sexta-feira, dezembro 31, 2004

Dos jornalistas e cientistas – parte 2

No último "Post", falei das dificuldades de acompanhamento do jargão científico e de alguma relutância dos cientistas para lidar com esse elemento invasor que é o jornalista. Hoje, creio que vale a pena abordar o outro pilar em que assenta a desconfiança científica: a triagem dos temas ou o agendamento.
Como se processa a escolha dos materiais a noticiar numa redacção? Tenho escutado dois tipos de críticas: por um lado, alegam os mais extremistas, o processo é aleatório; por outro, afiançam que a escolha de notícias é norteada pelas relações pessoais cultivadas entre jornalistas e cientistas.
Por estranho que possa parecer, estas duas leituras não estão totalmente incorrectas.
O processo de triagem noticiosa pode ser arbitrário, na medida em que o jornalista pode esbarrar com uma ideia ou com um projecto de forma totalmente acidental. Ou porque seguia uma pista que o levou para outro território; ou porque acidentalmente falou com um perito, que o colocou no trilho para outra história; ou ainda porque, se for diligente e fizer contactos exploratórios, esbarrou com um tema inédito e prometedor. Este fio de investigação é, admito, irritante para o observador científico. Tudo o que nele é ordem e método eriça-se com esta teoria da desordem e do caos. Mas algumas das melhores histórias nascem assim, sem qualquer indução propositada por parte de uma fonte. Não é comum, mas acontece.
Falemos de relações pessoais. É do senso comum que um jornalista voltará a falar com uma fonte que foi rápida, prestável e confiável. Mesmo que pretenda manter um leque amplo de contactos, o repórter tenderá a socorrer-se daqueles que lhe mereceram mais confiança no passado. E é naturalmente com eles que abordará as novidades do sector: quem publicou, quem se "estampou" no último projecto, o que se deve esperar da administração pública. Nas várias áreas em que a minha agenda de contactos se divide, tenho um número razoável de fontes em quem confio e que me fornecem informação oficiosa, mas razoavelmente segura. Muitas vezes, nascem notícias destas conversas oficiosas. É um processo normal e habitual em todas as secções de um jornal.
Terá um investigador desconhecido as mesmas hipóteses de acesso aos media do que um cientista que já seja conhecido do jornalista? Creio que não. Da mesma forma que nos restantes campos de actividade jornalística, há relações pessoais que abrem portas e que tornam mais provável o sucesso de comunicação de X e não de Y. Mas sublinho que isso não deve ser confundido com favoritismo ou clientelismo. O mero acesso ao repórter não garante publicação. Garante porventura a oportunidade de explicar a sua tese, mas não torna um projecto ou um investigador livre de qualquer escrutínio. Essa mensagem, creio, custa a passar. Para alguns investigadores, a cumplicidade entre alguns cientistas e a comunidade jornalística torna-os menos "sérios". «Dedicam tempo a mais à propaganda e tempo a menos à investigação», dizia-me há semanas um respeitável decano da investigação científica. Espero que gradualmente esta renitência em falar com e para leigos se esbata. Mas é certamente uma condicionante para quem opera nesta arena tão específica.
É inquestionável, porém, que o caudal principal de notícias científicas produzidas num jornal não tem origem nestes dois processos. É gerado, pelo contrário, pela torrente de eventos preparados, de relatórios publicados, de prémios atribuídos, de comunicados difundidos ou de obras anunciadas. Por outras palavras, abrimos as secções de ciência e grande parte das notícias resulta de informações pouco espontâneas e provavelmente partilhadas entre os vários órgãos de comunicação.
Um colóquio ou conferência gera inevitavelmente um fluxo de abordagens noticiosas comuns aos vários jornais; uma tomada de posição de uma fonte oficial ou não oficial (mas com razoável acesso ao campo mediático), se bem preparada pela legião de assessores que povoa hoje as instituições, tem boas probabilidades de ser noticiada uniformemente.
É preocupante que, nos tempos que correm, cada vez mais espaço noticioso é dedicado aos mesmos temas ou, por outras palavras, cada vez mais eventos são elaborados para os media. O processo rouba tempo e espaço à investigação jornalística. E priva os leitores de diversidade.
Para os repórteres, é cómodo dispor de estas ferramentas que tornam o trabalho mais simples e garantem, perante os editores, uma defesa. Cobri este tema, os meus rivais fizeram o mesmo. Pelo que este tema era forçosamente o mais importante da agenda do dia. Quod erat demonstrandum. A lógica é torcida, mas válida.
Em que ponto ficamos então nesta discussão já longa sobre jornalistas e cientistas? Teria razão o meu interlocutor da semana passada, que afiançava que os jornalistas são preguiçosos, parciais e imprevisíveis? Acredito que há um meio termo e que esta apreciação é injusta, até porque tende a colocar todos no mesmo saco. As secções de Ciência e Ambiente são relativamente jovens nos vários jornais generalistas. Lutam ainda por afirmação e raramente merecem honras de destaque. Acreditemos que, à medida que se ganhar espaço e notoriedade, ganhar-se-á também diversidade.
Votos de um bom 2005 aos leitores do Ecosfera.

segunda-feira, dezembro 27, 2004

Dos jornalistas e cientistas – Parte 1

Não é segredo para ninguém que os jornalistas não são especialmente apreciados nas universidades, nos institutos ou laboratórios de investigação, nos museus ou salas de exposição. Salvo excepções, o cientista não se sente à vontade quando é forçado a comunicar com leigos, sobretudo porque a prática jornalística dispensa a sua revisão técnica e prefere vulgarizar o seu discurso para o tornar acessível à generalidade da audiência.
Pela natureza do órgão de comunicação em que trabalho, contacto regularmente com investigadores. Muitos mostram desconfiança perante a intrusão do jornalista no seu espaço e, acredito, justificam-na precisamente porque no passado (recente ou não) tiveram más experiências no campo da divulgação. Invariavelmente, escuto as perguntas: quer que eu escreva o texto? Posso rever o seu manuscrito antes de publicação? As perguntas revelam uma genuína desconfiança perante as escolhas jornalísticas e colocam em causa uma das funções primordiais do jornalismo contemporâneo: a mediação entre a fonte e o público.
Na semana passada, um perito queixava-se abertamente da leitura que os meios de comunicação fizeram da conferência das Nações Unidas dedicada às alterações climáticas. Dizia ele que, apesar de todas as apresentações preparadas para Buenos Aires, todos os media analisaram a conferência como um falhanço político tendo em conta os objectivos do protocolo de Quioto. Dizia ele ainda que não entendia a unanimidade de todos os jornalistas na escolha deste ângulo. E queixava-se da repetida preguiça jornalística no que toca a ler relatórios extensos e a dominar pastas complexas. «Eu preparo-lhe um documento de 200 páginas e sei que você só lerá as duas páginas de conclusão. Delas fará um resumo abusivo e provavelmente exagerado. Destacará as excepções porque elas lhe parecerão curiosas ou pitorescas. Folheará o manuscrito e porventura parará num ou noutro destaque, que lhe pareça desconhecido para si e para o público. E talvez ainda escreva um texto de pendor alarmista. Por que motivo me aborreço eu com a divulgação?» – estas foram as suas palavras, reproduzidas aqui quase ipsis verbis.
Não nego a maioria destas acusações, embora também acredite que elas sejam hiperbolizadas por alguém que tem sido infeliz na sua relação com os jornalistas. Os jornalistas são inundados diariamente por torrentes de informação que não podem triar com rigor, sob risco de nada mais fazer do que ler documentos. Por excesso de trabalho, por pressões relacionadas com o fecho do jornal e com o espaço disponível, o jornalista tem de se socorrer de procedimentos técnicos que lhe permitam acabar um texto a tempo, mantendo o máximo de rigor possível. É por isso forçosamente que existem sumários das comunicações, resumos e algum enquadramento contextual na abertura ou no fecho de dossiers entregues aos media. É por isso também que o divulgador científico deve encarar a redacção dos mesmos com especial cuidado, pois esses serão os trechos mais lidos e utilizados como ponto de partida.
Naturalmente, o jornalista conscencioso não termina o seu trabalho com a leitura dos sumários. Usa-os como elemento de contexto, que colocam a pesquisa num determinado momento histórico de investigação (com tudo o que foi feito atrás e com o objectivo que se pretende alcançar com este e outros projectos de investigação). Se lê algo que desperta a atenção, procura o capítulo de desenvolvimento da ideia e recolhe mais dados. Fala então com o perito e procura confirmar a correcção da sua leitura, ao mesmo tempo que tenta colher pedaços de discurso directo. Se puder, fala ainda com alguém que também tenha trabalhado sobre o tema e tenta descobrir mais. Se o trabalho se insere numa corrente global; se é único e se essa unicidade o torna mais ou menos fiável; se a metodologia é partilhada por outros investigadores; enfim, faz uma avaliação às credenciais do perito contactado – por muito que isso aborreça a comunidade científica.
Quero eu dizer com isto que, seguindo esta linha de procedimentos, não cometemos erros? Lamentavelmente, não. Os erros são comuns, sobretudo porque se trata de uma área com múltiplos campos de especialização. Se eu domino razoavelmente a arqueologia e a sua terminologia, perco-me com facilidade quando falo com astrónomos. Falo abertamente com geólogos e tenho uma ideia muito razoável da evolução da disciplina em Portugal, mas tenho de pedir ao especialista em biotecnologia para falar devagar e soletrar termos que escuto pela primeira vez. E, como eu, julgo que a maioria dos jornalistas se defronta com a mesma dificuldade: há áreas científicas de que gostamos mais, que estudámos mais, que cultivámos mais e outras que consideramos mais inacessíveis. Lamentavelmente, na generalidade dos meios de comunicação, não é possível dividir os jornalistas por sub-áreas. Normalmente, há poucos repórteres para cobrir a área científica e estes abrangem por isso uma área inimaginável do conhecimento.
Esta limitação torna o jornalismo científico uma tarefa apenas para cientistas? Discordo parcialmente. No órgão de comunicação onde trabalho, não é invulgar socorrermo-nos dos peritos para redigir textos. Com essa circunstância, ganhamos rigor informativo e respeitabilidade. É sobre os ombros do investigador que recai o peso das afirmações e comparações publicadas. É a ele que pedirão satisfações. E o público inevitavelmente respeita mais o texto redigido por um especialista.
Mas esta abordagem tem necessariamente lacunas. Nem todos os cientistas sabem traduzir a realidade da sua área para a audiência. Nem todos sabem explicar ordens de grandeza. Nem todos dominam técnicas narrativas, que permitem manter o leitor interessado até ao fim. Por outro lado, o cientista terá tendência a abordar apenas o seu trabalho na área, esquecendo ou diminuindo o contributo de rivais.
É por isso que o jornalista científico se traduz como um meio termo entre a pedagogia e o exercício tradicional do jornalismo, como explica o investigador espanhol Carlos Elias, da Universidad de La Laguna. O jornalista científico é um mediador, um intérprete de uma mensagem complexa. Cabe-lhe conferir sentido, mesmo que essa tarefa implique a simplificação dos aspectos mais técnicos e metodológicos da investigação. Ao jornalista científico cabe o papel fundamental de fornecer informação ao público sobre esta área tão inacessível, com protocolos tão específicos e linguagens tão exclusivas, que é a ciência. Em simultâneo, tem de triar os temas verdadeiramente significativos para a sua audiência, o que o obriga por vezes a julgar o mérito dos vários projectos científicos à sua "disposição".
Jean Rostand, vencedor do prestigiado prémio Kalinga das Nações Unidas, enunciou na década de 1960 algumas das vantagens da popularização do conhecimento e da investigação científica. De acordo com o investigador, "a popularização aperfeiçoa e corrige as lacunas da educação escolar, desperta a vontade nos mais jovens de prosseguir a carreira da pesquisa, elucida e acalma o público quanto ao poder e eficácia da ciência criativa, cria elos de ligação entre os cientistas de distintas áreas que de outra forma não teriam acesso ao trabalho dos colegas e tenta os informar os decisores políticos com um estilo mais acessível do que o dos relatórios técnicos".
Terei eu convencido o meu interlocutor da semana passada? Duvido. Mas voltarei ao tema nos próximos dias.
(Continua)

