Leitão de Barros em fotografia do "Diário Popular", 24/01/1956 (Arquivo da Hemeroteca Digital) |
Não era exactamente verdadeiro o pensamento do cineasta, mas, valha a verdade, a realidade factual nunca detivera Leitão de Barros. Em Outubro de 1937, Joaquim Manso, director do "Diário de Lisboa", viajara acidentalmente na mesma carruagem de comboio de Dona Amélia de Orleães, numa viagem entre Munique e Lindau. A curiosidade levou depois o jornalista a pedir acesso à residência privada da rainha, onde conversou durante uma hora com a monarca, tendo o cuidado de se apresentar como "republicano e jornalista", mas sem interesse em "interrogar, alarmar, sondar o seu dilecto silêncio", apenas trocar impressões sobre o bastião português nos arredores de Paris. Essa, sim, fora a primeira entrevista da rainha a um jornal português, poucos meses depois da morte de Afonso Costa, radicado igualmente em Paris e poucos dias depois de mais um aniversário da República – o 27.º.
"Diário de Lisboa", 26 de Outubro de 1937 (Arquivo da Fundação Mário Soares) |
Estávamos em
Novembro de 1938 e a segunda guerra mundial estava à porta. Quase três décadas
depois da implantação da república, o Estado Novo dava por fim alguns sinais de
aproximação à rainha-mãe, então com 73 anos e com uma vida tão preenchida de
acidentes e traumas que seriam suficientes para duas ou três biografias. Em
1937, na Exposição Mundial de Paris, o governo português convidara-a
explicitamente a visitar o Pavilhão de Portugal, convite a que a rainha acedeu.
Mas não emitiu comentários sobre a situação portuguesa até conceder uma primeira entrevista à imprensa portuguesa, a Joaquim Manso, em Outubro de 1937. Seguia-se agora “O Seculo” através de Leitão de Barros. E um ano mais tarde, em 1939, seria Armando Boaventura a conduzir mais uma conversa com a monarca em Versalhes para o "Diário de Notícias".
Homem
extravagante, com um acentuado gosto cénico, Leitão de Barros deixou-se esmagar
pelo cenário do castelo, pelo hall esplendoroso,
pelos quadros salvos pela condessa de Sabugosa, pelas fotografias da realeza
europeia, uns conhecidos, outros “vagos soberanos de países distantes que não
conheço”, pelo criado que lhe abriu a porta e pelo mordomo que o guiou. Desde o
início da conversa, que começou pelas cinco horas da tarde e prolongou-se até
às oito da noite, Dona Amélia controlou o rumo do diálogo. O próprio
jornalista, numa admissão honesta, confessou não saber “como começou a
conversa. Eu não disse nada”. A viúva de Dom Carlos tinha um papel e
desempenhou-o perfeitamente, deslumbrando o repórter com algumas confissões e,
à boa maneira saloia que quase sempre nos caracterizou ao longo do século XX,
com o desvelo produzido no interlocutor pela facilidade com que se exprimia em
português e pronunciava “Salazar” como se estivesse no Chiado e pelo apreço com
que falava do nosso solarengo país.
O LEGADO
Como em qualquer
entrevista moderna, as intenções da soberana excediam a publicação de um
relato frívolo, mero testemunho da vida que ainda lhe corria nas veias. Dona
Amélia tinha uma agenda em mente e assumiu contas a ajustar, inclusivamente com
o próprio jornal no qual Leitão de Barros colaborava. Leitão de Barros
distinguiu “O Seculo” antigo (presumivelmente republicano e fortemente crítico
da família real ou, por outras palavras, o jornal de Magalhães Lima e Silva
Graça) de “O Seculo” actual. Dona Amélia concordou e sublinhou o seu apreço por
João Pereira da Rosa, então director e proprietário.
Avançou depois
para o seu legado. A propósito da remoção da Fábrica do Gás (o popular
gasómetro) que fora instalada em 1886 junto da Torre de Belém, criticou
veementemente os ministros da monarquia que, apesar dos seus esforços e das
“horas e horas [que passara] apaixonada por essa maravilha da arte tão nossa”,
tinham aprovado a instalação do monstro, que perturbava o conjunto cénico dos
Descobrimentos. “Zanguei-me, esgotei influências, macei toda a gente, e nada!”,
disse a Rainha. “Vejo agora que esse extraordinário ministro Duarte Pacheco a
vai desafrontar!”
A mesma
estratégia foi usada pela rainha para comentar um dos seus sucessos – a criação
em 1892 do Real Instituto Bacteriológico de Lisboa, que se tornaria depois o
Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, com responsabilidades no combate e
investigação de doenças infecto-contagiosas. Dona Amélia reivindicou para si a
condução política do processo, uma vez mais contra a inércia dos políticos da
monarquia. “Era uma vergonha, todo o mundo tinha já institutos com as ideias
novas e nós estávamos parados”. A rainha conta o lobby que conduziu junto de um influente ministro
(presume-se pela informação que seria José Dias Ferreira), encurralando-o numa
carruagem de comboio, até este prometer que agiria. E, mesmo ao aceitar, este
teria confessado aos seus pares, de acordo com a versão régia: “A Senhora Dona
Amélia não pede dinheiro para toilettes, nem para viagens, nem para festas. Tem lá aquela mania do tal
instituto. (…) Ao menos, enquanto faz isso, está entretida!”
