Granada, 29. A minha história favorita de Granada não tem que ver com o Alhambra. Está associada à Abadia do Sacromonte e envolve uma das maiores f alsificações da história. Conto a versão abreviada e excessivamente simplificada.
Mundial de 1966. Eusébio dá nas vistas e chama todo o tipo de aventureiros. Uma marca de lâminas de barbear quer patrocinar o craque, mas não há ainda empresários, nem advogados. Eusébio não fala inglês. Pede ajuda a um calmeirão que se desenrasca bem em Londres (trabalha então para a BBC e para a Associated Press). Hernâni Santos negoceia por ele. Arranja-lhe dinheiro. Nao escreve sobre o tema para não criar invejas em Lisboa, nem atenção das finanças. Minutos depois, com os bolsos cheios, Eusébio volta ao hall do hotel. Reencontra Hernâni Santos. “Acho que podíamos ter extraído mais aos tipos, pá. E o Coluna também acha que sim.” Primeira lição: os craques do mundo podem ter pés de barro.
Munique, 1972. Um repórter desportivo do Diário de Lisboa monta uma das grandes trapaças do ano. Faz-se fotografar numa fila da aldeia olímpica, logo atrás do campeão olímpico Valery Borzov. No instante exacto do disparo, faz uma pergunta inócua ao soviético. Pela foto, parece uma conversa. O redactor manda para Lisboa uma sensacional entrevista, inventada do princípio ao fim. O jornal publica e só descobre a trama dias depois. Hernâni Santos, um dos responsáveis, dá uma bronca épica ao infractor, mas não o despede. Sabe por experiência própria que a pena capital não se justifica à primeira ofensa.
Lisboa, 1979. Mega Ferreira congela perante as câmaras de televisão. Apresenta o programa de notícias da RTP 2, uma aposta directa da direcção de Informação de Hernâni Santos, e fica largos segundos parado, em silêncio. É uma bronca num canal que ainda está a provar a sua razão de existência. Pede-se a cabeça do jornalista. Hernâni defende-o apesar das pressões. No jornalismo, mandam os jornalistas. Pouco depois é Hernâni quem bate com a porta. “Não pactuo com filhos da puta.”
Goa, 1980. Vassalo e Silva regressa ao local onde se rendera duas décadas antes. É uma cerimónia de reconciliação entre o novo poder democrático português e o regime indiano. O tom, porém, é azedo. Vassalo e Silva é condicionado a pedir desculpa à Índia, em nome de Portugal. Um embaraço diplomático. Só um jornalista está lá – Hernâni Santos, pelo Expresso. “Dá trabalho ter sorte.”
Castelo Branco, 1981. Um contacto no mundo da espionagem britânica avisa Hernâni Santos de que um homem condenado por traição durante a Segunda Guerra Mundial está vivo em Portugal. A equipa do Tal & Qual descobre-o em Castelo Branco. É um discreto professor de liceu. Há quem não queira publicar a história para poupar o espião nazi ao embaraço. “Publicamos os factos, o público fará juízos morais.” A história sai. Como sempre saíram as histórias de Hernâni Santos.
Grato pela amizade, Hernâni. Foi verdadeiramente um prazer!
Quem já acompanhou uma prova desportiva destas por um jornal sabe que é um trabalho maçador e pouco desafiante. É como uma refeição liofilizada que sabe ao mesmo para todos. O acesso aos protagonistas é mediado através de conferências de imprensa. Observam-se cinco minutos de um treino e é preciso empolar o mínimo pormenor para encher uma página de jornal ou 5 minutos de televisão.