quinta-feira, dezembro 23, 2004

À volta da co-incineração

José Sócrates é teimoso. Não é novidade. A teimosia já vem de longe e quem com ele contactou no período de gestão dos governos socialistas (primeiro como secretário de Estado e depois como ministro) sabe que o secretário-geral do Partido Socialista (PS) não muda facilmente de opinião.
Há quinze dias, analistas e rivais acusavam-no de ainda não ter proposto uma ideia que fosse para o governo da nação. Prepara-se para herdar o trono e, para tal, limitou-se a capitalizar com a derrocada santanista e a gerir silêncios. No sábado, porém, e graças a um artigo no "Diário de Notícias" que o acusava de abandonar o projecto de co-incineração que preoconizara para o tratamento de resíduos perigosos, o seu velho cavalo de batalha no Ministério do Ambiente, Sócrates passou ao ataque. Anunciou a recuperação do projecto em moldes semelhantes aos idealizados em 1998/1999, com as mesmas condicionantes. E no mesmo local. Gerou-se um pandemónio.
Sócrates é teimoso; Sócrates é casmurro; Sócrates não aprende. Com o frenesi próprio das campanhas, rivais e observadores responderam a quente. Muito se escreveu entretanto sobre a co-incineração. Carlos Encarnação, presidente da Câmara Municipal de Coimbra, prometeu manifestações e protestos vigorosos; Pedro Silva Pereira, o homem do Ambiente no actual PS, corrigiu as mentes mais apavoradas, recordando que a co-incineração não seria aplicada a todos os resíduos, mas sim a uma pequena percentagem para a qual, de momento, não há soluções de tratamento ou valorização; a população da lusa Atenas refilou; alguns ambientalistas prometeram luta cerrada contra o projecto. E entre os gritos de esfola e mata, Nobre Guedes, ministro demissionário do Ambiente, resolveu também entrar na dança. A meu ver, o ministro foi a jogo sem trunfos, fazendo "bluff" com cartas que não tinha. Veremos o desenlace da partida de póquer nas próximas semanas…
Há dias, Nobre Guedes tinha concedido uma entrevista ao "Público" em que alvitrava a barbaridade de ter feito mais e melhor em quatro meses do que Sócrates em seis anos no mesmo ministério. Pura bazófia. Quando Sócrates foi ministro do Ambiente, Guedes provavelmente ainda pensava que um aterro era… um local onde os helicópteros poisavam! Ou, com um toque de malícia, que se podiam construir terreiros no Parque Natural da Arrábida sem dar cavaco às autoridades. Nobre Guedes, dizia eu, jogou forte e usou cartas agradáveis aos olhos ambientalistas. Anunciou a solução dos centros integrados de recuperação, valorização e eliminação de resíduos perigosos (CIRVER) como solução moderna e obviamente mais eficaz.
Não discuto os méritos da co-incineração ou dos CIRVER, nem os pressupostos científicos em que ambos assentam. Verdade seja dita, nestes últimos dias, falou-se muito e bem de resíduos industriais, perigosos e menos perigosos. Creio que não restam grandes dúvidas de que os CIRVER oferecem uma solução mais completa, embora não abranjam todos os resíduos.
Todavia, neste intrincado jogo de propostas e contrapropostas, ainda há cartas por jogar. Nobre Guedes devia ter dito que os municípios que receberão os CIRVER anunciados (Marco de Canaveses e Chamusca) ainda não sabem que resíduos serão tratados nos seus concelhos. Mais: segundo o "Jornal de Notícias", a CM Marco de Canaveses só discutiu a proposta na semana passada. Só então se soube a localização da unidade. Recordo que o ministro acusou Sócrates de optar por uma solução tacanha e ultrapassada quando ele tinha uma nova solução em «fase avançada». Leu bem. Em fase avançada. Um projecto que foi debatido na CM Marco de Canaveses há oito dias já está em fase avançada. Na Chamusca, embora a edilidade conheça a intenção governamental há três anos, preparam-se ainda documentos e visitas técnicas e não se conhece o local de instalação do CIRVER. É este ponto que verdadeiramente me aborrece. Um plano pensado em cima do joelho é apresentado como se uma aposta de longo prazo se tratasse. Alguém acredita?
Agora que as populações dos dois municípios souberam que terão no concelho centros integrados para tratamento de resíduos perigosos imagino o alvoroço – despropositado, é óbvio, mas tão inevitável como o dia suceder à noite. As evocações de tragédias. As críticas. As manifestações. O caos.
Um velho sábio dizia-me há tempos que o atraso científico de um país se mede quando existem mais astrólogos do que astrónomos. Tal é o nosso nível de cientificidade!
Perante tudo isto, que valor tem a proposta de co-incineração do engenheiro José Sócrates? Não é obviamente a solução perfeita. É melhor do que o depósito em aterro. É pior do que o tratamento em CIRVER. Todavia, não vejo motivo real para opor a co-incineração aos CIRVER, quando ambos são complementares. E reafirmo que, perante as evidências, os centros integrados estão apenas numa fase embrionária. Nem sequer são um bebé na incubadora, diriam as más línguas.
Sócrates é teimoso? Definitivamente. É vaidoso? Pelo que conheço, diria que sim. A sua solução é despropositada? Sinceramente, não me parece.

quarta-feira, dezembro 22, 2004

O decreto maroto

Algumas notícias merecem reflexão e não devem ser comentadas a quente, sob risco de se cometerem apreciações injustas. Tive essa precaução a propósito de uma investigação do jornal "Público", assinada por Ricardo Garcia e publicada em meados da semana passada. Agora, passados que estão mais de sete dias e depois de verificar que a "lebre" foi levantada e rapidamente varrida para debaixo do tapete, é legítimo concluir que o assunto está terminado e podem, por isso, ser feitos juízos de valor. E, garanto-vos, o caso não é para menos.
A história conta-se em poucas palavras. O texto do decreto-lei 233/2004 sofreu alterações não autorizadas e não assumidas, produzidas depois de os Ministérios do Ambiente e da Economia chegarem a acordo quanto à versão final. E o que é o decreto-lei 233?
É a transposição para a legislação portuguesa da directiva comunitária que institui o comércio de emissões no nosso país. Lamentavelmente, a versão emendada e publicada modifica as penalizações acordadas para as indústrias que desrespeitem os limites de emissões de dióxido de carbono.
Escreve Ricardo Garcia: «O decreto-lei (…) traz não só um valor errado – 99 euros, ao invés de 100 – como fixa um limite máximo para estas multas: 14.400 euros até 2008 e 35.640 euros a partir de então. Na prática, as empresas que não cumpram os limites pagariam multas apenas por 360 toneladas de dióxido de carbono em excesso – um valor irrisório, se comparado com a dimensão do mercado de emissões. A térmica de Sines, por exemplo, emite por ano, em média, cerca de oito milhões de toneladas de dióxido de carbono.» Quer isto dizer que a mão anónima que modificou valores e disposições legais pretendia beneficiar largamente as indústrias poluidoras, desrespeitando o espírito da directiva comunitária.
O problema foi entretanto resolvido com uma nova decisão do Conselho de Ministros. Não é isso que me preocupa. Duas perguntas assaltam-me a mente desde o texto publicado no jornal: se não tivesse existido a investigação de Ricardo Garcia e a consequente exposição pública, alguém detectaria o erro publicado no "Diário da República" e agiria em conformidade? Mais grave do que isso: quem alterou as disposições legais?
É naturalmente possível que, na redacção do "Diário da República" tenham sido digitados erradamente os valores. Mas não é provável. Inclino-me, eu e a maioria das pessoas lúcidas, para um erro voluntário, uma manipulação grosseira, digna do chico-espertismo nacional, que tentou distorcer o espírito da lei como um miúdo que emenda a nota do teste antes de o levar ao encarregado de educação. A identidade do autor da emenda fica naturalmente ao sabor da imaginação de cada um. Eu tenho o meu suspeito.

sábado, dezembro 18, 2004

Activismo e jornalismo

Há dias, um leitor comentou, a propósito da nota que escrevi sobre o equívoco do Ministério do Amiente de não se deslocar a Buenos Aires, que o jornalismo tendia cada vez mais para o activismo. Ou, por outras palavras, que o exercício do jornalismo era incompatível com a adesão a movimentos cívicos, partidos políticos ou correntes ideológicas.
Tenho sobre o tema uma opinião muito particular e estou relativamente livre de constrangimentos para dissecar a problemática. Não sou membro de nenhuma ONG associada ao Ambiente, não sou filiado em nenhum partido e não tenho participado recentemente em plataformas de defesa do Sabor, de ataque ao túnel do Marquês ou de contestação às centrais de co-incineração.
Juridicamente, a questão nem se coloca. Nenhum constrangimento profissional pode sobrepor-se ao exercício de cidadania, pelo que, antes de ser jornalista, um indivíduo é um cidadão que dispõe do direito livre à associação. Um direito que pode ser gozado sem reservas e que só pode ser condicionado pela consciência do próprio - não por imposição deontológica ou social.
Resta a esfera da deontologia. Será a objectividade jornalística compatível com a militância? Como se garante a imparcialidade nestas circunstâncias? A resposta a estas velhas questões encontra-se, a meu ver, na esfera individual, na percepção que cada um tem da profissão jornalística e das suas obrigações.
Frequentemente, os jornalistas de ronda (os beat reporters) assumem traços da área que cobrem com regularidade. É por isso normal que o jornalista que noticia a actividade criminosa adquira o jargão das suas fontes, os códigos de vestuário, os procedimentos metodológicos e até a sua própria forma de interpretação do mundo. O mesmo sucede com o jornalista que escreve sobre desporto ou com o repórter que se debruça sobre artes e espectáculos. O jornalista que se dedica diariamente à actividade do Parlamento partilha com as suas fontes a percepção de que a sua área deve ocupar o primeiro lugar na hierarquia temática do jornal. Paradoxalmente, o mesmo sucede com o repórter que se movimenta nos círculos económicos ou nas instâncias jurídicas. Criam-se campos opostos, dentro da própria estrutura do jornal, que reflectem as divisões da sociedade.
Todos estes jornalistas especializados são, por assim dizer, reflexos da área de actividade em que operam e das fontes com que contactam. O Ambiente não é naturalmente a execpção.
Julgo que podemos todos assumir que a maioria dos jornalistas que escolheram esta área de especialização defendem a prioridade da conservação da natureza, as soluções energéticas sustentáveis, a forte acção da sociedade civil nas discussões ambientais ou a concessão de maiores fatias do orçamento de Estado para o sector. Partilham assim muitas marcas ideológicas em comum com as forças que dominam o "lobby".
Naturalmente (e este é o verdadeiro equilíbrio instável), importa que a predisposição activista não tolde o julgamento, nem o razoável objectivo de equidistância colocado diariamente em prática sempre que lidamos com factos noticiosos.
No caso em questão, não creio, nem por um momento, que a minha leitura da ausência ministerial na conferência das Nações Unidas dedicada às alterações climáticas tenha sido moldada pela percepção ambientalista das ONG que comentaram o assunto. O ministro e/ou o secretário de Estado decidiram ficar em Lisboa agarrados a uma interpretação tacanha da noção de governo de gestão. Ficaram orgulhosamente sós. Foi pena...

