segunda-feira, outubro 26, 2015

Recensão com 17 anos de atraso



Por mera coincidência, no mesmo mês em que uma colega de faculdade discutiu comigo entusiasmadamente o desafio que seria reconstituir a história de O Independente e do seu impacte na sociedade portuguesa na década de 1990, li Os Implicados, de Sarah Adamopoulos (Dom Quixote, 1998).
Obra de ficção (a segunda da autora), é um dos livros mais corajosos que já li e constitui o terceiro vértice de uma troika de biografias não autorizadas sobre velhos jornais. Não tenho, aliás, qualquer receio em colocar Os Implicados no mesmo patamar de Código de Hamurabi, de Artur Portela, e de A Homenagem, de Altino do Tojal. São livros-denúncia, obras de ficção sobre realidades escondidas nos jornais portugueses, oportunidades únicas de espreitarmos para lá da cortina de veludo de cada publicação e de conhecermos os bastidores para lá do fel.
Enquanto escrevia a dissertação de doutoramento, o meu orientador avisou-me com frequência que a tese é um pouco como um pano bordado a ponto-cruz. A face que se mostra ao exterior é limpinha, sem rasuras, como se a arte fosse escorreita e a investigação fluísse sem hesitações; a face escondida, aquela que só nós conhecemos, mostra os remates aldrabados, os nós e cortes, as imperfeições – de certa forma, é isso que Sarah Adamopoulos fez com O Independente, apresentado nesta obra como «o jornal» ou «o meu jornal». Mostra-nos o jornal para lá do pano da primeira página, com as manias, os tiques, os génios e os maus génios próprios de qualquer instituição.
Construído com cerca de três dezenas de pequenos capítulos, o livro descreve personagens e taras com alguma crueldade. Ali figuram «o careca da administração que tem a ilusão de mandar mais do que o Director», «as stars da redacção», «o empata-fodas do Chefe da Redacção» e o Director histérico, vaidoso e de face imberbe, que não hesita em mudar as reportagens dos outros para as adaptar à mensagem política que pretende e que mais tarde fugirá para ocupar um cargo partidário. «O Director é um homem dos antigos que está enganado de época. Durante o Estado Novo, o Director teria sido quiçá Ministro, Estadista, quem sabe.»
       Figura também a Repórter-Diva, «mulher fatal que escreve bem e é casada com um intelectual que está sempre em casa de roupão verde e pantufas e que bebe mais do que devia». E, claro, o «Outro Director», «um criativo», um escritor com vasta legião de seguidores, que vem uma vez por semana à redacção «cagar ideias» rodeado de starlettes e um dia abandona o jornal porque se fartou. Gosto particularmente do «Directorzinho», que o substitui, e fala ao telefone de pé com as altas patentes da Defesa, «como se estivesse em continência». Deixo ao critério de cada um a identificação das personagens.
Este é um jornal no qual os «apelidos compostos são muito importantes (…) Há quem inclusivamente contraia matrimónio por causa dos apelidos compostos (…) O jornal está cheio de nobres assim deste tipo (…), mas os nobres do jornal não só não têm dinheiro como estão intelectualmente empobrecidos».
Imperdível é o capítulo sobre «Jacinto», que «vai às compras para a redacção» e cuja mercadoria é ansiosamente aguardada pelos repórteres. Pouco depois, «o Outro-Director faz sessões criativas com ele-próprio», «alguém parte para a casa-de-banho num salto que finta uma pequena multidão de gente subitamente aflita para fazer chichi» e Sarah controla «divertida os movimentos do vai-vem de aflitinhos para ir à casa-de-banho».
       Não se infira, porém, que Os Implicados é uma obra de despeito de uma jornalista despedida. É o livro não oficial de «um jornal que gostava de ser azul mas está a ficar cor de laranja» e de uma jornalista que, apesar de tudo, o olha «com um mínimo de 256 cores» e que consegue ver o jornal que a «mantém apaixonada». Ou manteve.

segunda-feira, outubro 19, 2015

Parem as Máquinas!


Uma gentileza impagável do Fernando Correia e do João Paulo Cotrim, publicada na última edição da Jornalismo e Jornalistas.

quinta-feira, outubro 01, 2015

O contrato de Jesus validado na poltrona

Record, 1 de Outubro de 2015

Começo com uma história, como fazem os velhos, quando querem certificar-se de que os outros estão à escuta. No velho Estádio de Alvalade, os jornalistas em dia de jogo trabalhavam nas últimas filas da Bancada Central, alguns lugares acima da Tribuna de Honra. Era um lugar simpático, sem acesso a croquetes infelizmente, mas suficientemente perto para ouvirmos os palavrões de Sousa Cintra [«é penalte, porra!»], os roncos de Simões de Almeida [«venho ao futebol porque sou obrigado»] ou os delírios de Dias de Cunha.
Certo dia de 1995 ou 1996, após um jogo nocturno, já só lá estavam os repórteres matraqueando em computadores primitivos as parcas crónicas de jogo. Quando terminava, era meu costume esticar as pernas em passeios ao longo das filas da tribuna enquanto os meus camaradas terminavam as respectivas crónicas. Nessa noite, por atraso, não o pude fazer porque a minha crónica demorou mais.
A certo momento, chegou esbaforido um conhecido vice-presidente do clube. Ficou aterrorizado quando viu o pessoal da imprensa ainda no local e dirigiu-se à cadeira, onde, horas antes, assistira ao jogo. Ali chegado, retirou uma pasta do espaço entre a sua e a cadeira do vizinho e, visivelmente aliviado, disse-nos: «Nem acreditam! Deixei cá a pasta com os contratos dos jogadores!»
O som do nosso desapontamento colectivo deve ter servido para abalar aquela pala de cimento que Santana Lopes garantira em 1992 que estava prestes a ruir e na qual o engenheiro Edgar Cardoso pulara, para divertimento de Sousa Cintra. Estivéramos a metros de informação privilegiada e não lhe deitámos a mão. Nessa noite, por partida do destino, não tive de responder à questão que se colocou ao jornal Record durante esta semana: tendo acesso a um contrato de um dos principais funcionários de um clube, deve uma organização noticiosa publicá-lo?
O Record não parece ter tido dúvidas, a avaliar pela descrição de António Varela na edição de hoje. Na madrugada de terça-feira, foi enviado um e-mail (anónimo? Não fica esclarecido esse ponto. Só se refere que o autor do site é anónimo) para o jornal às 5h25. Anunciava a criação de um novo site de Internet, o Football Leaks, para desvendar documentos embaraçosos sobre o futebol português. Alojado na Rússia, onde os sites têm garantias de anonimato, começou por afixar o contrato que liga Jorge Jesus ao Sporting desde Junho deste ano, entre outros documentos.

