quinta-feira, outubro 01, 2015

O contrato de Jesus validado na poltrona

Record, 1 de Outubro de 2015

Começo com uma história, como fazem os velhos, quando querem certificar-se de que os outros estão à escuta. No velho Estádio de Alvalade, os jornalistas em dia de jogo trabalhavam nas últimas filas da Bancada Central, alguns lugares acima da Tribuna de Honra. Era um lugar simpático, sem acesso a croquetes infelizmente, mas suficientemente perto para ouvirmos os palavrões de Sousa Cintra [«é penalte, porra!»], os roncos de Simões de Almeida [«venho ao futebol porque sou obrigado»] ou os delírios de Dias de Cunha.
Certo dia de 1995 ou 1996, após um jogo nocturno, já só lá estavam os repórteres matraqueando em computadores primitivos as parcas crónicas de jogo. Quando terminava, era meu costume esticar as pernas em passeios ao longo das filas da tribuna enquanto os meus camaradas terminavam as respectivas crónicas. Nessa noite, por atraso, não o pude fazer porque a minha crónica demorou mais.
A certo momento, chegou esbaforido um conhecido vice-presidente do clube. Ficou aterrorizado quando viu o pessoal da imprensa ainda no local e dirigiu-se à cadeira, onde, horas antes, assistira ao jogo. Ali chegado, retirou uma pasta do espaço entre a sua e a cadeira do vizinho e, visivelmente aliviado, disse-nos: «Nem acreditam! Deixei cá a pasta com os contratos dos jogadores!»
O som do nosso desapontamento colectivo deve ter servido para abalar aquela pala de cimento que Santana Lopes garantira em 1992 que estava prestes a ruir e na qual o engenheiro Edgar Cardoso pulara, para divertimento de Sousa Cintra. Estivéramos a metros de informação privilegiada e não lhe deitámos a mão. Nessa noite, por partida do destino, não tive de responder à questão que se colocou ao jornal Record durante esta semana: tendo acesso a um contrato de um dos principais funcionários de um clube, deve uma organização noticiosa publicá-lo?
O Record não parece ter tido dúvidas, a avaliar pela descrição de António Varela na edição de hoje. Na madrugada de terça-feira, foi enviado um e-mail (anónimo? Não fica esclarecido esse ponto. Só se refere que o autor do site é anónimo) para o jornal às 5h25. Anunciava a criação de um novo site de Internet, o Football Leaks, para desvendar documentos embaraçosos sobre o futebol português. Alojado na Rússia, onde os sites têm garantias de anonimato, começou por afixar o contrato que liga Jorge Jesus ao Sporting desde Junho deste ano, entre outros documentos.

JUSTIFICAÇÃO
Fortemente abusada, a cláusula de confidencialidade que uma organização noticiosa oferece à fonte que lhe fornece informação privilegiada começou por ser um privilégio especial, destinado às ocasiões – e só a essas – em que nenhum outro mecanismo era suficiente para persuadir a fonte a falar.
Aceitemos a premissa de que esse caso se aplica nesta situação. O Record saberá quem foi o autor do e-mail para a redacção e entendeu que justificar-se-ia a oferta de confidencialidade nestas circunstâncias.
Qual a justificação jornalística para a publicação de um contrato? Ou, por outras palavras, se eu amanhã tiver acesso ao contrato que liga António Varela à Cofina, tenho, ou não, o direito de o divulgar?
Neste caso de Jorge Jesus, não se trata de uma organização pública onde se aplica mensalmente dinheiro do contribuinte e onde existiria a justificação moral e cívica de que o cidadão tem direito a conhecer o destino do dinheiro dos seus impostos. É uma organização privada (a SAD).
Não está em causa a revelação de um crime exposto pela documentação, como sucedera no caso da cassete de António Oliveira em 1996.
Por tudo o que foi apresentado, nem sequer há contradição entre declarações públicas dos dirigentes da instituição e cláusulas agora expostas no contrato.
Onde diabo cabe a justificação jornalística?
Há duas possíveis respostas. Por um lado, na data do contrato, uma vez que este foi assinado a 5 de Junho e existe uma disputa judicial com o clube anterior do treinador, que lhe recusa pagamento do mês de Junho. Mas se fosse esse o motivo (e não um pretexto), bastaria revelar em fac-simile a data do contrato e o ponto estaria feito, sem expor todas as cláusulas e até a morada do treinador.
O argumentário do jornal cozinhou outro motivo: sendo o Sporting um clube com milhares de adeptos, é natural que tudo o que diga respeito à vida interna do clube seja passível de interesse. É um argumento mais poderoso, mas, que, para mim, encontra nítidos problemas de demarcação. Se eu amanhã souber em que 5 à Sec Bruno de Carvalho deixa os fatos a limpar, justifica-se a publicação dessa informação sobre o presidente de um clube com tantos milhares de adeptos? Onde termina a fronteira da noticiabilidade quando se trata de uma organização que interessa a tantas pessoas?
Entendo esta publicação como um acto de voyeurismo, em princípio bem sucedido como estratégia comercial (embora só na versão digital porque, na versão em papel, o tema foi empurrado para a coluna lateral da primeira página), deficientemente justificado, mas que não deixa de interessar a leitores e paineleiros do desporto. O facto de ser tema de conversa incessante nas redes sociais comprova que se trata de uma revelação que interessou a milhares de pessoas.

SALVAGUARDA
Não estou convencido, porém, de que o jornal tenha feito tudo para avaliar a veracidade do documento. No texto de hoje, são omissos quaisquer outros passos que certifiquem que aquele contrato foi validado. Não são mencionados grandes esforços de contacto com fontes oficiais ou não oficiais. Varela refere que, confrontados os clubes (há outros documentos citados, mas, para focagem de discussão, fixo-me neste contrato de Jesus com o Sporting), nenhum desmentiu. Tenho muita pena, mas não chega: um desmentido não é uma confirmação.
Na última página, Pedro Guerreiro, colunista externo do jornal, comenta o documento, lembrando-o, por duas vezes, que, se for verdadeiro e completo, o contrato significa isto e aquilo. Caramba! Esse passo tem de ser dado antes da publicação ou um jornal tornou-se só um veículo de amplificação de sites manhosos alojados na Rússia?
Se amanhã se provar que o contrato foi truncado, que não é real, que os valores foram modificados com que cara fica o Record?
Nos últimos anos, tivemos dois casos semelhantes na agenda internacional: por um lado, as revelações do site Wikileaks, reproduzidas amorfamente, sem contestação nem validação por esse planeta fora; por outro, as revelações de Edward Snowden, que mereceram uma parceria internacional entre jornais para confirmação da informação privilegiada antes da sua divulgação, o que levou a um atraso significativo entre a revelação e a difusão das histórias.
Num caso, foi jornalismo Ovomaltine, deitado no copo e bebido com leite. No outro, houve verdadeiro trabalho de investigação. Parece-me evidente em que categoria recai este Football Leaks… 

1 comentário:

Anónimo disse...

Gonçalamigo

Mais um belo texto, mais um ensinamento, caro Mestre. O futebol é um mundo sinistro, onde vale tudo e os jogadores são os menos maus nestes crimes!

Mas hoje venho dizer que JÁ TERMINOU O DIA DE REFLEXÃO ((01:29) PORTANTO JÁ POSSO DIZER QUE VOU VOTAR COSTA!!!!!

Abç do Leãozão