Torres de Alcântara – Um estudo de caso

Os romanos diziam Ex digito, gigans – que é como quem diz pelo dedo se conhece o gigante. Tomando essa máxima à letra, os autarcas que gerem os destinos da cidade de Lisboa desde Dezembro de 2001 têm tentado afincadamente que a sua passagem pelo município se traduza em grandes obras, expressão tão oca como simbólica, traduzida pelo afã de construção civil e pelas inaugurações apressadas de novos símbolos de betão ou cimento.
Nas cidades pequenas, por escassez do erário público, os autarcas construem rotundas, muitas rotundas. Em Lisboa, onde o orçamento camarário é muitas vezes superior, chamam-se arquitectos de reputação invejável e projectam-se obras de estalo. A escala é diferente – o estilo é o mesmo.
Já escrevi atempadamente sobre o túnel do marquês de Pombal (ver "post" integral aqui)e sobre aquilo que me parece ser uma inutilidade para a cidade e para esta zona concreta do centro. Todavia, ainda não me tinha debruçado sobre as torres de Alcântara. Contextualizemos o leitor menos identificado com o projecto.
Em meados de 2002, Santana Lopes desvendou um projecto que rapidamente se tornou conhecido pelo nome popular de "torres do Siza". Concebido por Siza Vieira, o empreendimento inclui torres de 105 metros de altura nos terrenos da antiga fábrica de açúcar da Sidul e assenta na peregrina ideia de que o desrespeito pela volumetria da zona se justifica com construção em altura. Se se erguerem duas torres de 30 andares, com uma altura estimada superior à do tabuleiro da ponte 25 de Abril, dispensa-se a construção de muitos blocos de prédios de oito andares, que densificariam Alcântara e tornariam irrespirável a vida na freguesia! Argumento absurdo! Passámos portanto para um modelo civilizacional urbano, que defende a construção em altura para ganhar espaço para as zonas verdes.
De facto, o projecto contempla a criação de uma alameda perpendicular ao rio, dois hectares de espaços verdes e 2.250 lugares de estacionamento. Que diabo! O sacrifício de ter dois palitos gigantes junto ao rio até justifica que não se cumpra o Plano Director Municipal em Alcântara. Santana Lopes, então edil da cidade, considerou mesmo que ele enriquecia culturalmente a cidade. O autarca não esclareceu, porém, de que forma enigmática o projecto se tornaria uma mais valia cultural. Afinal de contas, fora da sua autoria o cartaz cretino afixado na zona no mês anterior ao anúncio do projecto: você nem sabe o que vai aqui acontecer! Ninguém imaginava, de facto.
Nos próximos meses, a cidadania dos lisboetas será colocada a teste. Os movimentos cívicos em torno da contestação ao túnel do Marquês conseguiram que o projecto fosse amplamente discutido nos media e salvaguardaram algumas garantias. Não se travou o empreendimento, mas, pelo menos, não se queimaram etapas fundamentais, como o estudo de impacte ambiental. No caso de Alcântara (e também no arranha-céus de Santos, também da autoria de uma celebridade, o inglês Norman Foster), a visibilidade do tema foi-se extinguindo de 2002 para cá. Sem grande convicção, foi avançando a ideia de um referendo, mas o actual presidente da Câmara Municipal de Lisboa já fez saber que será impensável pedir a opinião dos lisboetas antes de Julho, uma vez que um referendo tem forçosamente de se afastar das votações eleitorais para a Assembleia da República (Fevereiro) e para as autarquias (Outubro). E resta saber se ele será vinculativa ou meramente uma figura de consulta.
Entretanto, vagarosamente, o processo foi sendo aprovado nas várias instâncias. Não está ainda num ponto de não retorno, como o túnel do Marquês já estava à data da primeira providência cautelar de Sá Fernandes. Mas preocupa-me bastante que o Partido Socialista lisboeta não tenha ainda contestado a obra. Este mutismo poderá querer dizer que o vencedor das próximas autárquicas, qualquer que ele seja, dará luz verde a esta nova interpretação das violações aos PDM: são portanto um mal menor, que visa evitar os prédios de menores volumetrias e aumentar espaços verdes. O argumento seria a defesa do estatuto de excepção para um projecto urbanístico de interesse social e económico para a freguesia de implantação. Se o argumento colher, será um fartar vilanagem por esse país fora.
Há alguns anos, o município de Almada esteve perto de aprovar a chamada Manhattan de Cacilhas. Os cidadãos indignaram-se, os turistas apavoraram com a ideia de um gigantesco intruso à beira-rio, os jornalistas criticaram. Temerosos, os empreendedores recuaram. Livrámo-nos então dessa ideia peregrina. Mas algures na região de Lisboa a concepção fermentou e foi reciclada. Apresentadas por um nome respeitável da arquitectura, sob o manto da modernidade e da inovação, as torres de Alcântara serão, estou certo, um caso de estudo para Lisboa e outras cidades do país: a mobilização de cada um, a discussão pública, a capacidade de apresentar outras propostas e de rebater este modelo moldarão a beira-rio para o próximo século. A submissão às torres do Siza agora entreabre a porta para as torres que se seguirão.

quarta-feira, dezembro 15, 2004

Pegada grande de mais

Há minutos, visitei a página de Internet do Plano Municipal de Ambiente Almada 21. Em meros 30 segundos, é proposto ao visitante que teste o comprimento da sua pegada ecológica em quatro indicadores - alimentação, mobilidade e transportes, habitação, bens de consumo e serviços. Pretende-se ali estimar a quantidade de recursos necessária para produzir os bens e serviços que cada indivíduo consome, de forma a calcular a área natural necessária para alimentar esses hábitos de consumo.
Através de perguntas simples sobre hábitos quotidianos, o indivíduo bem intencionado (neste caso, eu) é chamado a discriminar como viaja para o emprego, que tipo de alimento consome, em que tipo de casa vive, que quantidade de resíduos produz e por aí adiante. Tenho-me como um cidadão razoavelmente informado e consciente. E, no entanto, depois de responder honestamente a quinze perguntas, o malfadado teste assegura que o valor total da minha pegada é superior ao da média portuguesa: 6,3 hectares globais por pessoa (a média nacional cifra-se em 4,5). Quer isto dizer que seriam necessários mais de seis campos de futebol de área produtiva apenas para suprir o meu consumo regular de bens e serviços. Ou, usando as palavras utilizadas pelo servidor almadense (parceiro local da Redefining Progress e da Earth Day Network), seriam necessários 3,5 planetas Terra para dar conta de uma população mundial que vivesse com o meu estilo de vida.
A iniciativa da pegada ecológica é um dos mais bem sucedidos programas pedagógicos de sensibilização ambiental. Visa alertar a sociedade civil para os limites da sustentabilidade e encontrar, ao nível dos comportamentos individuais, uma maior racionalização de consumos e hábitos. Assenta na noção de que a racionalização deve começar à escala individual, tendo em conta que cada indivíduo provoca impactes mensuráveis. Cada escolha tem custos. Se viajamos a pé ou de carro para o trabalho. Se vivemos numa casa grande ou pequena de mais para o agregado familiar. Como procedemos ao seu aquecimento? Que lixo produzimos? Com que frequência reciclamos? Diferentes abordagens a estas perguntas geram forçosamente níveis diferentes.
Tenho curiosidade por isso em perceber se foi apenas a minha pegada ecológica que transbordou ou se os meus hábitos de consumo estão alinhados com os da maioria da população urbana portuguesa (assumindo, como é natural, que o blog não chega, nem de perto nem de longe, a uma amostra representativa). Consulte a página portuguesa da iniciativa e, se assim o entender, partilhe o seu resultado nos comentários.
Siga para aqui.

Ainda o Euro'2004

Na semana passada, escrevi uma nota sobre a possibilidade de Lisboa se candidatar à organização de uma edição dos Jogos Olímpicos. Fui crítico - e ainda sou - da opção por considerá-la despesista, supérflua, oportunista e inadequada. Apresentei uma lista de argumentos, que ainda defendo, contrários a esta iniciativa. Entre eles, escrevi que seria absurdo lançarmo-nos numa empresa gigantesca antes de conhecermos o impacte real do Euro'2004 na economia portuguesa (Ver o "post" integral aqui).
Ontem, a sociedade Portugal 2004 SA apresentou o último relatório de contas relacionado com a organização da competição futebolística. Revelou que a prova custou 964,5 milhões de euros e o Estado pagou apenas 205 milhões. Quase todas as regiões que acolheram jogos registaram valores positivos de recuperação do investimento, através das receitas turísticas e do crescimento económico local. Foram mantidos 39 mil empregos. A produção aumentou. O Euro gerou 57 milhões de euros de impostos, e o rendimento salarial atingiu os 370 milhões de euros (socorro-me do "Diário de Notícias" para conferir os números apresentados).
Perante estes números reveladores, cabe-me naturalmente admitir que a organização da prova gerou de facto o crescimento económico prometido. Touché. Mantenho, porém, todos os outros argumentos contra a organização dos Jogos. Nem vejo como poderão ser rebatidos ou modificados durante a próxima década.

terça-feira, dezembro 14, 2004

Governo ou Estado - a confusão do costume

«Tempos há para usar de coruja.
E outros há para usar de falcão
" - D. João II

A Conferência das Nações Unidas dedicada às alterações climáticas estava programada há largos meses. Era a data mais importante do calendário internacional de política ambiental. Mais de sete dezenas de ministros do Ambiente encontraram tempo nas suas agendas e deslocaram-se a Buenos Aires (Argentina) para debater o problema e encontrar respostas globais, vinculativas e suprapartidárias. Portugal, infelizmente, renunciou à última hora.
Naturalmente, a primeira semana, dedicada à apresentação de projectos e de diagnósticos locais e aberta à participação de organizações não governamentais, foi concorrida e contou com representantes portugueses. A delegação nacional oficiosa interveio e mostrou trabalho, como aliás tem sucedido regularmente. Mas o prato forte do menu era o segmento ministerial que hoje começou e que se prolongará até sexta-feira. A presença ministerial portuguesa permitiria impor o tema nos jornais, rádios e televisões. Motivaria discussões e debates. Levaria ao conhecimento dos números oficiais e a eventuais correcções de previsões oficiosas. De vez em quando faz bem ao país discutir um pouco mais do que os golos anulados, as vedetas da Quinta das Celebridades e a passerelle do tribunal de Monsanto. Debalde. Sem os pesos-pesados governamentais em Buenos Aires, o tema será agora, estou certo, varrido para a obscuridade nos media nacionais.
Permitam-me alguma malícia: a ausência do ministro e/ou do secretário de Estado dever-se-á à recente demissão governamental ou terá ela sido um pretexto bem-vindo para evitar a participação num forum potencialmente inflamado e perigoso para o governo português? No fim de semana, a Quercus provocou o Ministério e lançou uma acusação muito concreta: Portugal já atingiu mais 50% de emissões de gases com efeito de estufa do que o valor registado em 1990 (o ano-charneira utilizado no Protocolo de Quioto para estipular crescimentos máximos de 27% até 2012). Desconheço o rigor da previsão, mas sei que ela não está alinhada com os números que a delegação oficial (agora dirigida pelo presidente do Instituto do Ambiente) vai mostrar em Buenos Aires.
Repito por isso a pergunta: esta demissão, tão pateta como inútil, do governo da nação foi um motivo ou foi um pretexto para a ausência de Nobre Guedes e Moreira da Silva? Leio os fundamentos que passam a reger o governo de gestão e não compreendo: o governo de gestão deve assegurar a manutenção dos compromissos entretanto assumidos. Deve por isso participar em reuniões de trabalho, que permitam traçar diagnósticos futuros e compatíveis com o trabalho realizado nos países vizinhos.
Ninguém pedia à delegação portuguesa que anunciasse em Buenos Aires a extensão do plano nacional de combate às alterações climáticas. Pedia-se, sim, a apresentação da posição portuguesa, das limitações e das conquistas entretanto vividas, uma vez que estamos sensivelmente a meio do prazo concedido pelo Protocolo. Pedia-se o alinhamento das restrições às emissões industriais com as normas europeias. Pedia-se a ampliação do quadro de incentivos às energias renováveis. E pedia-se o início, sempre adiado, da cooperação com a Comunidade de Países de Língua Portuguesa no âmbito das alterações climáticas - uma responsabilidade social que deve ser abraçada pelos próximos governos e que poderia ter sido abordada informalmente no quadro desta conferência sectorial.
Infelizmente, a leitura política foi outra. Nem coruja, nem falcão: os tempos que se seguirão (até às eleições de 20 de Fevereiro, certamente) serão marcados pelo comportamento pouco digno da hiena. É pena!

