quarta-feira, maio 28, 2014

A canibalização da língua

Quis o destino que eu tivesse participado em reuniões recentes com gestores e universitários. Para lá dos temas em cima da mesa, fico aterrorizado com a progressão galopante do... Portuglês, mistura improvisada e desnecessária de vocabulário anglófono para expressar conceitos que, sem esforço, poderiam ter sido enunciados na língua de Camões. Pior: dou por mim a repetir os mesmos tiques, mimetizando o comportamento dos anfitriões numa submissão à pressão do grupo que Jane Goodall já notara nas comunidades de chimpanzés.
Exemplo típico de uma reunião moderna:
-      Fez o benchmarking da concorrência?
-       Sabe, muitos fizeram um upgrade recente de competências. Outros ainda estão em assessment.
-       Que research methods utiliza normalmente?
-       Gosto muito do world caffe. Permite grande interactividade.
-       Nunca faz role play?
-       Tento, mas as samples que assistem aos workshops nem sempre são fiáveis.
-       Que materiais de support existem nas salas?
-      datashows, claro. Temos wireless para todo o átrio. E pointers para os oradores. Há muita coisa em cache.
-       Hum... E está previsto coffee-break?
-       Nestes work groups, prefiro pausa mais informais, uma espécie de brunch.
-       A publicidade do evento será online ou também utilizará outdoors?
-       Vamos carregar nos MREC, claro. Banners também. Tudo depende do target. Até porque o Average Time Spent na net está em quebra.
-       O site deles tem quantos OTS?
-       O reach depende muito porque os tipos aldrabam os ATV.
-       Usamos CPC, CPM ou CPO como standard?
-       Se quer que lhe diga, nenhum é fiável. Até prefiro os CPL.
-       Embedded ou skycraper?
-       Um mix funciona sempre bem.
-       Devíamos criar avatars falsos para furar as firewalls deles.
-       Talvez, mas temos responsabilidades éticas no campo do B2B e mesmo do B2C.
-       Acha? A minha preocupação é com o backbone desta empresa.

E pronto! Cá vou, cantando e rindo, integrado na corrente Portuglesa. E soltando gargalhadas sempre que me lembro disto.
Bom... Tenho content para produzir. Cheers!

segunda-feira, maio 26, 2014

A Fonte das 40 Bicas


 1768.
Lisboa ainda vive atormentada com as repercussões do sismo de treze anos antes e a corte de Dom José mantém-se na Ajuda, onde pouco ruiu, cimentando a confiança régia na geologia do seu novo bairro.
O rei recrutou o naturalista italiano Domingos Vandelli para o seu empreendimento mais recente: a construção de um espaço de lazer para os príncipes e netos. Vandelli trouxe de Pádua o modelo de um jardim botânico moderno e preocupou-se em criar uma colecção vasta de espécies vegetais – nos tempos áureos, o Real Jardim Botânico da Ajuda chegou a ter cinco mil espécies, oriundas de todos os cantos do globo.
As décadas subsequentes ao sismo de 1755 foram, porém, aventurosas e os braços de Vandelli, naturalista formado em medicina que se correspondia com Lineu, não chegavam para todos os fogos. Quatro anos depois da incumbência de criar um jardim botânico na Ajuda, em 1772, Vandelli foi chamado a Coimbra como lente de História Natural e Química na Universidade. Ali também criou as bases do jardim botânico da Universidade de Coimbra e idealizou as viagens filosóficas à Amazónia, conduzidas por alguns dos seus alunos.
Na Ajuda, portanto, o projecto ficou na mão de um auxiliar, o chefe dos jardineiros Júlio Mattiazi. Igualmente originário de Pádua, Mattiazi tratou do jardim e… da pedra. Idealizou as fontes que orientam a visita e estruturam a paisagem da Ajuda, tanto ou mais do que as sebes. A mais famosa, a Fonte das 40 Bicas, reúne animais míticos e fauna aquática, num espantoso conjunto de serpentes, peixes alados, cavalos-marinhos e outras feras. Segundo garante a tradição do bairro, a fonte terá sido construída exclusivamente com mão-de-obra da Ajuda.
De acordo com a directora do Jardim Botânico, a professora Dalila Espírito Santo, a documentação sobrevivente na Ajuda [grande parte foi para Coimbra; alguma seguiu para a Faculdade de Ciências na Rua da Escola Politécnica; e algum espólio viajou com a comitiva real para o Brasil em 1808 e ficou pelo Rio de Janeiro] comprova que Vandelli não ficou maravilhado quando viu as fontes de Mattiazi. Afinal, um jardim botânico é um espaço no qual a vegetação deve reger a paisagem, recusando a submissão à construção de pedra.
Hoje, porém, a caminho dos 250 anos do Jardim Botânico da Ajuda (em 2018), após testemunhar revoluções e mudanças de regime, cuidados desvelados e descuidos sem perdão, são as fontes que permanecem imutáveis desde 1768. O ciclo de vida das plantas, naturalmente, foi fazendo a sua selecção, as pilhagens napoleónicas destruíram muito, o clima distinguiu as espécies mais adaptáveis e a crónica falta de financiamento também deixou mossas.
Do Jardim Botânico original, ficaram os peixes alados de Mattiazi, que Vandelli desaprovou, mas o tempo validou.