Em Hannover, a acompanhar a selecção do sisudo mas competente Oliveira Gonçalves, estava um pequeno grupo de jornalistas portugueses. Um deles, enviado-especial do Record, conhecido pelo humor contagiante e desrespeito saudável pelas regras, lembrou-se de apimentar o dia 13 de Junho. Quando a comitiva técnica de Angola saiu do balneário para o relvado, apontou da bancada de imprensa para um elemento discreto, à paisana, que seguia os restantes treinadores a alguma distância. Baixou a voz e anunciou para os companheiros: «Sabem quem é? É o bruxo da selecção angolana. Foi importantíssimo para o apuramento.» Angola, de facto, qualificara-se in extremis, num jogo dramático no Ruanda.
O grupo riu-se. Não pensou mais na brincadeira. Alguns sabiam que se tratava do roupeiro da selecção. Era obviamente uma graça, mas há sempre um crédulo com complexos de Bob Woodward.
Nessa noite, na peça que a RTP transmitiu de Hannover, um dos jornalistas da estação pública contou aos portugueses – sem margem para dúvidas – que a selecção angolana empregava um bruxo para melhorar o desempenho no Mundial. Juntou mais alguns pormenores da sua lavra “à fonte original” e compôs o “furo”. Foi o pandemónio. A fake-news tornara-se real.
Na conferência do dia 15 de Junho, Oliveira Gonçalves denunciou a notícia. Compreensivelmente agastado e de dedo em riste para o jornalista da RTP, lembrou que a sua equipa técnica estudara nas melhores escolas de desporto, como os portugueses. E, com razão, disse também que a notícia da bruxaria só fora plausível porque envolvia uma selecção africana. Vermelho de raiva, não parava. E quanto mais se apercebia de que parte dos jornalistas portugueses já não conseguia disfarçar o riso ou manter-se de pé, mais se enfurecia.
Angola conseguiu dois empates históricos nesse Mundial. Talvez o bruxo tenha ajudado.
Na manhã de 24 de Março de 1946, uma criada entra no quarto 43 do Hotel do Parque, no Estoril, e encontra o xadrezista Alekhine morto, sentado num cadeirão, com os restos do jantar da véspera e com um tabuleiro em situação de jogo à sua frente.
Luís Lupi, correspondente da Associated Press, corre para o Estoril. Pede emprestada uma máquina fotográfica a um funcionário do hotel e capta três fotografias no quarto de Alekhine. São imagens macabras destinadas à imprensa internacional. Nenhum jornal nacional as publica.
Há suspeitas de que Lupi compôs o cenário e até de que foi dele a ideia de colocar um tabuleiro à frente do defunto. Sempre dramático, o jornalista escreve para a sede da AP em Nova Iorque: “O gigante do xadrez, morto, parecia um cavalo derrubado”.
Foi o fio que revelaria a meada do trabalho que o Wilton e eu fomos desfiando nos últimos anos. Falarei bastante sobre este projecto nas próximas duas semanas, mas, para já, estão convidados a guardar a tarde de dia 6 na agenda. Espero ver-vos na Casa da Imprensa.
A atribuição da organização do Mundial de 1978 à Argentina fora decidida 12 anos antes, em Inglaterra, e não mereceu contestação. O cartaz oficial da prova, aliás, reproduz a saudação clássica de Juan Perón às multidões, com os dois braços erguidos. A FIFA só não contou com o golpe militar de 1976. A partir de então, ficou a braços com um problema diplomático, mas decidiu não agitar as águas.
O país sul-americano passou a ser governado por uma junta militar que fazia desaparecer pessoas e que rapidamente viu na prova uma oportunidade de limpar a sua imagem à escala global. O cartaz peronista, já amplamente divulgado, não foi substituído, mas a Junta meteu a pata em tudo e ainda hoje subsistem acusações de que a selecção da casa foi “empurrada” até à final.
Mal a bola começou a rolar (tal como vai suceder no Qatar), as críticas perderam força. Só interessava o jogo. A imprensa portuguesa estava então praticamente estatizada e poucos jornais puderam levar enviados-especiais a Buenos Aires, sobretudo porque a selecção portuguesa voltava a não marcar presença. “A Bola” foi uma das excepções — enviou Vítor Santos, o chefe da redacção, e um segundo jornalista.