domingo, dezembro 12, 2004

O senhor que se segue

Na voragem que consumiu quatro ministros do Ambiente em dois anos de executivo da coligação PSD/PPD-CDS/PP e que ontem terminou com a demissão do governo, não foi fácil acompanhar pessoas e ideias, projectos e estratégias dos quatro homens que tutelaram a área. Consultando agora apontamentos e recortes destes dois anos, é possível traçar um comentário à acção dos quatro governantes. E quem diria? Dos quatro ministros que conhecemos, Luís Nobre Guedes, advogado, representante de interesses instalados em áreas protegidas, perfeito ignorante da temática ambiental e membro de um partido que dedica meia dúzia de linhas ao Ambiente no seu último programa, foi o mais capaz. Ou, por outras palavras, foi o menos mau.
Não foi claramente um daqueles ministros que deixa marcas na área que tutela (como Sócrates deixou) ou que fica ligado a reformas estruturais do sector (como Carlos Pimenta enquanto secretário de Estado). Mas, devo admiti-lo, defendeu a sua dama e travou ataques nestes quatro meses que poderiam ter tido consequências terríveis.
A fasquia, é preciso dizê-lo, não era alta. Isaltino de Morais tratou sempre o Ambiente como o indivíduo da anedota que fica amargurado porque, depois de herdar o património que ambicionava (as cidades e o ordenamento do território), herda também a obrigatoriedade de viver com a sogra (o Ambiente). Foi claramente a fava do bolo e nem sequer houve tempo para perceber como o ex-autarca de Oeiras iria descalçar a bota. A inesperada conta bancária suíça do sobrinho, que Isaltino desconhecia e depois conhecia, fez precocemente tombar o ministro. Porventura, ainda hoje Isaltino não sabe, nem suspeita, que planos queria cumprir na área do Ambiente. Há males que vêm por bem - sobretudo quando se revestem de chorudos 400 mil euros.
Seguiu-se Amílcar Theias. Deu sempre ideia de estar para o governo como a idosa da séria "Allô allô" estava para o planeamento da resistência francesa. Ou seja, estava a leste e com uma vaga ideia de que algures, lá fora, se travava uma guerra. Mesmo assim, admito que foi um sério concorrente ao prémio de melhor "gaffe" do executivo, quando alvitrou que os ex-combatentes da guerra colonial, que tinham granadas de mão em casa, estavam na lista dos possíveis pirómanos de Verão! Em abono de verdade, reconheça-se que tomou uma posição de força no caso da possível extinção do Instituto da Conservação da Natureza (ICN), em Outubro de 2003. Ganhou a batalha, mas perdeu o cargo.
Arlindo Cunha tomou então o lugar de Theias. Cunha deve ser um dos políticos mais amargurados de 2004. Trocou um lugar europeu por um cargo que não estava nos seus planos, não desejava, nem tinha especial vocação para ele. Semanas depois da sua tomada de posse, Durão Barroso aceitou o lugar europeu e partiu para a Bélgica com bilhete só de ida. Conta-se que no jantar em que Durão Barroso terá auscultado o seu elenco (mas que, na verdade, serviu apenas para comunicar a decisão já tomada), havia dois rostos com expressões impagáveis: o de Arlindo Cunha, petrificado com o que lhe acontecera; e o da esposa do PM, que se sentou ao lado dele e lhe foi perguntando onde podia comer em Bruxelas, o que devia visitar e o que devia levar vestido!
Entrou então Luís Nobre Guedes, já com Santana Lopes ao leme.
Ao contrário do que muitos disseram, considero que a sua intervenção na divulgação do relatório sobre o incêndio na refinaria da Galp não foi absurda. Nobre Guedes, à data, não sabia ainda que em política os relatórios só se divulgam quando não têm consequências nefastas para o executivo. Caso contrário, toma-se a decisão democrática de o remeter para o fundo da pilha de despachos! O ministro foi ingénuo, mas paradoxalmente tomou a decisão certa.
Na discussão do PN Arrábida e das construções ilegais, chegou a temer-se que o ministro fosse lançado borda fora. A sua própria casa no local foi avaliada e tornou-se difícil perceber por que motivo algumas residências seriam demolidas - e a do ministro não. A Arrábida terá sido o principal espinho nestes quatro meses de actividade.
Discretamente, mas com resultados positivos, o Ministério do Ambiente prosseguiu também a negociação relacionada com o comércio de emissões. O alinhamento com a média europeia neste capítulo e a pressão colocada sobre a indústria (que deverá manter-se nos próximos executivos) foram passos positivos. O apadrinhamento do plano nacional de alterações climáticas e a sua ampla divulgação na imprensa transmitiram sinais de que, finalmente, havia um plano de acção no Ministério.
Destaco por fim o empenho em travar a revisão da REN e da RAN, que as colocaria debaixo da alçada autárquica. No caos em que vivemos no último mês, a modificação jurídica das duas reservas teria passado em claro. Temo, porém, que o processo venha a ser reabilitado nos próximos tempos, tamanho é o apetite dos autarcas.
Houve, claro, passos em falso. As polémicas com Barreto não enobreceram Guedes. As áreas protegidas sem planos de ordenamento ainda são maioritárias. O ICN viu o orçamento entretanto reduzido (pela terceira vez consecutiva) e foi humilhado com a divulgação de problemas graves de tesouraria. A nomeação da actual direcção foi mesmo ensombrada por uma recusa de última hora, mal explicada e mau augúrio para a casa. Apesar disso, Guedes superou o exame. Com dez valores, mas superou.
Em Fevereiro, haverá portanto eleições e teremos novo ministro. Se me é permitido expressar um desejo: que o senhor que se segue consiga governar durante toda a legislatura. Já não seria mau.

sábado, dezembro 11, 2004

Já reparou que cada vez mais carros são engolidos pelo solo em Lisboa?

Poderia ser o conteúdo de um daqueles cartazes irritantes que, durante dois anos, foram impressos em Lisboa pelo autarca promovido a primeiro-ministro. Desconfio, porém, que este não será mostrado. Apesar disso, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) está de facto a acompanhar a gravidade da situação e a dotar-se de instrumentos de análise. É um bom sinal. Mesmo sem cartazes.
A principal (se calhar, a única) vantagem de ter um reputado engenheiro hidráulico como presidente substituto da Câmara Municipal de Lisboa parece ser, de facto, a campanha entretanto desenvolvida para a elaboração do primeiro plano geral de drenagem da cidade.
Ao abrigo desta iniciativa, a CML instalou quatro medidores do caudal do sistema de saneamento da baixa. Inovadores, apresentam em tempo real flutuações significativas e permitem gerir melhor o sistema de saneamento da cidade. Vão monitorizar diariamente o nível dos esgotos e das águas pluviais desta zona histórica , fornecendo dados que permitam antecipar as intervenções de recuperação. Até aqui, na baixa lisboeta, os serviços municipais têm actuado como bombeiros, apagando os fogos que entretanto vão deflagrando, mas sem capacidade de prever onde surgirá o próximo.
A iniciativa é louvável, mas trata-se apenas de um primeiro passo na tentativa de compreender a natureza e evolução do subsolo dos bairros lisboetas mais próximos do rio Tejo.
Desde as primeiras crateras (na baixa e fora dela) que os lisboetas mostraram preocupação com a Lisboa subterrânea, com os desabamentos regulares na baixa pombalina, com as fissuras nas casas velhas, com os buracos gigantes que engolem veículos. À boca cheia, peritos e leigos comentam que as caves de betão entretanto construídas na baixa pombalina, os parques de estacionamento subterrâneo, até mesmo o túnel de metro do Rossio interferiram com o caudal das ribeiras subterrâneas da zona nobre da cidade. Verdadeiramente, ninguém sabe se estas preocupações têm motivos fundamentados. Mas quem vive ou trabalha na baixa sente o receio nos comerciantes e nos residentes.
Há cerca de um ano, quando uma cratera engoliu positivamente um autocarro no espaço de vinte minutos em Campolide, o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, homem suficientemente apolítico para não ser tomado como parcial, alertou para o risco motivado pelo encanamento de águas pluviais e para os deficientes canais de escoamento que a Lisboa ribeirinha, cada vez mais assente em betão, proporciona. As construções entretanto autorizadas (indistintamente pelos partidos de esquerda e direita que governaram a câmara de Lisboa nos últimos vinte anos) afectaram também a ciculação de águas subterrâneas, provocando abatimentos e modificando irremediavelmente os sistemas de drenagem naturais.
Enquanto a cidade se prepara para marcar os 250 anos do terramoto de 1755 e se fala de uma possível candidatura a património mundial da UNESCO, seria positivo que Carmona Rodrigues disponibilizasse estes primeiros dados sobre a flutação de caudais subterrâneos. Desconheço se a CML pretende divulgá-los diariamente (como o faz por exemplo o Instituto do Ambiente com os dados da qualidade do ar), mas seria uma forma (a única, talvez) de começarmos a saber o que se passa por baixo dos nossos pés.

Uma semana em baixo

Devido à multiplicação inesperada de afazeres, este blogue esteve uma semana sem actualização. Pelo facto, as minhas desculpas.

Voltarei hoje ainda ao trabalho.

sexta-feira, dezembro 03, 2004

Também há boas notícias

Admito que gosto do "Jornal de Notícias" (JN). É um jornal honesto, na medida em que não tenta parecer o que não é. E tem a notável capacidade de descobrir pequenas notícias onde outros já esgravataram sem sucesso. Para mim, que me orgulho de ter o país mais ou menos peneirado, com os principais focos de notícias ambientais já recenseados, a leitura do JN é, confesso, frequentemente frustrante, porque o jornal continua a descobrir matérias que, por qualquer motivo, tinham escapado ao meu crivo.
Vem este tempo de antena a propósito de uma reportagem publicada na segunda-feira passada. O artigo dava conta de uma reconversão fabril na antiga Siderurgia Nacional, onde uma nova empresa (a Ecometais) se lançou, desde Outubro, na tarefa de reciclagem de veículos automóveis em fim de vida.
O princípio é simples e resolve um dos problemas ambientais mais preocupantes das sociedades industrializadas: o que fazer com os automóveis que já não podem circular? A Ecometais, em 20 mil metros quadrados, transforma veículos em fim de vida em aço reutilizável, recolhendo também alumínio, cobre e zinco, que serão depois exportados para unidades de valorização. Graças a 16 martelos de 130 quilos, os carros são triturados e rapidamente transformados em partículas de ferro de 200 milímetros. Segue-se um processo de triagem, que visa separar fragmentos metais não ferrosos e concentrar as componentes metálicas. Num só ano, a Ecometais promete produzir 180 mil toneladas – um valor significativo, que se traduz numa média de transformação de cem carros por hora.
Para obter a sua "matéria-prima", a empresa recebe veículos abandonados ou destruídos parcialmente, mas também pode comprá-los a empresas ou particulares. E como não poderia deixar de ser, procede também à recolha de outros resíduos associados – como os pneus, as baterias ou os combustíveis –, visando reconvertê-los e reutilizá-los.
Passaram apenas dois meses desde o início da produção, pelo que é cedo para fazer um balanço a esta actividade. Sabe-se para já que existe ainda um problema de difícil resolução: os materiais não aproveitáveis dos automóveis, os chamados resíduos leves de fragmentação, têm de ser depositados em aterros, solução que só pode ser considerada provisória, porque ainda não há melhor destino. Lamentavelmente, segundo o responsável pela produção da Ecometais, 60% das despesas de operação são consumidos apenas neste processo de depósito em aterro! Uma percentagem elevadíssima, que porventura poderá colocar em causa toda a operação a médio prazo e que deverá ser motivo de reflexão.

