Não é segredo para ninguém que os jornalistas não são especialmente apreciados nas universidades, nos institutos ou laboratórios de investigação, nos museus ou salas de exposição. Salvo excepções, o cientista não se sente à vontade quando é forçado a comunicar com leigos, sobretudo porque a prática jornalística dispensa a sua revisão técnica e prefere vulgarizar o seu discurso para o tornar acessível à generalidade da audiência.
Pela natureza do órgão de comunicação em que trabalho, contacto regularmente com investigadores. Muitos mostram desconfiança perante a intrusão do jornalista no seu espaço e, acredito, justificam-na precisamente porque no passado (recente ou não) tiveram más experiências no campo da divulgação. Invariavelmente, escuto as perguntas: quer que eu escreva o texto? Posso rever o seu manuscrito antes de publicação? As perguntas revelam uma genuína desconfiança perante as escolhas jornalísticas e colocam em causa uma das funções primordiais do jornalismo contemporâneo: a mediação entre a fonte e o público.
Na semana passada, um perito queixava-se abertamente da leitura que os meios de comunicação fizeram da conferência das Nações Unidas dedicada às alterações climáticas. Dizia ele que, apesar de todas as apresentações preparadas para Buenos Aires, todos os media analisaram a conferência como um falhanço político tendo em conta os objectivos do protocolo de Quioto. Dizia ele ainda que não entendia a unanimidade de todos os jornalistas na escolha deste ângulo. E queixava-se da repetida preguiça jornalística no que toca a ler relatórios extensos e a dominar pastas complexas. «Eu preparo-lhe um documento de 200 páginas e sei que você só lerá as duas páginas de conclusão. Delas fará um resumo abusivo e provavelmente exagerado. Destacará as excepções porque elas lhe parecerão curiosas ou pitorescas. Folheará o manuscrito e porventura parará num ou noutro destaque, que lhe pareça desconhecido para si e para o público. E talvez ainda escreva um texto de pendor alarmista. Por que motivo me aborreço eu com a divulgação?» – estas foram as suas palavras, reproduzidas aqui quase ipsis verbis.
Não nego a maioria destas acusações, embora também acredite que elas sejam hiperbolizadas por alguém que tem sido infeliz na sua relação com os jornalistas. Os jornalistas são inundados diariamente por torrentes de informação que não podem triar com rigor, sob risco de nada mais fazer do que ler documentos. Por excesso de trabalho, por pressões relacionadas com o fecho do jornal e com o espaço disponível, o jornalista tem de se socorrer de procedimentos técnicos que lhe permitam acabar um texto a tempo, mantendo o máximo de rigor possível. É por isso forçosamente que existem sumários das comunicações, resumos e algum enquadramento contextual na abertura ou no fecho de dossiers entregues aos media. É por isso também que o divulgador científico deve encarar a redacção dos mesmos com especial cuidado, pois esses serão os trechos mais lidos e utilizados como ponto de partida.
Naturalmente, o jornalista conscencioso não termina o seu trabalho com a leitura dos sumários. Usa-os como elemento de contexto, que colocam a pesquisa num determinado momento histórico de investigação (com tudo o que foi feito atrás e com o objectivo que se pretende alcançar com este e outros projectos de investigação). Se lê algo que desperta a atenção, procura o capítulo de desenvolvimento da ideia e recolhe mais dados. Fala então com o perito e procura confirmar a correcção da sua leitura, ao mesmo tempo que tenta colher pedaços de discurso directo. Se puder, fala ainda com alguém que também tenha trabalhado sobre o tema e tenta descobrir mais. Se o trabalho se insere numa corrente global; se é único e se essa unicidade o torna mais ou menos fiável; se a metodologia é partilhada por outros investigadores; enfim, faz uma avaliação às credenciais do perito contactado – por muito que isso aborreça a comunidade científica.
Quero eu dizer com isto que, seguindo esta linha de procedimentos, não cometemos erros? Lamentavelmente, não. Os erros são comuns, sobretudo porque se trata de uma área com múltiplos campos de especialização. Se eu domino razoavelmente a arqueologia e a sua terminologia, perco-me com facilidade quando falo com astrónomos. Falo abertamente com geólogos e tenho uma ideia muito razoável da evolução da disciplina em Portugal, mas tenho de pedir ao especialista em biotecnologia para falar devagar e soletrar termos que escuto pela primeira vez. E, como eu, julgo que a maioria dos jornalistas se defronta com a mesma dificuldade: há áreas científicas de que gostamos mais, que estudámos mais, que cultivámos mais e outras que consideramos mais inacessíveis. Lamentavelmente, na generalidade dos meios de comunicação, não é possível dividir os jornalistas por sub-áreas. Normalmente, há poucos repórteres para cobrir a área científica e estes abrangem por isso uma área inimaginável do conhecimento.
Esta limitação torna o jornalismo científico uma tarefa apenas para cientistas? Discordo parcialmente. No órgão de comunicação onde trabalho, não é invulgar socorrermo-nos dos peritos para redigir textos. Com essa circunstância, ganhamos rigor informativo e respeitabilidade. É sobre os ombros do investigador que recai o peso das afirmações e comparações publicadas. É a ele que pedirão satisfações. E o público inevitavelmente respeita mais o texto redigido por um especialista.
Mas esta abordagem tem necessariamente lacunas. Nem todos os cientistas sabem traduzir a realidade da sua área para a audiência. Nem todos sabem explicar ordens de grandeza. Nem todos dominam técnicas narrativas, que permitem manter o leitor interessado até ao fim. Por outro lado, o cientista terá tendência a abordar apenas o seu trabalho na área, esquecendo ou diminuindo o contributo de rivais.
É por isso que o jornalista científico se traduz como um meio termo entre a pedagogia e o exercício tradicional do jornalismo, como explica o investigador espanhol Carlos Elias, da Universidad de La Laguna. O jornalista científico é um mediador, um intérprete de uma mensagem complexa. Cabe-lhe conferir sentido, mesmo que essa tarefa implique a simplificação dos aspectos mais técnicos e metodológicos da investigação. Ao jornalista científico cabe o papel fundamental de fornecer informação ao público sobre esta área tão inacessível, com protocolos tão específicos e linguagens tão exclusivas, que é a ciência. Em simultâneo, tem de triar os temas verdadeiramente significativos para a sua audiência, o que o obriga por vezes a julgar o mérito dos vários projectos científicos à sua "disposição".
Jean Rostand, vencedor do prestigiado prémio Kalinga das Nações Unidas, enunciou na década de 1960 algumas das vantagens da popularização do conhecimento e da investigação científica. De acordo com o investigador, "a popularização aperfeiçoa e corrige as lacunas da educação escolar, desperta a vontade nos mais jovens de prosseguir a carreira da pesquisa, elucida e acalma o público quanto ao poder e eficácia da ciência criativa, cria elos de ligação entre os cientistas de distintas áreas que de outra forma não teriam acesso ao trabalho dos colegas e tenta os informar os decisores políticos com um estilo mais acessível do que o dos relatórios técnicos".
Terei eu convencido o meu interlocutor da semana passada? Duvido. Mas voltarei ao tema nos próximos dias.
(Continua)
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