domingo, junho 30, 2019

A anta das Pedras Grandes

Tinha programado esta visita para a última semana de Maio, altura em que passaram três anos sobre a morte do arqueólogo Rui Boaventura, mas não foi possível.
A anta das Pedras Grandes, em Caneças/Odivelas, é um monumento ao engenho do Rui, que moveu mundos e fundos para que o “seu” município de Odivelas requalificasse este espaço e promovesse uma campanha de escavação em 2001.
As “pedras grandes” são o que resta de um dos seis monumentos megalíticos identificados por Carlos Ribeiro no século XIX na zona saloia de Lisboa. É também – constato agora – a anta mais perto de minha casa e uma verdadeira improbabilidade estatística que aqui se mantenha, num dos conselhos com maior densidade demográfica do país.
Valeu o engenho do Rui.

Que aqui fique por mais 3.500 anos.


sábado, junho 22, 2019

BB antes do hífen

Numa entrevista que me concedeu, em 2015, Armando Baptista-Bastos contou-me que demorara a encontrar a sua voz. Filho de um dos tipógrafos que participara na fundação de A Bola e do Diário Popular, teve acesso desde miúdo ao mundo mágico da composição a chumbo. «Experimentei várias assinaturas e estilos antes de encontrar os meus", disse-me.

Há tempos, no arquivo do Diário Popular, identifiquei uma dessas prosas – sob assinatura de Baptista Bastos ainda sem o hífen e com desenhos do inesquecível José de Lemos. BB teria 17 anos em 1951, quando esse conto foi publicado.
Hoje, encontrei outro registo. No Verão de 1949 (com 15 anos), BB assinava apenas como Armando Bastos. E o Zé de Lemos, com o inconfundível braço ao peito mesmo enquanto andava (tique profissional de quem passava horas no estirador) voltou a desenhar.
Diário Popular, a partir de microfilme da Biblioteca Nacional


quinta-feira, junho 20, 2019

As lições a reter da Vénus de Beringel

Fragmento da colecção do Museu Regional de Beja.
Imagem recolhida em "Ártemis Efésia na Lusitânia", de Graça Cravinho

Tudo começou com uma descoberta fortuita em Fevereiro de 1943. Na herdade do engenheiro Mira Galvão em Beringel, perto de Beja, encontrou-se por acidente durante trabalhos agrícolas o fragmento de uma estátua nobre. O Diário de Lisboa reportou o achado e a oferta do mesmo ao arqueólogo Abel Viana, um homem do Minho há muito radicado no Alentejo.
Sagaz, Viana intuiu que se trataria de uma representação de Vénus Afrodite e assegurou a peça para o Museu Regional de Beja. Conhecedor da natureza humana, assegurou também que o engenheiro florestal (e futuro deputado na Assembleia Nacional) receberia igualmente crédito pelo acto de filantropia.
 
Diário de Lisboa, 27 de Fevereiro de 1943
(a partir de arquivo da Fundação Mário Soares)
Os anos avançaram. No Museu Nacional de Arqueologia, Manuel Heleno, uma das figuras mais complexas da ciência portuguesa do século XX, tomou posse desta disciplina como um governador provincial romano. Em breve, criaria anticorpos de Norte a Sul, como a correspondência entre Abel Viana e O. da Veiga Ferreira (publicada por João Luís Cardoso) eloquentemente demonstra. Viana designava Heleno depreciativamente como “o Grego”, juntando normalmente outros qualificativos como "o traste" ou "o invejoso do Heleno"
Beringel voltou ao mapa da arqueologia portuguesa uma década depois. Em 1953, Abel Viana voltou a ser alertado para uma descoberta fortuita numa herdade de Beringel. Tratava-se de uma ara votiva dedicada a Apolo e, desta feita, o artefacto nem estava enterrado: «Se o invejoso do Grego adivinhasse que estava a um canto de um lagar de azeite em reconstrução, que nem porta tinha…», brincou.
Repetiu o processo. Lisonjeou o filantropo (ao tempo, vice-presidente da autarquia de Beja) e levou a ara para o Museu. Em carta para O. da Veiga Ferreira datada de 1 de Janeiro de 1954, deixou estes pensamentos menos nobres sobre os motivos para o seu contentamento: «Descobri uma coisa raríssima, uma importantíssima peça arqueológica. Mas não vai para Belém, não senhor! Se aquele idiota não procedesse da maneira infame de que tem usado para comigo, já lá teria muitíssima coisa. Assim, não chupa nada. O homenzinho vai ficar sem pinga de sangue... Mas há-de gramar o desapontamento.»
Lembrei-me desta história na semana em curso ao assistir a uma luta de demarcação sobre quem tem direito a investigar uma certa área. Ao investigador reprimido, recomendo uma resposta semelhante à que Abel Viana proferiu então: «Que diabo quer esse homem? Então ninguém em Portugal pode estudar arqueologia? Teremos todos que andar a rastejar perante o cavalheiro? Tenho a certeza de que o aleijo!»
Carta inserida em "Correspondência Anotada de Abel Viana a O. da Veiga Ferreira 1947-1964",
de João Luís Cardoso, Oeiras, 2001/2002