quinta-feira, dezembro 02, 2004

Loucuras e euforias

Há cerca de uma semana, um grupo de governantes encorajou o presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP) a preparar um dossier de candidatura de Lisboa a cidade olímpica em 2016 ou em 2020. Entre as vozes concordantes, ergueu-se a de Fernando Seara, presidente da Câmara Municipal de Sintra, que desafiou a sociedade civil: esta é a altura para os arautos da desgraça falarem. Quem não apoiar o projecto fale agora ou cale-se para sempre. Perante isto, cabe-me dar o meu modesto contributo.
Não vejo sinceramente grandes vantagens na organização de um projecto gigantesco como são uns Jogos Olímpicos. Nada me move contra o desporto – pelo contrário. Mas a organização de um evento desta magnitude implica um investimento onze vezes superior ao do recente Euro’2004, já de si monstruoso. Essa é a primeira preocupação: ainda não conhecemos as contas do Euro’2004, desconhecem-se ainda os impactes reais da prova nas finanças do país, mas já há quem defenda que nos devemos lançar de cabeça num evento ainda maior! No mínimo, seria prudente aguardar pela contabilidade da organização de Atenas e tentar perceber como um país de grandeza semelhante ao nosso (em termos de superfície e de população) se viu a contas com um buraco gigantesco, do qual não parece saber sair.
O segundo bloco de preocupações relaciona-se com a necessidade de construção de infra-estruturas desportivas. Em Atenas, disputaram-se, creio, 29 modalidades e dezenas de categorias. Movimentaram-se dez mil atletas. Qualquer dossier de candidatura tem de prever a construção de pavilhões, hipódromos, piscinas, estádios diversos, percursos de canoagem, pistas de remo, trilhos para BTT, recintos para voleibol de praia, campos de beisebol. Sou evidentemente sensível ao argumento de que os portugueses já provaram no Euro’2004 a sua capacidade de organização e de cumprimento de cadernos de encargos. Mas há questões paralelas, que me assustam: e o dia seguinte aos Jogos? O que vamos fazer com equipamentos desportivos topo de gama que não reflectem hábitos de prática desportiva dos portugueses? Justifica-se um estádio de beisebol (só para beisebol, sublinho), com capacidade para quinze mil pessoas, quando há menos de mil praticantes federados no nosso país? E o que faremos a um estádio de 50 mil pessoas só para atletismo, quando se sabe que o estádio da Maia, o melhor do país para a disciplina, está constantemente "às moscas" e o equipamento electrónico estraga-se por descuido?
Por outro lado, preocupa-me a localização deste projecto. Normalmente, as cidades olímpicas (equipamentos e infra-estruturas que suportam a aldeia olímpica, onde ficam instalados atletas, treinadores e árbitros) aglomeram-se em determinado bairro, concentrando equipamentos e facilitando acessos. Onde encontrarão os organizadores essa zona em Lisboa? Em Monsanto? Em Marvila? Na zona Oeste? E como lidarão as populações locais com a perspectiva de quinze anos de obras? E seguir-se-á o modelo de Atlanta, em 1996, onde o município destruiu depois dos Jogos quase todas as infra-estruturas pré-fabricadas? Haverá mesmo espaço em Lisboa para esta loucura?
Quarta preocupação: a competitividade. Há cerca de uma década, Juan Samaranch, então presidente do Comité Olímpico Internacional, disse em Lisboa que é impensável uma cidade candidatar-se se não estiver em condições de lutar por 30 a 40 medalhas. Aconteceu em Barcelona, em Sydney e em Atenas. Ocorrerá em Pequim. Em Portugal, esta competitividade é uma miragem. E sem atletas capazes, o público desinteressa-se e foge aos espectáculos. Não se mobiliza e condena os Jogos ao anonimato.
Juntemos ainda uma amálgama de perguntas sem resposta: e tudo o que não se fará durante quinze anos porque a prioridade nacional passarão a ser os Jogos? E o aumento da área construída em Lisboa? E a imigração (legal ou ilegal) que se seguiria? E o que tem de se gastar em obras de apoio: aeroportos, ferrovias, estradas, hotéis? Tudo isto vale a pena?
E, por fim, como se acautelam mudanças políticas de humor, como a de terça-feira passada? Um projecto desta natureza tem de ser transversal e suprapartidário, de forma a que todos os partidos (no governo ou na oposição) sejam responsáveis pela boa organização dos Jogos. Sem boicotes ou retrocessos.
Creio que está dado o meu contributo ao edil Seara: estes motivos de preocupação chegam para repensar a iniciativa?

terça-feira, novembro 30, 2004

Alcatraz do monte da Caparica

Absolutamente fascinante! A entrada na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT/UNL), no monte da Caparica, tornou-se mais difícil do que o acesso a prisões de alta segurança. Pelo menos para quem cumpre as regras e se anuncia na portaria.
14 horas. Com uma entrevista marcada com um docente, esperava, na minha ingenuidade, anunciar-me, entrar no recinto e dirigir-me ao gabinete do investigador que me esperava. Puro engano! O procedimento de verificação de viaturas é meticuloso e é seguido com minúcia. Tive de repetir três vezes quem era, ao que ia e porque vinha. Fui, desde logo, compelido a "encostar" o carro enquanto o Gabinete de Segurança Interna (nome pomposo, este) confirmava as minhas credenciais. Pelo tempo que demoraram, apostaria que pesquisaram o meu nome nas bases de dados mais terríveis do globo. Quem sabe se não anda na margem sul uma célula vocacionada para ataques a instituições universitárias?
Esperei, esperei... De vez em quando, do lado de dentro do "guichet", olhavam-me com desconfiança. Que diabo! Senti-me como os foragidos da guerra fria no checkpoint Charlie, de Berlim.
O tempo foi passando, e o docente, algures num gabinete, ia desesperando. Fui entretanto informado de que cometi um erro processual: na FCT/UNL, as entrevistas têm de ser anunciadas previamente ao Gabinete de Segurança Interna (GSI). Desconheço os motivos. Será uma questão de juri? Imagino um painel de seguranças, em redor de uma mesa, cogitando sobre a pertinência do meu pedido de entrevista com um docente de mineralogia, curiosos perante o meu interesse num projecto de química orgânica ou intrigados pela minhas solicitações sobre a qualidade do ar.
Enquanto aguardo, verifico que outros carros entram e saem sem verificações. Aparentemente, esbarrei numa greve de zelo, tanto mais que, à saída, não há qualquer controlo. Perguntou por isso à fucionária se poderei estacionar no exterior e entrar a pé. Travo um diálogo de surdos.
"Também não pode entrar incógnito", responde ela, como se não visse as dezenas de pessoas que entram e saem sem qualquer controlo.
"E se eu não me anunciasse, como saberia o GSI quem eu era e se me deveria barrar a entrada?"
"Nós descobríamo-lo", retorque com um sorriso próprio de quem está seguro por um sistema de vigilância electrónica. Encolho os ombros. Deve ser para os "apanhados". E não evito um sorriso interior, enquanto imagino patrulhas de elementos do GSI vigiando as várias avenidas da FCT/UNL.
Finalmente, o meu pedido foi "deferido" e entrei. No interior dos departamentos, como seria de esperar, é a confusão total e dou por mim, semiperdido e isolado, num laboratório com espectómetros que valem certamente mais de 100 mil euros. Ninguém me diz nada e pondero a possibilidade de pegar num microscópio e levá-lo debaixo do braço. Na portaria, aposto, ninguém daria por nada. Porque, ao contrário de Alcatraz , no monte da Caparica não se consegue entrar, mas sai-se com toda a limpeza.

segunda-feira, novembro 29, 2004

Análises inquinadas

Que responsabilidade têm as autarquias transmontanas nos recentes casos de contaminação do abastecimento de água por arsénio? – questionou-me um leitor hoje de manhã. Enquadremos o caso para os mais distraídos.
No início de Novembro, uma investigação de dois docentes transmontanos revelou níveis extraordinariamente altos de arsénio na rede de abastecimento de água em Vila Flor e Alfândega da Fé (Trás-os-Montes).
Todos os anos, realizam-se entre três e quatro mil análises à qualidade das águas de abastecimento público de todo o país. Algumas são realizadas a pedido das autarquias; outras a pedido de particulares ou privados; outras ainda, a maioria, por iniciativa das delegações regionais de saúde. Os dois docentes afirmaram que 28% das análises de arsénio exigidas por lei em Portugal não tinham sido solicitadas pelas autarquias. O que é grave e prenuncia um cenário de total irresponsabilidade.
Compreendo e aceito o facto de estes municípios transmontanos viverem com carências elevadas, que reduzem a capacidade de intervenção das autarquias. Com tantos fogos para acorrer e com recursos bastante limitados, é forçoso tornear algumas exigências legais. Não se aplaude, mas percebe-se.
Mas, ao mesmo tempo, as autarquias em causa não podem, em circunstância alguma, lavar as mãos como Pilatos. Sabia-se que, nos últimos cinco anos, tinham ocorrido sérios problemas de saúde nas aldeias de Macedinho e Valbom, no concelho de Vila Flor, e de Vilares da Vilariça, em Alfândega da Fé. As populações queixavam-se do estranho sabor da água da rede pública, água essa que "deixava os dentes pretos", queixou-se uma moradora aos jornais. Não acredito, nem por um momento, que as duas autarquias não tivessem tomado conta da gravidade das queixas. Não concebo que, em aldeias tão pequenas, ninguém tivesse mencionado o caso aos autarcas. E a partir desse momento as câmaras municipais, que têm a obrigação legal de encomendar análises (com ou sem indícios de alteração química) com regularidade, têm culpas morais no cartório.
É óbvio que a perturbação da composição química da água pode ter explicações naturais. Pode até não ter sido motivada por qualquer actividade humana. Por enquanto, desconhece-se a causa da deterioração, embora as análises posteriores, encomendadas ao Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, possam lançar luz sobre o assunto brevemente. Mas, a meu ver, isso não isenta as autarquias implicadas de alguma cumplicidade moral – autarquias essas que, depois da publicitação do estudo dos dois docentes, se apressaram a pedir inquéritos, a encomendar análises e a gritar "aqui d’el rei, isto é um escândalo".

P.S.: Segundo os dois investigadores, há mais 16 autarquias em Portugal que não comunicaram no último ano os resultados das suas análises ao Ministério da Saúde e aos delegados regionais de saúde. Desconhece-se se os testes foram, ou não, conduzidos. Mas há pelo menos dezasseis municípios onde a água da rede de abastecimento público não oferece garantias mínimas ao consumidor…
P.S.1: Nem por coincidência! Os dois investigadores publicaram ontem uma carta no jornal "Público", na secção "Cartas ao Director". Sintetiza na perfeição o que penso sobre o assunto.

domingo, novembro 28, 2004

Aliança exemplar

Há cerca de um mês, desloquei-me a Turim onde tive oportunidade de conhecer pormenorizadamente o funcionamento de uma organização não governamental (ONG) muito particular - a Rainforest Alliance.
Sediada em Nova Iorque e em San Jose (Costa Rica), esta ONG opera como um carimbo de validade ambiental. Empresas e estados solicitam a certificação ambiental para os seus projectos na floresta tropical centro-americana e a Rainforest estrutura cadernos de encargo, constituídos por várias etapas, antes de oferecer a sua garantia.
O processo é engenhoso e visa criar infra-estruturas que sirvam as populações locais muito depois de as empresas abandonarem a região. Pretende também educar locais e estrangeiros para as virtudes de comportamentos mais racionais na gestão da floresta, na utilização de cursos de água, no abate de árvores e até no tratamento dos solos.
Em Turim, tive oportunidade de analisar um caso concreto. Uma marca produtora de cafés solicitara os serviços da Rainforest Alliance para certificar as suas explorações de café em três países da América Central. Pretendia por isso ganhar o reconhecimento de uma entidade independente, que avalizasse as suas operações como parte "daquilo" que a ONG considera desenvolvimento sustentável. Foram impostas metas que fariam qualquer empresa empalidecer.
Foi dito aos produtores de café que seria imperioso que nenhuma das explorações afectasse os ecossistemas da região; que respeitasse, protegesse e reflorestasse todas as áreas onde operasse; que desenvolvesse mecanismos de prevenção e controlo de incêndios; que protegesse os habitats onde as explorações agrícolas seriam dinamizadas; que construísse melhores infra-estruturas para os trabalhadores (casas, escolas, estradas); que contratualizasse sempre os seus trabalhadores; que promovesse a liberdade de associação e de sindicalismo; que desenvolvesse serviços de assistência médica no trabalho; que consultasse e respeitasse as comunidades onde se inserisse; que não usasse pesticidas e respeitasse as práticas tradicionais agrícolas da região; que encontrasse forma de gerir integradamente os resíduos derviados da produção, reciclando-os, protegendo cursos de água e lençóis freáticos; que controlasse a erosão do solo através da reflorestação e da utilização periódica de novos solos...
Todas estas etapas foram vigiadas durante dois anos antes de ser concedida uma certificação. Aliás, é possível que o processo recue várias etapas se se detectarem comportamentos nocivos para o ambiente.
Neste momento, a Rainforest Alliance já certificou mais de 1.000 explorações agrícolas na América Central e a sua acção teve impactes directos na vida de 95 mil famílias (mais detalhes aqui).
Em Portugal, apenas em Novembro, acordámos com as notícias de que uma fábrica no estuário do Sado derramou os seus efluentes directamente no rio; que as minas de urânio de Canas de Senhorim continuam a operar com claro desrespeito pela população local; que algumas freguesias de Trás-os-Montes apresentam níveis de arsénio na água dez vezes superiores ao limite legal.
Isto passa-se em Portugal e não na América Central. Dá que pensar…