Enquanto estiveram na Argentina, os jornalistas de “A Bola” (o segundo identificar-se-á se quiser porque anda por aqui) cobriram como puderam os jogos da prova. E fizeram em Buenos Aires o que Vítor Santos sempre pedia aos jornalistas no estrangeiro: crónica de costumes.
Mais afoito do que o chefe da redacção, o segundo jornalista andou pelas ruas, visitou o cemitério onde está sepultada Evita Perón, recolheu notas sobre o movimento das mães da Plaza de Mayo, que se juntavam em silêncio para chorar o desaparecimento dos filhos. Publicou o que pôde (no dia 29 de Maio, perguntava: “Um hino nacional que fala em liberdade pode ser cantado por todos os argentinos?”) e guardou os textos mais cáusticos para quando regressasse a Portugal para «não desaparecer também», como me contou.
O Mundial acabou no dia 25 de Junho de 1978 e os enviados-especiais regressaram a Lisboa.
O jornalista escreveu duas a três crónicas com as suas impressões. Carlos Miranda, o director, já estava em França, acompanhando a Volta velocipédica e Vítor Santos, ansioso pelo descanso, seguiu para férias em Portimão, o refúgio informal das chefias de ”A Bola”. Na azáfama de um jornal efervescente, Alfredo Farinha seguira para a China acompanhando uma digressão do Sporting e Joaquim Rita para o Canadá com o Benfica. Ficaram a subdirectora Margarida Ribeiro dos Reis, filha de um dos fundadores do jornal, e Carlos Pinhão, subchefe da redacção.
Os textos foram entregues. Os dias passaram e o jornal não os publicava. A subdirectora vetou-os porque continham «ofensas a um chefe de Estado» – ofensa proibida pela Constituição portuguesa. Era o argumento escolhido para não agitar águas num país ainda barricado em facções políticas e num jornal que quase sempre preferiu a prudência à temeridade. Gerou-se discussão na redacção quando o caso foi conhecido. Dividiram-se os campos, como sempre acontece. Carlos Pinhão não se pronunciou.
O processo chegou ao Conselho de Redacção, que emitiu uma nota de censura à direcção. O passo seguinte deveria ter sido a entrega do caso ao Conselho de Imprensa, nos termos da lei, mas o regresso do director acalmou as águas. “A Bola” não escreveu sobre a Junta Militar da Argentina em 1978, o país onde desapareciam pessoas sem deixar rasto.
* Versão actualizada com correcção de dois erros factuais.
Já reparou neste monumento dedicado a Dona Leonor nas Caldas da Rainha?
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Magnânima, de Maximiano Alves |
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Proposta de Leopoldo Almeida e Carlos Ramos |
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Maximiano Alves em fotografia de O Século |
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A estátua de Francisco Franco |
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A proposta de Anjos Teixeira |
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A proposta de António da Costa |
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A proposta de Francisco dos Santos |
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A proposta de Júlio Vaz |
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A proposta de Luís Fernandes |
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A proposta de Norte Júnior |
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A proposta de Simões de Almeida, Leopoldo de Almeida e Carlos Ramos |
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A Imprensa da Manhã, 27 de Novembro de 1921 |
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Pode um mistério estar à vista de todos durante quatrocentos anos e não ser descodificado?
Atente-se na história desta Madona com o Menino e Anjos Músicos (1415). No início do século XIX, pouco se sabia em Portugal sobre o pintor Álvaro Pires, de Évora. Giorgio Vassari, na sua memória do pintor renascentista Taddeo Bartoli, mencionara-o vagamente, como Alvaro Piero di Portogallo. José da Cunha Taborda, em Regras da Arte da Pintura, fazia-lhe alusão em 1815, repetindo a informação do historiador quinhentista. Em 1846, G. Milanesi acrescentara um dado importante, confessando ter visto um quadro assinado pelo pintor numa igreja dos arredores de Pisa. E pouco mais.
