Quando o abade Bringas foi finalmente punido pelos calores
revolucionários franceses e sujeito à mesma pena de Robespierre, a multidão
parisiense esperava da boca do antigo clérigo espanhol uma última explosão de
raiva. O homem que apregoara a necessidade de o cadafalso produzir uma limpeza
sanitária na sociedade francesa, o homem que jurara que a Revolução romperia a
ordem burguesa via-se finalmente encurralado. Esperava-o a democrática guilhotina.
Bringas tomou fôlego e, fiel à matriz disruptiva, gritou para a multidão: «Ide
todos para o caralho!» Segundos depois, a sua cabeça tombou.
Acontece às vezes nos filmes: a personagem secundária “rouba” o holofote
e toma conta da acção. Na literatura, é mais raro – afinal, é o autor que
controla todos os cordelinhos da narrativa, assumindo as decisões. Mas essa é a
primeira conclusão após a leitura de Homens
Bons, de Arturo Pérez-Reverte (Asa, 2016). Bringas era uma personagem
acessória, não mais do que o guia útil para introduzir os verdadeiros actores
principais na complexidade de Paris durante o reinado de Luís XVI. As suas
invectivas, porém, tornam-no imperdível. E Bringas “rouba” mesmo todo o
protagonismo.
Reverte utiliza na obra uma descrição real de dois literatos da Academia
Espanhola das Ciências – académicos envelhecidos com a missão de adquirirem em
Paris a primeira edição de A Enciclópedia
de Rousseau, D’Alambert, Diderot e restantes iluministas. É, portanto, sobre
factos reais que o livro se ergue.
Através das cartas de um dele, Reverte reconstitui a intriga, imaginando
os obstáculos da viagem típica do século XVIII agravada pelos actos de
sabotagem de um bandoleiro contratado por uma dupla improvável de conspiradores
científicos. «A guerra faz estranhos parceiros de cama», diz Shakespeare em A Tempestade. Também aqui um iluminista
receoso da entrada demasiado rápida do conhecimento em Madrid junta esforços
com um conservador demasiado temeroso da emancipação do espírito produzida pelo
Iluminismo.
A narrativa – talvez a melhor de Pérez-Reverte – é interrompida regularmente para comentários explicativos do autor.
Com mestria, Reverte quebra a acção para nos trazer ao presente,
valorizando o processo de aquisição de informação para cada pedaço da
narrativa. Ali se explicam todos os passos, todas as fontes – como notas de
rodapé dignificadas no corpo da narrativa. Por vezes, até se prestam contas ao
leitor, justificando por exemplo o salto narrativo desde a fronteira
franco-espanhola até Paris por nada ter ocorrido que merecesse justificação.
A interrupção final é preciosa. Pérez-Reverte justifica a dificuldade de concluir a história. Quase pede desculpa por o final ser mais abrupto e implausível do que a narrativa deixava antecipar. É um dos grandes livros de ficção traduzidos para português no último semestre (infelizmente, para o português do Acordo Ortográfico). Vale bem a leitura!
A interrupção final é preciosa. Pérez-Reverte justifica a dificuldade de concluir a história. Quase pede desculpa por o final ser mais abrupto e implausível do que a narrativa deixava antecipar. É um dos grandes livros de ficção traduzidos para português no último semestre (infelizmente, para o português do Acordo Ortográfico). Vale bem a leitura!
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