sábado, novembro 27, 2004

Silva Costa, dois anos depois

A demissão de João Silva Costa da presidência do Instituto da Conservação da Natureza (ICN) não surpreendeu. Sabia-se que o engenheiro hidráulico estava francamente desgastado por dois anos e meio de intensa actividade e que a recente redução do orçamento atribuído ao ICN pelo Orçamento de Estado para 2005 caíra mal. A saída, directamente para a empresa Águas de Santo André, era previsível.
Impõe-se nesta altura, e enquanto se discute arduamente o seu sucessor, traçar um balanço a estes dois anos e meio de gestão de Silva Costa. É inegável que a decadência financeira do ICN de hoje não se compara com os problemas de tesouraria de 2002. A crise agudizou-se, mas acredito que a responsabilidade não deve ser imputada ao presidente demissionário.
Silva Costa foi nomeado por Isaltino de Morais, a estranha escolha do executivo de Durão Barroso para o Ministério das Cidades, do Ambiente e do Ordenamento do Território. Bem conhecido pelo seu trabalho à frente da direcção regional de Ambiente de Lisboa e Vale do Tejo (onde escapou com distinção das "batalhas" rijas relacionadas com a construção da ponte Vasco da Gama), Silva Costa foi um nome bem recebido no interior da instituição. Em entrevistas e declarações públicas datadas de 2002, o engenheiro estabeleceu a seguinte lista de prioridades:
1) Aproximar a gestão das áreas protegidas das autarquias e, porventura, torná-las dependentes dos executivos camarários.
2) Finalizar todos os Planos de Ordenamento em falta nas áreas protegidas portuguesas.
3) Compensar as lacunas financeiras com o recurso a financiamento comunitário. Ao longo dos dois anos da sua presidência, Silva Costa foi constantemente recordado da sua ingénua proposta de que, por cada euro orçamental recebido do Estado português, o ICN deveria encontrar dois euros em financiamento europeu!
4) Travar os impulsos de investigação no seio do ICN, uma vez que não seria essa a vocação da instituição. Ao ICN, segundo Silva Costa, caberia a tarefa conservacionista. A investigação deveria ficar a cargo de universidades ou grupos independentes.
5) Investir fortemente no corpo de vigilantes, privilegiando a formação e a consolidação salarial deste núcleo tão importante de funcionários
6) Encontrar fórmulas criativas de receitas, nomeadamente através da cobrança de serviços normalmente oferecidos pelo ICN: pareceres às câmaras municipais relativamente a construções, taxas pela introdução de parques eólicos no interior de áreas protegidas, pagamento por serviços de guias e funções associadas em sessões de turismo ecológico...

Olhando para este ambicioso quadro programático, é legítimo concluir que SIlva Costa não teve sucesso à frente do ICN: é verdade que alguns planos de ordenamento foram publicados entretanto, mas este problema estrutural arrasta-se e ainda mantém na ilegalidade algumas áreas protegidas; é verdade igualmente que o ICN começou a cobrar alguns serviços (que deveria ter cobrado desde sempre), mas o seu peso nas receitas globais foi escasso.
Do lado mais pesado da balança, estão claramente os falhanços. O financiamento comunitário, embora razoável, nunca atingiu a meta ingenuamente estipulada e, pior do que isso, os dinheiros chegavam ao ICN, mas ficavam regularmente retidos antes de serem distribuídos aos respectivos projectos. Houve claramente um retrocesso na investigação da instituição que, acrescento, está precisamente vocacionada para coordenar esforços de investigação que permitam melhor direccionar as acções de conservação. Neste aspecto, o censo do lince ibérico entretanto desenvolvido foi uma excepção, uma gota de água num instituto que menosprezou uma das suas funções centrais nestes dois anos e meio.
Diria ainda que a aproximação das áreas protegidas à gestão autárquica também retrocedeu. E, neste caso, felizmente. Sou claramente suspeito para falar de gestão autárquica. Tenho uma péssima ideia da capacidade dos municípios para tomar decisões de âmbito ambiental. E antecipo com receio o dia em que um projecto desta natureza ganhar corpo, porque as câmaras municipais, salvo honrosas excepções, não têm sensibilidade ambiental, nem conseguem tomar decisões estruturais baseadas em valores simbólicos, como a preservação ou a conservação.
Por fim, não por responsabilidade de Silva Costa, o corpo de vigilantes do ICN é hoje mais reduzido do que em 2002. Há menos vigilantes, o quadro está mais envelhecido e não se consegue recrutar, porque não há dinheiro, nem se oferece segurança profissional.
Perante tudo isto, importa perguntar: como conseguiu João Silva Costa abandonar o ICN com o prestígio reforçado e sendo alvo de despedidas respeitosas no interior e exterior do ICN? Pelo que pude ver, João Silva Costa foi genuníno. Assumiu como suas as dores da instituição e nunca, em circunstância alguma, atacou ou deixou atacar a instituição a que presidia. Viu o orçamento regularmente retalhado e ripostou. Sentiu a perda de influência do ICN e contestou. Apercebeu-se de ataques a áreas protegidas e saiu em sua defesa. Não foi um presidente bem sucedido, como se viu em cima. Mas foi paradoxalmente um presidente que deixou saudades.

sexta-feira, novembro 26, 2004

Requiem esperado

O Parque Marinho da Arrábida (PMA) foi, desde o início, uma presa apetecida. Como César, o PMA esteve sempre cercado de inimigos, decididos a esperar pela ocasião ideal para o apunhalamento. Lamentavelmente, essa ocasião chegou.
Há anos, assisti à discussão pública do Plano de Oordenamento do PMA realizada em Sesimbra. Dizem-me que a sessão de Setúbal decorreu nos mesmos contornos. Nessa noite, percebi tristemente que o PMA seria sempre uma miragem, porque os seus apoiantes se limitavam à comunidade científica. Ao contrário de outras áreas protegidas, onde as populações sentem que a classificação trará turismo ou não afectará as actividades económicas da região, praticamente ninguém gastou saliva para defender o PMA. Isso é sintomático da artificialidade de um parque.
Na sala, estavam representantes de várias sensibilidades. Praticamente todos os presentes criticavam a área protegida e tinham-se deslocado ao auditório para assegurar que os seus interesses não seriam afectados. A maioria era gente da terra, pescadores genuinamente preocupados com a alteração da sua área de trabalho e com a nova obrigatoriedade de fugir dos limites do parque para as pescarias. Compreendiam que cada vez mais espécies não se desenvolviam completamente nem chegavam à fase adulta, porque a pesca intensiva arrebatava do mar os juvenis. Percebiam também que a arte xávega, tradicional no concelho, continuaria a ser permitida. Mas não estavam dispostos a mudar práticas geracionais, nem compreendiam porque não podiam usar as técnicas de sempre.
Havia também proprietários de embarcações de lazer, também eles indispostos, também eles irritados por terem de alterar as rotas preferidas de navegação, junto à Arrábida. Um núcleo de mergulhadores, de praticantes de jet ski e de outras actividades náuticas estava exaltado com as restrições de acesso à "Meca", um nome carinhoso que os profissionais de mergulho dão a esta zona providencial da costa portuguesa, onde o clima praticamente permite mergulhar todo o ano. E havia dirigentes autárquicos que, tomando o pulso ao descontentamento, rapidamente mudaram de trincheira e tornaram-se críticos. Assisti, incrédulo, enquanto o velho axioma político foi refeito pelos autarcas: Nós somos os líderes eleitos; estes são os eleitores; por isso, somos nós… que temos de os seguir.
Do lado do PMA, havia apenas duas linhas de defesa. Por um lado, os representantes do Instituto da Conservação da Natureza (ICN), que abordaram a sessão da pior forma possível. Apresentaram o Plano de Ordenamento como uma realidade fechada e discutida. Na sua ingenuidade, cuidaram que anunciavam a borrasca e saíam incólumes. Quando um objecto voou na direcção de um dos funcionários do ICN, a mensagem finalmente passou: não se anunciam projectos destes sem uma explicação acessível e intensiva às comunidades locais.
E havia ainda os biólogos, investigadores que tinham despendido tempo e recursos para avaliar a saúde daquele ecossistema e que se tinham assustado com a perspectiva terrível que se adivinhava para a vida marinha da região. Eram infelizmente poucos e não tinham claramente capacidade de persuasão.
O resto da história é conhecido. O Plano de Ordenamento provisório tornou-se um compromisso entre as posições dos biólogos e o sentimento das populações afectadas. A área protegida foi reduzida, as zonas "tampão" diminuídas. E o Plano nunca foi publicado. Foi sendo adiado para as calendas gregas, impedindo o natural funcionamento do parque.
Anteontem, a Quercus e a Liga para a Protecção da Natureza anunciaram que o PMA perderá o estatuto de área protegida, uma vez que, sem Plano de Ordenamento, a área não só é inútil como ilegal. O esclarecimento do Governo não foi suficiente: aparentemente, no Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida (o terrestre), será proposta uma redução da área marinha classificada. Na prática, o processo retira autonomia ao PMA e transforma-o numa miragem.
Era o requiem que eu esperava desde aquela noite em Sesimbra. Ironicamente, ocorre uma semana depois dos compromissos verbais assumidos durante a Semana do Mar. Quererá o ministro da Defesa e dos Assuntos do Mar comentar?

segunda-feira, novembro 22, 2004

Dividir as fileiras

O segredo do império britânico para as transições coloniais seguras traduziu-se historicamente numa simples fórmula: a hostilização de duas ou mais partes em confronto, de forma a que, abandonando a gestão das suas ex-colónias, os britânicos deixassem um rastilho imparável atrás de si. A fórmula traduziu-se invariavelmente em guerra civil. Foi assim na Irlanda, foi assim na Índia e no Paquistão. Foi assim lamentavelmente no Médio Oriente.
Passe a imagem, creio que esse é o legado deixado à medida que as sucessivas direcções-gerais cederam a gestão do território e/ou recursos a institutos criados de raiz para tal. O campo de batalha ficou de tal maneira minado que os diversos parceiros se tornaram beligerantes incorríveis. A meu ver, esse é o mal de que enferma por exemplo o antagonismo entre biólogos e geólogos, entre biólogos e arqueólogos ou entre arqueólogos e paleontólogos.
Absurdo? Procurem convencer um biólogo da importância da classificação geológica de "monumento natural" para um fenómeno que, à primeira vista, parece um conjunto de rochas partidas. Ou tentem persuadir um arqueólogo a não escavar uma jazida inserida num ecossistema protegido ou, no mínimo, a limitar o seu trabalho a horários menos agressivos. Ou peçam a um arqueólogo que se pronuncie sobre os métodos de trabalho, de investigação e escavação de um paleontólogo.
Cada área é ciosa do seu território, dos seus jargões e da sua tradição cultural. Defende-os de dentes cerrados, certa de que a sua razão é inabalável e de que os seus méritos pesam mais na balança do património.
Ora, na minha opinião, estas divergências derivam claramente da separação metodológica que caracteriza as várias áreas que destaquei. A aprendizagem é claramente separada, como rios independentes que raramente se cruzam. Um arqueólogo pouco estuda de biologia. Um biólogo dificilmente saberá o que quer que seja sobre a geologia do solo que defende. Um paleontólogo termina o curso praticamente sem uma aula prática que lhe permita desenvolver uma escavação metodologicamente correcta.
Há dias, Galopim de Carvalho, velho cruzado destas guerras, lamentava ao "Diário de Notícias": «Algumas pessoas da ciência não dão importância à geologia (...) Quando os ecologistas falam de ambiente, estão a pensar nas couves e nos morcegos, e não na rocha, nem no solo. Se não houvesse solo, não havia erva, nem borrego e não existindo tudo isso não haveria o ensopado de borrego!», brincou o professor jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. A brincar, o antigo director do Museu Nacional de História Natural tocou na ferida das lacunas curriculares.
A licenciatura de Biologia perdeu disciplinas como a mineralogia, a geologia ou a paleontologia. Percebe-se que um currículo não é infinito e que a tendência aponta no sentido do "mono-perito", mas, na especialização constante a que obrigamos os futuros licenciados, importa que se reconheça que também se perdem oportunidades.
Que importância terá isso?, pergunta o leitor. A interdisciplinariedade é fundamental na acção de conservação, respondo. Os responsáveis pelo Parque Nacional Peneda-Gerês lidam com património biológico, mas também geológico e arqueológico. Nas serras de Aire e Candeeiros, há valores mineralógicos que se fundem com património paleontológico, faunístico e arqueológico. Sem respeito pelas áreas tangenciais, a conservação é incompleta e injusta porque não apreende o todo.
Mas, tal qual as velhas colónias britânicas, os senhores biólogos, arqueólogos, paleontólogos e geólogos entretêm-se em guerrilhas estéreis, lutando por recursos finitos e invejando a atenção que os colegas merecem. No dia em que houver coordenação e respeito entre estas vontades, talvez não se construam com tanta facilidade barragens no Sabor, nem se destruam jazidas impunemente ou se danifiquem irremediavelmente impressões na rocha que testemunham a longa história do planeta.
Escrevo este "post" quase como uma resposta a um desafio que me foi lançado na sequência da nota escrita sobre Foz Côa. É para mim inaceitável que, na presente batalha pela preservação do Sabor, se derrubem os méritos da preservação arqueológica no rio Côa. Não vale tudo nestas guerras!