Ler também:
Almaça, Carlos. A Natural History Museum of the 18th Century, 1996, Museu Bocage, Lisboa.

sexta-feira, maio 23, 2014

Distorted Alarms, 2014


Finalmente publicado. O 2.º spin-off da tese. Avisem-me se precisarem do PDF. / 
Published at last. My dissertation's second spin-off. Let me know if you need the article PDF. Cheers!

terça-feira, maio 20, 2014

Urbano Carrasco foi “correio” acidental de Salazar



«Com os meus respeitosos cumprimentos, dirijo-me a Vossa Excelência para fazer um breve relato que suponho oferecer interesse. Se assim for considero-me satisfeito por servir Vossa Excelência. Caso contrário, lamento fazer perder um tempo que é valioso», começava a carta dactilografada pelo jornalista Urbano Carrasco no dia 19 de Fevereiro de 1964, com destino a António Oliveira Salazar, presidente do Conselho.
Em duas ocasiões anteriores, já aqui relatei casos protagonizados pelo extraordinário repórter do Diário Popular que foi Urbano Carrasco [inseridas no livro Parem as Máquinas!]. Hoje, narro um episódio diferente, porventura o mais delicado da carreira deste homem que dedicou quarenta anos ao vespertino lisboeta. Evitarei juízos críticos e sentenças morais desadequadas, pois o contexto histórico e militar da época é irrepetível. Em 1964, o Estado português encontrava-se em guerra e certamente que Urbano Carrasco pesou as implicações deontológicas da profissão face ao dever de lealdade para com o governo.
A carta, recebida pelo ditador dois dias depois, em 21 de Fevereiro, conforme nota manuscrita no canto superior esquerdo da missiva, continuava: «Na minha recente entrevista, em Madrid, que o Diário Popular está a publicar, fiz algumas perguntas que ficaram sem resposta e no que se refere a outras foi-me dito que as não poderia divulgar.» A que se referia Carrasco?
"Diário Popular", 18 de Fevereiro de 1964
(a partir do arquivo da Biblioteca Nacional)