O gasómetro de Lisboa em 1889, revista Occidente, n.º 375
(a partir do arquivo da Hemeroteca Digital)
|
O gasómetro agitava a política da cidade em 1931. Caricatura de Francisco Valença. Sempre Fixe, 1931 (a partir de arquivo da Hemeroteca de Lisboa) |
Reportagem sobre os inconvenientes do gasómetro com fotografias de Joshua Benoliel "Ilustração Portuguesa", 1912, n.º 316 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
A conversa
seguiu o mesmo rumo, com a rainha a reivindicar para si a inspiração para as
viagens reais à província (as expedições, como então se chamavam) e a intenção
de imitar a viagem real inglesa à Índia com uma visita protocolar à África
portuguesa. “O Paço murmurou: eram hábitos novos. E, nos jornais, tudo servia
para nos ridicularizar”, contou.
O ajuste de
contas não foi propriamente direccionado para jornalistas ou para políticos
republicanos. Alguns teriam talento, admitiu Dona Amélia. “Olhe o Rafael
Bordalo Pinheiro. A esse reconhecia-lhe talento – muito talento mesmo. E esse,
quando nos atacava, fazia-o com arte. E nós não nos ofendíamos. El-Rei, artista
como era, sorria. Outros... Enfim! Esquecer!” A rainha apontava o dedo à
fraqueza da monarquia constitucional e dos seus líderes para amparar a Casa de
Bragança.
Um último legado
foi corrigido nesta entrevista, e Dona Amélia parece ter feito questão de o
sublinhar com veemência – a partida para o exílio. Aos 73 anos, a rainha
mantinha a combatividade de sempre e lembrou que, durante o seu reinado, só por
uma vez obrigara alguém a desmentir um boato cruel. Qual? Os Braganças não
tinham fugido para Gibraltar. Segundo a rainha, ao entrar nas embarcações da
Ericeira a 5 de Outubro de 1910, a família real cuidara que se deslocava para o
Porto. “E muito menos o iate tomou o rumo do sul por haver a bordo duas rainhas
a chorar. Não! Honra à memória da rainha Maria Pia e justiça – só justiça – a
mim. Não chorámos, não pedimos, não tivemos medo!”
"O Seculo", 08/12/1938 (a partir de microfilme do arquivo da Biblioteca Nacional) |
O PRESENTE
Para lá dos
remoques à história antiga, Dona Amélia usou a entrevista de Leitão de Barros
para enviar nova mensagem a Lisboa, aproximando-se do regime português e das suas figuras na expectativa de um epílogo como o que veio a ocorrer em 1945, com o convite para a sua visita ao solo nacional. Para tal, Dona
Amélia sabia exactamente o que dizer. Na verdade, já o ensaiara um ano antes, na conversa com Joaquim Manso, durante a qual fez questão de cumprimentar o presidente Carmona, "a quem devo atenções que muito me penhoram", e o "sr. dr. Salazar, que tanto admiro. Como os acontecimentos teriam seguido um rumo diferente se a monarquia, arrastada nas desesperadas lutas dos partidos, houvesse tido um estadista da sua têmpera a guardá-la, a fortalecê-la, a livrá-la de perigos".
Neste novo ensaio com Leitão de Barros, Dona Amélia elogiou o
ministro Duarte Pacheco e a “figura nobre do cardeal patriarca”, mas foi
sobretudo para Oliveira Salazar que deixou os seus elogios mais prolongados.
Lembrando a Leitão de Barros o seu tio Marques Leitão, que fora professor dos
príncipes, Dona Amélia disse: “Tenho prazer em ver a continuação destas
famílias, cujos chefes conheci de perto... no outro Portugal. Quis Deus
guardar-me para assistir agora a este ressurgimento. É um sonho! Vocês são bem
mais felizes do que nós fomos! Ah! Com este Salazar, com este Salazar, onde
teria chegado El-Rei Dom Carlos I! Que Deus o proteja”
Era a frase que
ainda ressoava nos ouvidos de Leitão de Barros, noite dentro, ao abandonar o
castelo de Bellevue. Nos dias seguintes, terminou o estágio em Paris e
regressou a Lisboa. No dia 8 de Dezembro, uma quinta-feira, “O Século” publicou
a sua extensa prosa em três páginas, um privilégio que costumava ser guardado
apenas para discursos do chefe de Estado. Ainda não satisfeito, repetiu
exactamente o mesmo texto dois dias depois, na edição de “O Século Ilustrado”, com
16 páginas de fotografias. Em destaque, claro, a portugalidade da monarca e o
tributo a Salazar, com um evidente cuidado para não abordar a pretensão
monárquica ao controlo do regime.
O espalhafato de Leitão de Barros em caricatura de Francisco Valença, Sempre Fixe, 1931 (A partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
Menos de um ano
depois, deflagrou nova guerra na Europa, interrompendo temporariamente a
aproximação de Dona Amélia ao Estado Novo. Mesmo assim, sabe-se que o regime
português intercedeu pela rainha quando o seu castelo foi ocupado por um
dignitário alemão. A embaixada portuguesa em Paris reclamou soberania sobre
aquele espaço, permitindo à rainha reocupá-lo sem intromissões. Logo após a
guerra, Dona Amélia veio a Portugal, mas não concedeu entrevistas em solo
português. O repórter Marques Gastão chegou a disfarçar-se de moço de hotel
para conseguir acesso ao mesmo estabelecimento hoteleiro onde Dona Amélia
pernoitou (em história que espero contar aqui), mas debalde.
Leitão de
Barros voltaria a dispor de um “exclusivo” com a rainha. No dia 1 de Setembro
de 1951, já livre dos jornais e profundamente vinculado ao mundo da imagem e do
cinema, o cineasta registou em filme algumas imagens do
quotidiano da rainha em Bellevue. Cerca de um mês depois, Dona Amélia morreu.
Tinha 86 anos.
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