sábado, novembro 20, 2004

Pérola ruidosa

Na semana passada, o "Diário de Notícias" (DN) publicou uma notícia que começa a ser tradicional nesta altura do ano, divulgando os resultados das cartas de ruído de Almada e de Lisboa. As notícias sobre ruído urbano fazem hoje parte do menu sazonal de informação. E ainda bem! A directiva comunitária de ruído ambiental (2002/49/EC) estabelece precisamente como primeiros objectivos a monitorização regular do ruído e a informação cuidadosa do público. Só acompanhando a evolução do problema é que o cidadão se torna consciente da sua gravidade e, ao mesmo tempo, se tranquiliza com a investigação que tem vindo a ser produzida. Mais do que isso: só assim haverá um núcleo relevante de indivíduos que exijam ao poder político medidas concretas para reduzir o impacte de automóveis, aviões, comboios e outras fontes de poluição sonora.
O terceiro objectivo da directiva europeia estabelece a importância da colaboração das entidades locais. A monitorização terá de partir das autarquias que, coordenadas centralmente, deverão produzir uma carta nacional do ruído. Infelizmente, apenas Lisboa e Almada aderiram ao processo e dinamizaram as suas cartas regulares de ruído.
Ora a abordagem noticiosa do "Diário de Notícias" foi grotesca. A articulista podia ter questionado os municípios do Porto, de Coimbra, de Faro, de Aveiro ou do Funchal: afinal, as directivas comunitárias ainda não se impuseram naquelas paragens. Mas o texto reflecte esta barbaridade: Almada é a segunda cidade mais barulhenta do país!
Só há duas cartas de ruído publicadas regularmente em Portugal. Não há dados sobre poluição sonora em mais nenhuma cidade. Como pode alguém objectivamente considerar que Almada é a segunda cidade mais ruidosa se nenhuma outra se submete a escrutínio? E já agora, como se chega à conclusão de que a Almada é a segunda e não se menciona que Lisboa é a primeira?
Definitivamente, compensa muito mais não aderir ao programa. Sem dados, não há ruído registado, pelo que não há notícias desagradáveis. Proponho até a extensão do raciocínio a outro tipo de cadastros pedidos pela administração central. Que o distrito de Castelo Branco não entregue o seu levantamento de área ardida em 2004: evitará aparecer como o distrito mais flagelado pelos incêndios! O "Diário de Notícias" pegará no último da lista oficial e será esse o pior.
Que Alcochete não entregue o seu levantamento de rendimentos per capita. Evitará a incómoda distinção de concelho mais pobre do país no próximo relato noticioso do DN; que Bragança não se incomode em apresentar os registos de imigrantes ilegais detidos em bares de alterne: evitará ser distinguido pelo DN como a cidade com mais brasileiras ilegais por metro quadrado.
A lista de possibilidades é interminável. Quem sabe se não inauguramos uma nova era da sociedade de informação, em que cada município guarda para si os seus levantamentos e impede qualquer esforço de centralização de informação? Sem dados, os problemas desaparecem por encanto. Não há carta de ruído no Porto e em Coimbra, pelo que, pela lógica, não há ruído nestas duas cidades. Quod erat demonstrandum.

O texto integral da directiva comunítária sobre o ruído pode ser lido aqui.

sexta-feira, novembro 19, 2004

Novelo paleolítico

Um provérbio polaco aconselha que nunca se deve mergulhar duas vezes no mesmo rio. Diz a sabedoria eslava que, sabendo de antemão as desvantagens de uma experiência negativa, não faz sentido repeti-la. Seria curioso testar a sensibilidade polaca no caso das gravuras paleolíticas de Foz Côa.
O processo que levou à qualificação das gravuras rupestres e suspensão da barragem hidroeléctrica projectada pela EDP é sinuoso e ainda hoje polémico. Compromete transversalmente dois executivos – o último de Cavaco Silva e o primeiro de António Guterres. Têm ambos culpas no cartório e é a eles que devem ser assacadas responsabilidades pelo descontentamento crescente da população de Vila Nova de Foz Côa.
Este mês, cumprem-se dez anos sobre a validação científica do achado e a natural reivindicação de que as obras da barragem cessassem. Entre o final de 1994 e o ano de 1995, desenrolou-se em Portugal uma trama curiosa, que serviu inclusivamente de tubo de ensaio para uma obra sociológica notável de Maria Eduarda Gonçalves ("O Caso de Foz Côa", edições 70).
Errou primeiro o executivo de Cavaco Silva. E que erro! Demonstrou arrogância e falta de sensibilidade para o património cultural. Preferiu colocar em causa gratuitamente a credibilidade de peritos e deu a entender que se sentiria satisfeito se a datação das gravuras não correspondesse ao Paleolítico. Quando um membro do governo se referiu aos "rabiscos na parede", sintetizou na perfeição o que pensava o executivo daquele pequeno grão de areia na engrenagem. Nas rochas de xisto do vale do Côa, ficou gravada a imperícia ministerial para lidar com o património arqueológico.
Seguiu-se António Guterres, que herdara o conflito pelo lado mais confortável. Ele, Guterres, era o defensor da herança cultural contra a bárbara EDP e o governo composto por filisteus. Até tinha razão, mas ninguém pode contornar impunemente a lei básica da hermenêutica: és prisioneiro da palavra que proferires! E Guterres ficou refém das promessas irrealistas que deixou na Beira Alta. Prometeu um turismo cultural de 200 mil pessoas/ano. Prometeu três centenas de projectos de investimento privado, ao abrigo do programa Procôa, que melhorariam infra-estruturas e trariam sangue novo à região. Prometeu auto-estradas e hotéis. As expectativas geradas na região, que facilmente se constavam em 1996 e 1997, foram elevadíssimas. Nas margens do Côa, estava a galinha dos ovos de ouro.
Os anos passaram, e os projectos ficaram na gaveta. Segundo o "Jornal de Notícias", em dez anos apenas surgiram quatro candidaturas ao programa de modernização do comércio local. O número de visitantes do Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC) cifra-se em 20 mil/ano. As estradas e os hotéis ficaram em projecto e diz-se hoje, à boca cheia na vila, que melhor seria que a água do rio tivesse coberto as rochas.
Há cerca de um ano, escrevi uma notícia que dava conta do desconforto local com a previsível perda de fundos estruturais para construir o famoso museu do Côa. Se as obras não arrancassem até final de 2004, o financiamento teria de ser exclusivamente fornecido pelo governo português. Ou seja, o museu seria adiado para as calendas gregas.
Noto hoje com alguma ironia que as obras vão avançar no próximo mês, a escassos dias do fim do prazo. O Museu de Arte e Arqueologia estará pronto em 2007 e custará 15 milhões de euros, provenientes em grande parte do III Quadro Comunitário de Apoio. Aleluia!
O que devemos extrair da gestão deste caso para a sociedade portuguesa? Espero, em primeira instância, que prevaleça a conclusão sadia de que o turismo cultural de excelência não se cria com pós de perlimpimpim, num passe de mágica. Pelo contrário. A dinamização de projectos culturais é lenta e progressiva e exige investimento contínuo.
Quer se queira quer não, o caso do Côa fez também jurisprudência, marcou o desfecho de casos futuros. Daqui para a frente, haverá sempre opositores ferozes da protecção de sítios arqueológicos, que lembrarão o que não se fez em Foz Côa; e haverá sempre árduos defensores do património, que evocarão o que foi possível fazer graças à mobilização cívica e à valorização da herança cultural.
Rebato no entanto a ideia de que Vila Nova de Foz Côa só perdeu com o caso das gravuras:
- O emprego na barragem era limitado aos quatro anos de construção. O PAVC gerou emprego permanente na região. Escasso mas certo.
- As gravuras colocaram Foz Côa e a Beira Alta no mapa. Vinte mil visitantes/ano numa zona de interior profundo são uma conquista louvável.
- A investigação arqueológica ganhou adeptos e institucionalizou-se, ganhando acesso mais regular ao espectro mediático, graças a este caso.
- O curso do rio Côa não foi adulterado, mantendo alguma relação com o seu percurso prístino.
- E não esqueçamos o principal apesar da tristeza que invade esta vila beirã: preservámos o que não tem preço.
Uma coisa, porém, o caso do Côa não fez: não gerou a publicitada riqueza "Ovomaltine", tão abundante como instantânea. E o mais trágico é que todos embarcámos nessa falácia.

quinta-feira, novembro 18, 2004

O partido enjeitado

O Partido Ecologista "Os Verdes" (PEV) é normalmente atacado em todas as frentes, como um soldado munido apenas de uma fisga num campo de batalha de artilharia pesada. Há cerca de dois meses, Paulo Portas atacou a legitimidade do PEV, acusando-o de ser apenas um artifício político para duplicar a expressão parlamentar do PCP; do PS chovem mais críticas do que elogios; o CDS-PP e o PSD ignoram constantemente esta voz ambiental; e o Bloco de Esquerda nem se lhe refere, sobretudo porque a sua agenda política oblitera o ambiente e o desenvolvimento sustentável. Definitivamente, o partido de Louçã não vive dos votos da comunidade ambientalista.
Do lado da sociedade civil, inclusivamente entre os responsáveis de organizações não governamentais, também não advém nenhum reconhecimento da representação política do PEV. Em ensaios recentes, Luísa Schmidt e Viriato Soromenho-Marques, dois dos mais prolíferos pensadores do movimento ambientalista português, consideraram que a fundação do PEV em 1982, à boleia de movimentos idênticos gerados na Europa, impediu a criação de uma força política desvinculada e verdadeiramente representante da sociedade civil. Não discordo totalmente, mas considero que, apesar disso, o PEV tem uma função importante na Assembleia da República e seria uma pena se, em futuras legislaturas, a deputada Heloísa Apolónia estivesse ausente.
O espaço de intervenção de cada partido nos debates parlamentares é forçosamente controlado. As munições são contadas criteriosamente e as áreas de contestação têm de ser seleccionadas para provocar o máximo impacte.
Acredito sinceramente que as secções de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de cada partido sejam genuínas. Acredito igualmente que tenham propostas a apresentar no hemiciclo. Mas sei, com indisfarçável clareza, que em nome da simplicidade partidária, são sistematicamente silenciadas.
E chegamos assim à discussão do mais recente Orçamento de Estado, iniciada na quinta-feira passada e que terá agora sessões de discussão da especialidade até 9 de Dezembro. Das seis forças políticas representadas na Assembleia, adivinhem quem tocou no tema do Ambiente durante a discussão do OE. Naturalmente, o PEV, através de uma interpelação de Heloísa Apolónia.
A deputada pronunciou-se sobre o recente plano de redução da dependência portuguesa face ao petróleo e apresentou a dúvida que preocupa verdadeiramente quem trabalha e investiga no sector das energias renováveis: qual o motivo pelo qual estas medidas fundamentais, já apontadas aliás no Plano Nacional de Alterações Climáticas, não têm qualquer tradução no OE para 2005? Que garantias dá o governo de que o programa vai começar se nem sequer contempla dotação orçamental para a sua aplicação? Com o passado de Álvaro Barreto, convenhamos que é legítimo acreditar que este programa não vinculado ao OE pode durar tão pouco como as últimas cinco mulheres de Henrique VIII.
Simultaneamente, a deputada do PEV disse também o que não podia deixar de ser dito: 259 milhões de euros para o Ambiente não chegam. O sector é sempre o parente infeliz, que recebe as moedas de cobre e vive ligado à máquina. E o Instituto da Conservação da Natureza "tem sido completamente estrangulado", disse ainda Heloísa Apolónia, lamentando mais um corte orçamental numa instituição para a qual, recordo, o ministro Nobre Guedes apresentou a solução absurda: fazer mais com menos dinheiro.
Nenhuma destas marcas discursivas será incluída nos compêndios de oratória parlamentar. Nenhuma passagem será imitada nos debates de retórica. Mas num hemiciclo de mais de duzentos deputados, na sessão mais importante do ano, mais ninguém se preocupou em discutir a causa ambiental, o ICN e as tropelias de Barreto.
É por isso que o PEV é e será fundamental. E não ficaria mal a algumas ONG reconhecê-lo.