No dia 18 de Fevereiro de 1964, o jornal dirigido por Martinho Nobre de Melo utilizou mais de metade da sua primeira página para um tema internacional, uma raridade num jornal definido em 1956 por Guilherme Brás Medeiros, um dos seus administradores, como um jornal de noticiário de proximidade. Apesar disso, nesta terça-feira, titulava-se em letras garrafais: “TSHOMBÉ FALA AO DIÁRIO POPULAR SOBRE A MORTE DE LUMUMBA E A ACTUAL SITUAÇÃO NO CONGO. O MEDO É O RESPONSÁVEL PELO QUE SE PASSA EM ÁFRICA!” A entrevista exclusiva fora obtida em Madrid por Urbano Carrasco e a sua publicação fora partida por três edições, sempre com destaque de primeira página, apesar de o tema competir na agenda com outros focos de atenção, como o golpe de estado no Gabão, a intervenção das forças internacionais em Chipre e o terrível sismo da ilha de São Jorge, nos Açores.
Moisés Tshombé (1919-1969), porém, era um dirigente político em quem o governo português apostara fortemente desde 1960. Filho de uma família nobre, fora educado numa escola de missionários no então Congo Belga e formara-se em Contabilidade. Fundara na década de 1950 o CONAKAT, um partido que se distinguira primeiro na luta contra o colonialismo belga e, logo depois, por declarar a secessão da província do Catanga face ao Congo. Nas eleições legislativas de 1960, conquistara o poder e oferecia ao mundo um discurso alternativo ao de Lumumba no Congo e de Holden Roberto em Angola. Anticomunista, propunha-se colaborar com os governos belga, francês e português na reconstrução económica do Catanga, então responsável por 60% da produção mundial de urânio e 80% dos diamantes industriais (dados do major Rui Velez, no seu excelente Salazar e Tshombé, 2013, DG Edições, fonte principal deste texto e autor da descoberta da carta de Urbano Carrasco para Salazar, amavelmente disponibilizada).




O percurso político de Tshombé replica a história atribulada do próprio Congo. A declaração de independência do Catanga conduziu a uma intervenção da Organização das Nações Unidas no território, a pedido de Patrice Lumumba e Cyrille Adoulla, líderes independentistas do Congo. Em Janeiro de 1961, Lumumba deslocara-se ao Catanga, mas fora detido, torturado e executado, alimentando ainda mais o caos no território (uma comissão posterior do Parlamento Belga isentou Moisés Tshombé de responsabilidades na execução de Lumumba). Face à intervenção da ONU, Tshombé exilou-se na Rodésia do Norte e depois em Espanha, onde Urbano Carrasco o encontrou, semanas antes de o dirigente regressar ao Congo para integrar novo governo de coligação.
A investigação de mestrado do major Rui Velez (disponível aqui) revela exaustivamente que Salazar e Franco Nogueira apostaram fortemente na liderança de Tshombé, que visitara Lisboa em 1963. No Forte do Estoril, Salazar propôs ao dirigente do Catanga a supressão das bases das forças independentistas angolanas no território, bem como a detenção dos cabecilhas do movimento. A guerrilha independentista provocava então evidentes danos no Nordeste de Angola e a possibilidade de os homens de Holden Roberto cruzarem livremente a fronteira do Congo impedia o exército português de retaliar. Em troca da intervenção no Catanga, o ditador português oferecia aconselhamento e equipamento militar. Nos seus volumes de memórias, Franco Nogueira revelou que Salazar achou Tshombé lúcido e realista, tendo mesmo comentado: «No meu espírito, promovi-o a estadista branco.» O Catanga adquiriu vasto equipamento militar nos meses seguintes.
Era neste homem e no seu projecto para o Catanga que o governo português apostava para recuperar o controlo sobre a frente militar no Norte de Angola. Todavia, a entrevista de Urbano Carrasco (que terá sido obviamente lida e aprovada pelos Serviços de Censura, embora eu não tenha encontrado as provas da Censura destes textos) versou exclusivamente sobre a situação política no Congo, nunca mencionando Angola ou a frente guerrilheira de Holden Roberto. No primeiro trecho da entrevista (18 de Fevereiro), Carrasco apresentou Tshombé, distinguindo-o de Lumumba e das ameaças veladas que este fizera aos antigos dirigentes coloniais; no dia seguinte, o Diário Popular dava-lhe voz para recusar responsabilidades na morte de Lumumba e dois companheiros. Na peça, Tshombé acusava o governo central congolês pelo sucedido e Cyrille Adoula pela polémica decisão de regar os três corpos com ácido, impedindo qualquer exame legal posterior. Em título, referia: «NÃO FORAM PRISIONEIROS MAS AGONIZANTES O QUE RECEBEMOS EM ELISABETHVILLE – ESPANCAMENTO MORTAL DE LUMUMBA PELOS SOLDADOS DO GOVERNO CENTRAL CONGOLÊS.»
Por fim, no terceiro e último trecho da entrevista, Tshombé repetia a Carrasco a nota dominante do seu discurso: «ADOULA, QUE ORIENTOU PESSOALMENTE A DESTRUIÇÃO DO CADÁVER DE LUMUMBA, É UM FANTOCHE QUE NÃO SABE O QUE FAZ E A ONU, SUFICIENTEMENTE DESPRESTIGIADA NO CONGO, VAI SAIR DALI SEM TROMBETAS NEM BANDEIRAS.» No corpo da entrevista, Tshombé sossegava os europeus: «A colaboração com os europeus é indispensável. Só com ela se poderão salvar os países africanos e fazê-los trilhar uma senda de progresso.» Em jeito premonitório, Tshombé avisava Carrasco: «Será necessário muito tempo, receio-o, para que o Congo volte a ter paz. Vai mesmo conhecer, nos meses que se avizinham, horas extremamente difíceis.»

