sábado, abril 17, 2021

Quem corre tropeça


 

    Ontem, num estimulante webinar promovido pelo Museu da Farmácia e pelo João Neto, debateu-se o tema da mediação das publicações jornalísticas entre a comunidade de especialistas e o público. 
    Não se argumentou, naturalmente, que os media são o único veículo de transmissão – muitos cientistas fazem hoje by-pass a essa mediação, comunicando directamente com as comunidades interessadas através de podcasts, páginas de Internet, vlogs e afins e são bem sucedidos. A rede de centros de ciência e museus fornece igualmente uma alternativa eficaz de disseminação, mas uma das questões que mais me interessou foi a do tempo consagrado à mediação. 
    Gosto sempre de dar o exemplo da descoberta de Machu Picchu. Hiram Bingham identificou a cidade perdida dos incas em Julho de 1911 (há indícios de que outros já lá tinham estado, mas isso é conversa para outra ocasião). Guardou a descoberta para o seu diário e, nas campanhas desse ano e do ano seguinte, acumulou informação, fotografias, desenhos e… artefactos. Passaram quase dois anos, até Abril de 1913, mês em que a National Geographic consagrou uma edição às campanhas de Bingham, anunciando finalmente a descoberta ao público. Como seria hoje? 
    Hoje em dia, pasmo com frequência quando vejo nas redes sociais alguns arqueólogos a divulgarem de imediato os achados sonantes, ainda cobertos de poeira, sem qualquer tempo de reflexão ou ponderação sobre o seu significado ou a sua comparação com acervos daquele e de outros sítios arqueológicos. Com que fim? 
    Consigo perceber a urgência quando há donos de obra. Os municípios (particularmente em ano eleitoral) vivem com a obsessão de mostrar serviço. A emergência de um artefacto “popular” é pretexto para uma campanha massificada de divulgação, disparando em todas as direcções, simplificando em dois parágrafos a importância deduzida da descoberta (quantas vezes exagerada) que, por sua vez, serão lidos superficialmente (ou até partilhados em função do título). A mentalidade de manada dos meios de comunicação faz o resto, replicando ad nauseam o press release original, sem questionamento ou contextualização. Ninguém acrescenta uma voz complementar. Ninguém contesta a premissa de partida. Passadas 24 horas sobre a massificação de gostos, partilhas e comentários inocentes e tontos, o que fica do processo? Uma vaga ideia de que alguém descobriu alguma coisa que deve ter a sua importância. 
    Em 1896, o Museu do Louvre cometeu um dos seus piores erros. Foi-lhe apresentada uma antiga tiara de ouro com a alegação de que pertencera ao rei cítio Saitafarnes. A nova aquisição figurou em posição proeminente na sala até Adolf Furtwängler, um arqueólogo alemão, questionar a sua autenticidade. A glória do Louvre não durou muito. Em 1903, um ourives de Odessa admitiu que criara a famosa coroa a pedido de filantropos russos e que nunca lhe passara pela cabeça as voltas que a peça daria ou a alegação de que fora burilada há milénios. 
    Em Romeu e Julieta, o frei de Shakespeare avisa Romeu: “Muita calma. Quem corre só tropeça!” Talvez valha a pena pensar (também) nisso.

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