JUSTIFICAÇÃO
Fortemente abusada, a cláusula de confidencialidade que uma organização noticiosa oferece à fonte que lhe fornece informação privilegiada começou por ser um privilégio especial, destinado às ocasiões – e só a essas – em que nenhum outro mecanismo era suficiente para persuadir a fonte a falar.
Aceitemos a premissa de que esse caso se aplica nesta situação. O Record saberá quem foi o autor do e-mail para a redacção e entendeu que justificar-se-ia a oferta de confidencialidade nestas circunstâncias.
Qual a justificação jornalística para a publicação de um contrato? Ou, por outras palavras, se eu amanhã tiver acesso ao contrato que liga António Varela à Cofina, tenho, ou não, o direito de o divulgar?
Neste caso de Jorge Jesus, não se trata de uma organização pública onde se aplica mensalmente dinheiro do contribuinte e onde existiria a justificação moral e cívica de que o cidadão tem direito a conhecer o destino do dinheiro dos seus impostos. É uma organização privada (a SAD).
Não está em causa a revelação de um crime exposto pela documentação, como sucedera no caso da cassete de António Oliveira em 1996.
Por tudo o que foi apresentado, nem sequer há contradição entre declarações públicas dos dirigentes da instituição e cláusulas agora expostas no contrato.
Onde diabo cabe a justificação jornalística?
Há duas possíveis respostas. Por um lado, na data do contrato, uma vez que este foi assinado a 5 de Junho e existe uma disputa judicial com o clube anterior do treinador, que lhe recusa pagamento do mês de Junho. Mas se fosse esse o motivo (e não um pretexto), bastaria revelar em fac-simile a data do contrato e o ponto estaria feito, sem expor todas as cláusulas e até a morada do treinador.
O argumentário do jornal cozinhou outro motivo: sendo o Sporting um clube com milhares de adeptos, é natural que tudo o que diga respeito à vida interna do clube seja passível de interesse. É um argumento mais poderoso, mas, que, para mim, encontra nítidos problemas de demarcação. Se eu amanhã souber em que 5 à Sec Bruno de Carvalho deixa os fatos a limpar, justifica-se a publicação dessa informação sobre o presidente de um clube com tantos milhares de adeptos? Onde termina a fronteira da noticiabilidade quando se trata de uma organização que interessa a tantas pessoas?
Entendo esta publicação como um acto de voyeurismo, em princípio bem sucedido como estratégia comercial (embora só na versão digital porque, na versão em papel, o tema foi empurrado para a coluna lateral da primeira página), deficientemente justificado, mas que não deixa de interessar a leitores e paineleiros do desporto. O facto de ser tema de conversa incessante nas redes sociais comprova que se trata de uma revelação que interessou a milhares de pessoas.

SALVAGUARDA
Não estou convencido, porém, de que o jornal tenha feito tudo para avaliar a veracidade do documento. No texto de hoje, são omissos quaisquer outros passos que certifiquem que aquele contrato foi validado. Não são mencionados grandes esforços de contacto com fontes oficiais ou não oficiais. Varela refere que, confrontados os clubes (há outros documentos citados, mas, para focagem de discussão, fixo-me neste contrato de Jesus com o Sporting), nenhum desmentiu. Tenho muita pena, mas não chega: um desmentido não é uma confirmação.
Na última página, Pedro Guerreiro, colunista externo do jornal, comenta o documento, lembrando-o, por duas vezes, que, se for verdadeiro e completo, o contrato significa isto e aquilo. Caramba! Esse passo tem de ser dado antes da publicação ou um jornal tornou-se só um veículo de amplificação de sites manhosos alojados na Rússia?
Se amanhã se provar que o contrato foi truncado, que não é real, que os valores foram modificados com que cara fica o Record?
Nos últimos anos, tivemos dois casos semelhantes na agenda internacional: por um lado, as revelações do site Wikileaks, reproduzidas amorfamente, sem contestação nem validação por esse planeta fora; por outro, as revelações de Edward Snowden, que mereceram uma parceria internacional entre jornais para confirmação da informação privilegiada antes da sua divulgação, o que levou a um atraso significativo entre a revelação e a difusão das histórias.
Num caso, foi jornalismo Ovomaltine, deitado no copo e bebido com leite. No outro, houve verdadeiro trabalho de investigação. Parece-me evidente em que categoria recai este Football Leaks…