O RECADO PARA SALAZAR
Na Villa Kaunis em Madrid, elegante propriedade no bairro de La Moraleja onde a delegação do Catanga se exilara, Urbano Carrasco fez várias perguntas sobre Angola, Portugal e o apoio que Moisés Tshombé se propunha dar à causa nacional. O líder do Catanga, porém, pediu explicitamente que o jornalista não publicasse as suas respostas sobre o tema pois, se atendesse o pedido, «não deixaria de ser violentamente atacado pelos americanos.»
Carrasco quis saber o que faria Tshombé face à «incompreensível liberdade e apoio que são dados aos bandos de guerrilheiros que ali [no Congo] têm a sua base e dali organizam ataques contra Angola». A resposta foi pronta:
«Não tome nota do que vou dizer-lhe. Pelo menos não o escreva no seu jornal, pois ver-me-ia obrigado a desmenti-lo… Já tenho suficientes complicações com os americanos e não deixariam de me atacar violentamente dizendo que eu sou amigo dos colonialistas. Também isso me criaria dificuldades no Congo, mas a minha recusa em responder-lhe para publicação é devida, sobretudo, aos americanos. Para si, contudo, sempre lhe direi que a minha posição e a minha amizade pelos portugueses são bem conhecidas. E se um dia eu dirigir o Congo, nem sequer é problema o que me pergunta: claro está que nessas circunstâncias nunca poderiam viver no Congo esses Holden Robertos e outros! Isso é problema que nem se põe. Mas se o fosse dizer agora, os americanos caíam-me em cima, ainda com maior violência!»
A outra questão sobre a hegemonia americana sobre os interesses económicos do Congo, Tshombé voltou a pedir sigilo: «Também não posso responder-lhe a essa pergunta e peço-lhe que não diga no seu jornal que a formulou. Porque espero poder responder-lhe sem quaisquer restrições, mas só depois de instalado em Leopoldville…»
Urbano Carrasco terminava a missiva: «Foi isto, Senhor Professor, que não publiquei, mas ouvi ao Presidente Tshombé e suponho possa oferecer interesse ser [sic] do conhecimento de Vossa Excelência.» Os dados, porém, estavam lançados e Tshombé perdera apoios decisivos. Regressou ao Congo em triunfo no Verão de 1964, mas foi destituído um ano mais tarde. Exilou-se novamente, fugindo a tempo de uma condenação à revelia em 1967. Com apoio ocidental, Joseph Mobutu tomara o poder com mãos de ferro em 1965 e só o largaria 32 anos depois.
Moisés  Tshombé viria a morrer na Argélia em 1969, na sequência de um ataque cardíaco. Dois anos antes, o avião em que viajava fora desviado misteriosamente para Argel. O Diário Popular noticiou a sua morte na primeira página no dia 30 de Junho de 1969 e Carrasco evocou, na página 11, a entrevista de 1964. Confessava «a admiração que fiquei a ter pelo discutido político e estadista congolês face à serena prova de que ele dava provas» e lembrava que, à data da entrevista, Tshombé ainda considerava Mobotu «um amigo pessoal», circunstância que a realidade desmentiria. Carrasco aproveitou então a ocasião para referir que, à despedida em Madrid, Tshombé fizera votos para que o povo de Angola vivesse em paz e não mergulhasse na miséria em que caíra o povo do Congo. «Nós, portugueses, conseguimos evitar em Angola o que Moisés Tshombé, mesmo com sacrifício da sua vida, não conseguiu para o Congo». 
Com o entusiasmo patriótico, Urbano Carrasco esqueceu em 1969 que omitira qualquer referência a Angola no texto publicado cinco anos antes.