Em 1922, o médico Reinaldo dos Santos visitou Itália. Ia em missão a um congresso médico em Génova, mas, apaixonado por história de arte e amigo de José de Figueiredo, director e fundador do Museu Nacional de Arte Antiga, adicionou um itinerário invulgar ao périplo. Visava sobretudo uma igreja remota, a Igreja de Santa Croce de Fossabanda. Dando «um pequeno repouso às minhas preocupações profissionais», decidiu investigar. Pisa, porém, mudara muito. De igreja em igreja, Reinaldo acabou por terminar a busca num templo meio arruinado, ladeado pela cerca de um convento.
«Na galilé, toda especada em esporas, floriam sobre os fustes desaprumados alguns capitéis de velha arte pisana. A sua antiguidade pareceu-me de bom augúrio», escreveu numa crónica para o Diário de Lisboa no dia 10 de Julho de 1922. «Entretanto, um franciscano abriu o portal e logo, ao ouvir declinar a minha nacionalidade e o interesse em visitar a igreja, perguntou-me, sorrindo: “Vem então para ver o Álvaro?” Alguns minutos depois, toda a incerteza estava maravilhosamente dissipada. Não era o deslumbramento de me encontrar diante de uma das mais encantadoras madonas que a arte do quattrocento deixara no vale do Arno. Era, sobretudo, a emoção de ver – distintamente escrita em português – a assinatura do artista, cujas letras brilhavam diante dos meus olhos comovidos: “Álvaro Pires d’Evora Pintou”.»
O artigo de Reinaldo dos Santos no Diário de Lisboa (que precedeu a publicação de um opúsculo sobre o caso) motivou uma réplica de Carlos Lobo, outro erudito amador, que garantia ter visto o mesmo quadro «num dia de Inverno de 1912» enquanto andava «solitário, percorrendo a grande nave da Igreja de San Francesco, em busca do panteão da família Della Gherardesca a que pertencia o famoso conde Ugolino». Ali encontrara um frade que, vendo-o interessado, lhe perguntou se não quereria ver o «quadro de um espanhol» numa igreja próxima. A obra estava então escondida «por detrás de uma cortina de chita encarnada. O frade puxou um cordelinho e o quadro apareceu!»
Lobo teve a mesma epifania de Reinaldo dez anos depois, ao contemplar a assinatura de Álvaro Pires. De regresso a Lisboa, escreveu a José de Figueiredo e deu-lhe conta do achado. O director do MNA escreveu um artigo em O Século, de 5 de Março de 1913, contando a descoberta singular.
Três dias depois do artigo de Carlos Lobo, no dia 15 de Julho de 1922, Reinaldo encerrou a polémica: «Nada mais fútil nas questões históricas do que uma discussão de prioridades», começou. «Nem eu, ao procurar intencionalmente em Santa Croce, a Madona de Álvaro, nem V. Ex.ª ao tê-la encontrado inesperadamente em Pisa, a descobrimos senão para nós. Para a história da arte, foi Milanesi quem, no meado do século passado, a descobriu.»
Reinaldo teria mais concorrência nesse mesmo ano, pois também Vergílio Correia, o historiador de Coimbra, publicou um opúsculo com informação biográfica inédita sobre o pintor alentejano. Quem, afinal, descobriu para os portugueses a Madona de Álvaro Pires? Carlos Lobo? José de Figueiredo? Reinaldo dos Santos? Vergílio Correia?
Na verdade, não parece ter sido nenhum deles e a resposta não é particularmente gloriosa. Joaquim Vasconcelos, o historiador de arte do Porto, publicou, em 1896, um volume monumental sobre o grande Francisco de Holanda e, nele, en passant, contava a história da Madona de Pisa. Estava tão obcecado por Francisco de Holanda e Albrecht Dürer que não valorizou excessivamente que tinha em mãos o primeiro pintor português de Quatrocentos.