segunda-feira, junho 17, 2019

Antas discretas – as reais e as imaginárias

Nos anos 1940, o arqueólogo alemão Georg Leisner cirandou por aqui, guiado por uma personalidade local recomendada pelo padre Henrique Louro. Documentou, com optimismo excessivo (sabemo-lo hoje) 95 antas neste território. Nos últimos anos, a Associação de Estudos do Alto Tejo visitou 84 desses locais, mas “só” se comprovaram 16 antas. Tudo indica que as restantes foram falsos positivos. Este é um dos locais confirmados e escavados em 2012 – a Anta do Cão do Ribeiro.


quinta-feira, junho 13, 2019

O caricaturista caricaturado...

Depois de Bordalo e Leal da Câmara, escolheria Francisco Valença entre os maiores caricaturistas do país. Ao contrário dos outros, teve sempre de fazer pela vida, respeitando hierarquias e garantindo o salário do Museu Nacional de Arqueologia. Que eu saiba, nunca caricaturou o patrão (Leite de Vasconcelos) para o Sempre Fixe. E, por vezes, mesmo não querendo, lá tinha de ir em campanha de campo.

Em 1931, por uma vez, o caricaturista foi caricaturado. E gozado pela sua revista: «Anda por terras do Alentejo, desenhando antas. Segundo nos conta em carta que ontem recebemos, já tem no activo duas caneladas e alguns trambolhões. Sai de manhã com uma merenda debaixo do braço e volta à noite sem ela, o que tudo são prejuízos.
Julga o Valença que o homem pré-histórico premeditou, há cinco mil anos, aquela pouca vergonha e anda esperançado em apanhar por lá alguns deles para um ajuste de costas que o arrase por outros cinco mil anos.
Mais lhe valia ao Valença andar por cá a fazer a caricatura do Júlio Dantas, como dantes, do que andar nas antas com que nada adianta. Por tudo isto se acham os nossos leitores privados das suas belas páginas, mas, para a semana, já cá o temos como dantes e sem antas. Pois 'Antão'?»


quarta-feira, junho 05, 2019

A Biblioteca Museu República e Resistência



O senhor presidente da Câmara disse que ia fechar, a senhora vereadora assegura que não é para sempre. 
O senhor presidente da Câmara anunciou que as colecções da Biblioteca Museu República e Resistência vão para o Aljube, a senhora vereadora acha que faz algum sentido. 
O Aljube garante que não tem espaço (e se calhar interesse) no acervo de documentos e publicações sobre a geração que construiu a República. 
Mais acutilante (excessos da idade), a senhora presidente da Junta assegura que a Biblioteca já estava morta antes de fechar no próximo dia 15. «É um espaço morto», disse, com a repulsa que os cadáveres costumam provocar.
Tenho para oferecer o mero testemunho de leitor e frequentador assíduo do espaço. A Biblioteca não estava morta. Era mesmo o único espaço da rede de bibliotecas municipais onde os funcionários conheciam o espólio como a palma das mãos. Conheciam os leitores e sabiam o que estes estudam.
Há algumas semanas, um deles viu-me chegar e cochichou: «Tenho aqui uma coisa que lhe vai interessar. Sei que gosta de coisas esquisitas...» Contou-me que, na véspera, um respeitável ancião fora depositar na biblioteca o espólio do pai, militante ferrenho de um dos partidos fundadores da democracia. No espólio, reconheci uma edição do Jornal do Caso República em estado impecável – trata-se da publicação que Vítor Direito e Pedro Foyos, com sacrifícios e risco pessoal, puseram de pé clandestinamente quando as tipografias se recusavam a imprimir o seu República. É uma peça de museu se soubermos o que significa.
Era assim o «espaço morto» da Biblioteca do bairro do Rego. Habitado por pessoas vivas. Costumo brincar: o Google dá-me 10 mil respostas às perguntas que faço. Um bibliotecário que conheça o seu ramo dá-me a resposta certa.
A senhora vereadora assegurou ao Diário de Notícias que, durante o ano em que o espaço estiver encerrado, as equipas camarárias aproveitarão para catalogar o espólio documental, uma vez que muitos documentos permanecem em caixas. Contenho o riso, talvez por saber que as dezenas de cassetes gravadas nos colóquios e entrevistas de César de Oliveira e Pacheco Pereira com velhos anarquistas, carbonários e republicanos nos anos 1970 e 1980 desapareceram misteriosamente (dentro das suas caixas) quando a autarquia decidiu fechar a Biblioteca do Bairro Grandella.
A Biblioteca Museu República e Resistência extinguiu-se. Apagou-se um farol de cultura e esclarecimento. Tenham, ao menos, a decência de lhe fazer um funeral digno.