quarta-feira, novembro 17, 2004

Trincheiras governamentais

Uma das falácias mais comuns na apreciação de um governo é a percepção de que todos tocam no mesmo tom, sob a batuta de um maestro incontestado e obedecendo à mesma partitura. Nada mais falso. Winston Churchill temia os inimigos do partido adversário, mas mais ainda aqueles que, sob o amplo e difuso guarda-chuva do seu partido, não perdiam uma oportunidade de o apunhalar pelas costas. Um governo não é um exército disciplinado. É uma confederação de alianças momentâneas, de ódios incorrigíveis e de ambições desmedidas.
Surpreendido, caro leitor? Basta pensar nas rasteiras que os sucessivos ministros de Cavaco Silva pregaram aos colegas de gabinete. Ou no contentamento dos rivais de Fernando Gomes, quando o tristemente célebre ministro socialista da Administração Interna foi toureado pela população de Barrancos.
Os piores inimigos de cada ministro não são os respectivos ministros-sombra. Esses partilham uma percepção comum da generalidade da área de intervenção e operam sob os mesmos pressupostos. O pior inimigo do ministro da Economia é o ministro que tutela a Segurança Social. O pior rival do político que controla o sector dos Transportes é o ministro que tutela a Energia. O ministro da Agricultura é odiado pelo do Turismo. O do Desporto pega-se com a da Cultura. Cada área tem uma antítese, uma área concorrente, que luta pelos mesmos recursos sob outra hierarquia de prioridades. No fim desta cadeia, está o Ambiente. O ministro que a tutela, qualquer que ele seja, é minado pelos sectores tangentes: da Economia ao Turismo, da Agricultura, Pescas e Florestas aos Transportes. Há um forte lobby que visa impulsionar o ministro do Ambiente borda fora, o mais rapidamente possível e preferencialmente com um lastro que o leve, de supetão, até ao fundo.
Há semanas, Nobre Guedes admitiu que ninguém o escuta no Conselho de Ministros. Ou, por outras palavras, que ninguém quer saber da sua visão do mundo. Acredito piamente que a tarefa do ministro do Ambiente seja a mais solitária do leque político, quando todos os outros conspiram para esvaziar a sua área de influência. Mas sabendo desta animosidade inerente ao posto, pasmo quando leio que Nobre Guedes foi ontem a Canas de Senhorim conversar com a população desesperada, que quis impedir a saída de mais urânio da Empresa Nacional de Urânio.
As regras de ouro em sobrevivência política podem ser enunciadas da seguinte forma: "Não abras nenhuma pasta que não tenhas de abrir. Não destapes nenhum assunto sem seres obrigado. Não te envolvas em polémicas que não sejam indispensáveis!" A isto, Nobre Guedes respondeu com uma entrada olímpica em cena, mergulhando de cabeça numa luta que não era sua. O que diabo foi o ministro fazer a Canas de Senhorim, negociando compromissos com associações que querem que o proveito da venda de urânio reverta para intervenções na região? Não tem a pasta do Ambiente suficientes causas que evitem mais uma imolação pública do ministro? Não havia ninguém do vasto elenco de secretários de estado e chefes de gabinete que pudesse ser despachado para a Urgeiriça, sem danos de maior?
Há semanas, Álvaro Barreto, em entrevista radiofónica, puxou as orelhas a Nobre Guedes, acusando-o de ter divulgado a despropósito o relatório sobre o incêndio da refinaria da Galp. Como se sentirá agora o ministro das Actividades Económicas, depois desta ingerência ambiental na sua área? Haverá nova reprimenda? Não gosto muito de fazer previsões, mas atrevo-me a dizer que Luís Nobre Guedes tornou-se a partir de ontem uma espécie em vias de extinção. E a ele nem a convenção CITES vai valer.

O desígnio do mar

Irritam-me solenemente os desígnios nacionais, as vocações
lusitanas e as recordações distorcidas da glória de outros
tempos. Ciclicamente, temos desígnios nacionais inseridos no
discurso político e rapidamente esquecidos. É a nossa sina,
diria, para recuperar outro estigma discursivo.
Cumpriram-se agora dois anos sobre o desastre ecológico
provocado pelo naufrágio do Prestige, mas a efeméride passou
em claro, discretamente varrida para baixo do tapete da
actualidade sem memória.
Ironicamente, esta foi a semana que o ministro da Defesa e dos
Assuntos do Mar escolheu para anunciar a aplicação prática do
nosso desígnio oceânico. E fê-lo com a tradicional mestria no
domínio da arte comunicacional, acertando timings com jornais
e televisões.
Recapitulemos os passos da última semana, até porque
importa arquivar estas lições no manual do bom político.
Fase 1: O «Expresso», jornal de seriedade inquestionável,
avançou com uma manchete anunciando catastroficamente o
fim da soberania nacional sobre a nossa zona costeira. A União
Europeia absorverá a gestão de todos os recursos marinhos,
pelo que o futuro das nossas pescas será sombrio – escreveu
o jornal.
Fase 2: A Comissão Estratégica dos Oceanos anunciou a sua
dissolução futura, depois de entregue o caderno de
recomendações e sobretudo perante a ausência de medidas
políticas concretas.
Fase 3: Depois da tempestade, a bonança. Saído das brumas,
o ministro Paulo Portas anunciou um pacote de medidas
estratégicas, que reconciliará os portugueses com o seu
desígnio nacional e com a sua vocação marinheira. Foi
fotografado de boné, de semblante preocupado, enquanto
mirava nostalgicamente a água. Marcou-se um Conselho de
Ministros a bordo da "Sagres" e anunciaram-se protocolos
transversais, imagem dialéctica de marca dos novos tempos.
Organizou-se ainda uma lista de "Novos Heróis do Mar",
condecorados em velocidade supersónica e sob critérios nebulosos.
E pronto! Está feito! Leiam-se os destaques que, por exemplo, o
«Jornal de Notícias» redigiu hoje sobre a semana do mar:
Portugal deve ser nação oceânica! Há que aprofundar o
conhecimento! Desenvolvimento mais sustentável! Dar
visibilidade ao país no exterior! Criar um conselho
especializado.
O vazio das propostas é evidente. Uma mão cheia de coisa
nenhuma é o resultado do espalhafato que, arrisco prevê-lo,
extinguir-se-á amanhã ou depois sem qualquer resultado
prático. O governo dormirá de consciência tranquila; os
cidadãos extrairão a ideia imprecisa de que há um programa de
acção para recuperar recursos e oportunidades das actividades
marítimas. Os jornalistas partirão para outras não-histórias com
a mesma desenvoltura.
E entretanto, um país com 1,7 milhões de quadrados de área
marítima, equivalentes a 18 vezes a área terrestre, que possui
mais de 20 mil pescadores e 924 quilómetros de costa
estagna, sem ideias, como um barco-fantasma.
Deixo-vos por isso um rol de perguntas tristemente sem
resposta:
1) Alguém poderá garantir, dois anos depois, que o naufrágio
do «Prestige» não teria hoje o terrível impacte de 2002? A
vigilância melhorou? A capacidade de patrulha foi
incrementada? A capacidade de intervenção em derrames de
crude agilizou?
2) Não será absurdo que durante a semana do mar, em que
tanto se falou de acção e intervenção, ninguém tenha dedicado
uma linha que fosse ao Parque Marinho da Arrábida Luiz
Saldanha, única área protegida na zona costeira continental e
alvo diário de atentados ecológicos?
Talvez seja esse o desígnio nacional: esquecer o que está à
mão e partir para aventuras desmioladas, mistos de coragem
poética e inconsciência prática. Temos por isso o mar que merecemos.

quarta-feira, novembro 10, 2004

As pintas do leopardo

E tu serás o leopardo. Serás ardiloso nas tuas emboscadas. Serás obstinado na tua acção. Serás matreiro e teimoso. Não abdicarás das tuas ideias mesmo que elas sejam nocivas para a tua espécie. Para que todos te reconheçam, terás pintas no corpo, que nunca se perderão.

Ocorreu-me esta fábula infantil enquanto relia o documento produzido pelo Ministério do Trabalho e das Actividades Económicas (MAET) para reduzir a dependência portuguesa face ao petróleo. Um ponto continua a intrigar-me: a criação da rede de postos de combustível que Álvaro Barreto considerou indispensável para o sucesso da operação de fomento de combustíveis alternativos ao petróleo.
Arthur Conan Doyle sempre disse que quando estiver excluído o impossível, tudo o resto, mesmo o mais improvável, deve ser verdadeiro. Todavia, na minha primeira leitura, confesso que interpretei o documento por simpatia. Associei a expressão "alternativos ao petróleo" como biocombustível e nunca me passou pela cabeça que poderia haver uma solução mais óbvia.
Pergunto: e se o MAET tiver em mente uma aposta considerável no gás natural enquanto combustível? A tese faz sentido, sobretudo para um ministro com o perfil de Álvaro Barreto. Aproveitando os valores actuais absurdos do barril de petróleo, Barreto podia promover uma aposta num novo combustível fóssil, uma nova matéria-prima que obriga Portugal a depender do estrangeiro e, ainda por cima, constitui também uma fonte finita. Há naturalmente vantagens na utilização do gás natural. É mais limpo do que os derivados de petróleo e permite diversificar as fontes energéticas, impedindo que toda a indústria automóvel dependa do mesmo recurso. Mas não diminui as emissões de CO2, como o fariam os biocombustíveis, pelo que não pode ser considerado uma ferramenta para cumprir as exigências do Protocolo de Quioto.
Como chego a esta conclusão? Se Barreto efectivamente quisesse apostar nos biocombustíveis (não como um balão de ensaio mas como uma fonte sustentada que pudesse equipar uma boa parte do futuro parque automóvel nacional), a rede actual de abastecimento de combustíveis seria suficiente. A experiência noutras paragens diz-nos que são as próprias concessionárias que se encarregam da mistura dos biocombustíveis e a incorporam nas suas estações, como mais um serviço disponibilizado. Os veículos actuais podem inclusivamente usar misturas de biocombustíveis com gasolina ou gasóleo em determinadas percentagens sem necessidade de alterar os motores. O único obstáculo é o facto de a produção nacional de biocombustíveis ainda ser insuficiente para dar conta do recado – e aí entraria um plano governamental de incentivo.
Com o gás, o caso muda de figura. O abastecimento com gás natural exige uma estrutura independente, alheia às petrolíferas que concessionam as estações. É uma área de negócio totalmente independente, que exige a extensão das infra-estruturas de distribuição de gás natural a todo o país, de forma a incitar o consumidor a adquirir um carro abastecido a gás natural sabendo que ele poderá ser reabastecido em todo o território. Essa rede ainda é limitada e, mesmo a pequena parte que já foi desenvolvida, obrigou os contribuintes a custear um investimento grotesco.
Assalta-me agora a dúvida? Que combustível alternativo tinha Barreto em mente? Será que o leopardo afinal não perdeu as pintas?