segunda-feira, maio 12, 2014

O ilustrador faz jornalismo?


"Ilustração Portuguesa", n.º 93, Agosto de 1905
(a partir do arquivo da Hemeroteca Digital)

Em 1905, o Jardim Zoológico de Lisboa mudou-se para as suas instalações actuais, em Sete Rios. Para trás, ficavam os tempos de Palhavã e das jaulas improvisadas, onde se encafuavam os animais, tristes e melancólicos. Nos terrenos da Quinta das Laranjeiras, o projecto iniciado por Dom Fernando II ganhava por fim dignidade. Era certamente nisso que os convidados pensavam no dia 28 de Maio à medida que se cortavam fitas e se discursavam palavras de circunstâncias, dois hábitos portugueses tão antigos como a ginja e o chinquilho.
Entre os animais expostos, um felino estranhava o ambiente. Era um leopardo moçambicano, oferecido por João de Azevedo Coutinho ao rei Dom Carlos – e por este cedido ao Zoológico. “O Século” refere que os uivos dos felinos assustavam as senhoras e motivavam graças dos cavalheiros.
Meses depois, em Agosto, o Zoo e o leopardo voltaram às páginas dos jornais. Desta vez, sem discursos nem gracejos, mas com um episódio dramático que comoveu a cidade. Não se sabe bem como (alguns jornais falam num descuido durante a transferência do animal; outros referem que o felino encontrou uma fenda no topo da sua nova jaula), mas o leopardo evadiu-se. Andou à solta – primeiro a passo, depois a trote. Soltou alguns rugidos, assustou e assustou-se.
O animal tentou sair do Jardim Zoológico e desaparecer por Sete Rios, mas alguém alertara a guarda e um regimento de infantaria impediu o êxodo urbano que teria sido ainda mais espectacular. O leopardo fugiu assim para o interior do Zoo, dissimulando-se entre a folhagem e os silvados. Foi visto junto dos macacos e, mais tarde, perto da jaula das águias. Ali, por fim, foi encurralado. Em seu redor, acercaram-se 14 soldados e alguns tratadores, com forquilhas, facas atadas a paus em jeito de baionetas e armas de fogo. Parecia um exercício militar. Nervosos, os homens dispararam à primeira ocasião e feriram a fera com balas reais.
O leopardo deu alguns passos e tombou pesadamente à entrada do Túnel das Águas Boas. Destemido, o soldado 19 da 3.ª Companhia quis vê-lo de perto e acabou por vê-lo efectivamente mais perto do que gostaria. Num último sopro de vida, o leopardo atirou-se ao rosto do infeliz e ali fincou os dentes. Aterrorizados, os camaradas de armas não se fizeram rogados e dispararam sem norte, sobre a fera e sobre o homem. O animal morreu de imediato. O soldado, crivado de balas, seguiu de carro eléctrico para o Hospital de São José, onde foi operado e sobreviveu, embora o seu nome não tenha sido preservado para memória futura.
Dos relatos jornalísticos que li, destaco o trabalho de “O Século” pela aposta clara na inversão das prioridades tradicionais de representação. Sempre mais activo do que a concorrência, o jornal de Silva Graça encomendou uma ilustração a um artista que não consegui identificar, apesar da assinatura rabiscada no canto inferior esquerdo. Recolhendo testemunhos presenciais, o ilustrador criou esta reconstituição, usada no jornal e na revista semanal “Ilustração Portuguesa”. As fotografias de suporte foram publicadas nas páginas seguintes, num reconhecimento implícito de que era a ilustração o suporte ideal para contar esta história.
Lembrei-me hoje deste episódio quando li a mensagem de um leitor que se queixava da excessiva prioridade que damos às ilustrações na revista. O fotógrafo tem uma abordagem jornalística, ao passo que o ilustrador aborda a representação com uma perspectiva artística – argumentava. Ontem como hoje, será mesmo a fotografia o dispositivo universal para contar visualmente qualquer história? Ou a reconstituição de um ilustrador pode ser um gesto tão jornalístico como o clique na máquina?

