? Carlos Lobo? José de Figueiredo? Reinaldo dos Santos? Vergílio Correia?
Na verdade, não parece ter sido nenhum deles e a resposta não é particularmente gloriosa. Joaquim Vasconcelos, o historiador de arte do Porto, publicou, em 1896, um volume monumental sobre o grande Francisco de Holanda e, nele, en passant, contava a história da Madona de Pisa. Estava tão obcecado por Francisco de Holanda e Albrecht Dürer que não valorizou excessivamente que tinha em mãos o primeiro pintor português de Quatrocentos.
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Caricatura de Schwalbach por Teixeira Cabral. Colecção do autor |
O Diário de Notícias completa hoje 156 anos e regressa às bancas. Evocando a longa história do jornal, a edição de hoje recupera três histórias batidíssimas (os relatos de Eça no Suez, a entrevista falhada com Hitler e o debate sobre a abolição da pena de morte). Salvam-se mais pela reflexão das autoras (Francisca Van Dunem, Maria Filomena Mónica e Irene Pimentel) do que pela novidade. Dou assim o meu contributo: eis a história (inédita) do director teimoso que recusava sair de cena.
Eduardo Schwalbach era um homem do século XIX. Vivera o tempo das gazetilhas e dos jornais programáticos, muitas vezes filiados nas ideias de um só líder político. Fizera carreira no teatro como dramaturgo e no Conservatório como professor. Não se lhe conhecia uma ideia firme sobre o regime ou a Igreja, sobre o partidarismo ou questões cambiais. Deu por isso um estupendo director de jornal quando Augusto de Castro, concluído o primeiro ciclo na direcção do Diário de Notícias, abraçou a carreira diplomática e partiu para o estrangeiro. Castro deixou o DN nas mãos do amigo e com uma cláusula que lhe permitia regressar.
Schwalbach, em compensação, adorou as mordomias do cargo: o salário, o carro com motorista, a ausência de responsabilidades, as vénias e os salamaleques. Acúrcio Pereira, Rocha Júnior e depois Aprígio Mafra garantiam os fundos editoriais e os combates na primeira página. Schwalbach assistia às premières do Teatro Dona Maria.
Caiu o regime em 1926 e o cargo complicou-se. Numa das intentonas, em 7 de Fevereiro de 1927, o sempre prudente Diário de Notícias apostou mal por uma vez. Um golpe mal esclarecido na estrutura do jornal levou à publicação de uma edição clandestina de 2 páginas, não censurada, de apoio aos revoltosos no Porto e em Lisboa. Quando a revolta foi extinta (do lado do governo bateram-se Humberto Delgado e Henrique Galvão nos combates do Largo do Rato), Schwalbach ficou em maus lençóis. Devo a Mário Matos e Lemos a cedência de um curioso inquérito promovido pelo major Viegas Ventura e pelo capitão Galvão para apurar responsabilidades pelo motim.
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O suplemento clandestino. Arquivo de Carlos Ferrão |
O Diário de Notícias esteve proibido de sair durante quatro dias e, ao regressar, não trazia o nome de Schwalbach como director (o tenente-coronel Pestana de Vasconcelos assegurou a direcção interina). À boa maneira portuguesa, o inquérito culpou figuras menores – Mário Pires e Carlos Neves seriam despedidos e Rocha Júnior colocado na prateleira. Schwalbach foi forçado a fazer prova de fé. Não hesitou. O Diário de Notícias tornou-se um ardente defensor da ditadura militar.
Em 1939, na alvorada da Segunda Guerra Mundial, Castro regressou a Portugal escaldado por um escândalo diplomático na legação portuguesa na Bélgica. O genro e a filha tinham-se mostrado favoráveis aos republicanos na Guerra Civil espanhola e chegaram ao Ministério boatos piores sobre correspondência do diplomata. A sua boa estrela parecia finar-se.
Arregaçando as mangas, Augusto de Castro fundou A Noite, dando-lhe o brilho que mais nenhum jornal tinha. Desafiou Artur Maciel para a equipa e propôs, em fundo editorial, o ano de 1940 como lançamento das comemorações henriquinas. Voltou a alinhar-se com Salazar. Foi-lhe confiado o comissariado-geral da Exposição do Mundo Português. Em breve recuperou também a sinecura do Diário de Notícias, empurrando Schwalbach para a reforma aos 80 anos.
Perdia-se o salário, o carro com mordomo, as vénias devidas ao cargo. Em 1944, o ano em que esta história tem lugar, Schwalbach deve ter sentido que lhe deviam uma vénia final.
Alunos, actores, jornalistas e até o presidente Carmona cozinharam uma gala de homenagem ao dramaturgo no Teatro Nacional Dona Maria, prevista para o dia 26 de Fevereiro de 1944, com a representação de A Bisbilhoteira, uma peça de Schwalbach com algum odor a bafio. Os bilhetes, porém, não se vendiam apesar de o Diário de Notícias publicar uma notícia diária na primeira página em louvor do seu antigo director.
Velha raposa, Schwalbach percebeu que precisava de um golpe de asa – um pretexto para que o seu nome fosse recordado.
No dia 18 de Fevereiro, um ancião de 83 anos sobe a bordo de um carro eléctrico da Carris. A empresa estipulara há muito que entre Novembro e Fevereiro não se podia fumar a bordo para não contaminar mais o ar carregado do interior.
«Mestre Schwalbach, fumador impenitente (…), muniu-se de um cigarrinho, meteu-o na boquilha, meteu esta na boca e preparou-se para seguir o seu destino», narra a notícia do Diário Popular. Foi interpelado pelo fiscal. Recusou cumprir, argumentando com a semântica: «Fumar significa tirar fumaça de um cigarro. Mas, para isso, é necessário que o cigarro esteja aceso. Ora, o meu, como vê, está apagado.»
O fiscal chamou o guarda-freios. Conferenciaram. Intimaram. Ameaçaram. Deverá ter saído fumo de tais cabeças pensantes. Por fim, chamaram a guarda que não teve outro remédio que não fosse conduzir o antigo director do Diário de Notícias à esquadra do Teatro Nacional, onde os grandes reclames já chamavam a atenção dos transeuntes para a gala. Esclareceu-se a controvérsia, Schwalbach não chegou a ser preso, mas fez questão de chamar os jornalistas para dizer que o fora. O seu nome voltou a ser falado em toda a cidade.
A gala do dia 26, segundo o Diário de Notícias, estava à pinha.
É assim que se vende um produto: com histórias novas e atrevimento. Que aliás parecem faltar ao novo Diário de Notícias que ontem cumpriu só meio desígnio – foi diário, mas não deu notícias.
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Schwalbach e Castro numa notícia do ABC, 26 de Junho de 1924 |