quarta-feira, outubro 06, 2021

Os ovos de Velázquez

 


       Foi um dos trabalhos mais ousados do jovem Diego Velázquez e poderia estar em Portugal. Uma Velha Cozinhando Ovos terá sido pintado em 1618, aos 19 anos, pelo artista sevilhano (neto aliás de um portuense). 
       Já contém as marcas que farão de Velázquez o artista de referência no século XVII espanhol: o jogo entre claros e escuros, a definição criteriosa do movimento e das personagens, a representação das actividades de quotidiano que tanto chocavam os contemporâneos. 
       Uma década mais tarde, Vicente Carducho, pintor e historiador, lastimará a representação na tela “dos homens de trabalho, sem conhecimento ou reflexão, que degradam a arte nobre para noções vulgares, como hoje vemos nas representações dos bodegones”. O catálogo do Museu Metropolitano de Nova Iorque consagrado à exposição do pintor em 1989-90 não teve dúvidas em considerar que Carducho escrevia sobre Velázquez. 
       O quadro, pintado por Velázquez antes de se radicar em Madrid, viajou mais do que muitos seres humanos: sabe-se que, no século XVIII, já não estaria em Espanha, vendido para a Bélgica e depois para Paris. Foi comprado num leilão em 1813 por Samuel Peach, que o adquiriu por engano – julgava comprar uma obra de Bartolomé Murillo e levou um Velázquez! Reconhecida a autoria, a obra foi vendida em mais duas ocasiões até chegar, em 1863, às mãos de Francis Cook. 
       Este industrial têxtil inglês escolhera então Monserrate para passar as temporadas de Verão. Reconstruiu o palácio, criou os jardins e começou a constituir uma colecção ecléctica em Sintra, semelhante à dos velhos gabinetes de curiosidades: um busto romano aqui, uma estátua grega acolá, sarcófagos e múmias, quadros clássicos e modernos. Em 1863, adquiriu esta obra, embora não se saiba se chegou a estar exposta em Sintra ou apenas na sua residência londrina. 
       O tempo passa e as fortunas esfumam-se. As duas guerras mundiais abalaram as finanças familiares. As três gerações seguintes procuraram manter incólume a colecção artística, bem como o jardim e palácio de Monserrate. Em 1929, foi feito um primeiro contacto para tentar que o governo português adquirisse a propriedade e recheio, evitando o loteamento. Em vão. 
       Em 1946, a família fartou-se de esperar e iniciou a venda rápida de todos os bens móveis. Houve um leilão em Lisboa, despachado em três dias. Os directores dos principais museus nacionais compareceram, mas limitaram-se a seguir com os olhos as peças que voavam para o estrangeiro. Monserrate foi vendida a um industrial português que, um ano depois, foi “persuadido” a vender ao governo. Já estava então sem recheio e em acelerado processo de decomposição. 
       Saúl Saragga, o industrial, pretendia dividir Monserrate em várias parcelas. Como notou a dissertação de mestrado de Marta Ribeiro, foi necessário que Flávio Resende, director da Faculdade de Ciências de Lisboa, intercedesse directamente junto de Salazar para que o processo irreparável fosse travado. Em 25 de Maio de 1949, a velha propriedade de Cook tornou-se, por fim, pública. 
       E Velázquez? A família manteve o quadro na sua posse por mais uma década, talvez ciosa do carinho que o patriarca mantivera pela velha cozinheira. Em 1955, finalmente, os Trustees da Família Cook cederam-no à National Gallery de Edimburgo, onde está exposto desde então. Assim fugiu um Velázquez que poderia cá estar.

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