terça-feira, maio 06, 2014

A história para lá do óbvio



A maior parte dos trabalhos publicados na revista resulta de planeamento e de produção. Sempre que me convidam para falar sobre fotografia na National Geographic, tenho o cuidado de sublinhar que a espontaneidade é muito mais rara do que os leitores imaginam. Por regra, antes de captar uma fotografia, o repórter fotográfico já a imaginou. Já testou outras soluções de composição, iluminação e exposição. Já fez experiências que correram mal. É raro o momento em que um fotógrafo sai despreocupadamente para o campo e capta, sem preparação nem reflexão, o momento certo. Por outras palavras: a espontaneidade custa muito trabalho e não tem nada que ver com a sorte.
Em Janeiro deste ano, fiz uma intervenção deste teor no festival de fotografia de Vouzela, procurando sublinhar a importância das narrativas visuais para a nossa publicação e a necessidade premente de não repetir conceitos, nem objectos. Tinha então em mente um trabalho em curso que o fotógrafo Steve Winter levava a cabo com os pumas da América do Norte. Motivado para fotografá-los em contexto semi-urbano, Steve dedicou mais de um ano a esta reportagem e a fotografia mais emblemática (um puma caminhando em frente do lendário cartaz de Hollywood, em Los Angeles) demorou quatro meses a executar. Não houve nada de acidental na proeza!
Ora, em Vouzela, assisti a várias apresentações. Uma delas, do jovem fotógrafo Ricardo Lourenço, representava o Alentejo selvagem, tal como a região se apresenta a este repórter de Portalegre. Entre várias fotografias memoráveis, fiquei com esta debaixo de olho: um lacrau fluorescente. Não sabia nada sobre o tema, nem imaginava se o Ricardo teria procurado documentação sobre o fenómeno ou se a imagem resultava da tal espontaneidade que eu não me canso de dizer que é inexistente.
Foi uma das poucas ocasiões em que uma página da National Geographic nasceu a partir de uma fotografia e não de uma ideia original, susceptível de desenvolvimento posterior e de materialização em imagem. Ao talento do Ricardo, juntou-se o conhecimento do biólogo Pedro Sousa, investigador do CIBIO, que contextualizou o fenómeno, forneceu informação científica recente, desconstruiu algumas ideias feitas que eu tinha sobre a função deste dispositivo e permitiu que o texto fosse o mais rigoroso possível, dentro dos constrangimentos de espaço que as secções iniciais impõem.
Eis portanto como um inofensivo lacrau terminou nas páginas da edição portuguesa da National Geographic. Com o talento do Ricardo e a sabedoria do Pedro.

sexta-feira, maio 02, 2014

Liberdade de Imprensa


Havendo dias para tudo e mais alguma coisa, algum dia teria de ser o nosso. Parece que é hoje. Bom Dia da Liberdade da Imprensa!






Fotografias da redacção, composição, impressão e distribuição do Diário Popular. C. 1962.