sábado, junho 08, 2013

A entrevista diplomática, e pouco jornalística, de Leitão de Barros com Dona Amélia


Leitão de Barros em fotografia do "Diário Popular", 24/01/1956
(Arquivo da Hemeroteca Digital)
Enquanto subia a ladeira do Castelo de Bellevue, nos arredores de Paris, Leitão de Barros, jornalista, cineasta, agora director-artístico do semanário “O Século Ilustrado”, repetia para si as mesmas palavras. Sua Majestade, a Rainha Dona Amélia, não recebe jornalistas. Não os recebe desde que aqui se exilou, logo após o casamento do filho em 1913, e não os recebia antes, quando viveu nos arredores de Londres, para onde a família real rumou após os traumáticos acontecimentos de 1910. E, no entanto, ali estava ele.
Não era exactamente verdadeiro o pensamento do cineasta, mas, valha a verdade, a realidade factual nunca detivera Leitão de Barros. Em Outubro de 1937, Joaquim Manso, director do "Diário de Lisboa", viajara acidentalmente na mesma carruagem de comboio de Dona Amélia de Orleães, numa viagem entre Munique e Lindau. A curiosidade levou depois o jornalista a pedir acesso à residência privada da rainha, onde conversou durante uma hora com a monarca, tendo o cuidado de se apresentar como "republicano e jornalista", mas sem interesse em "interrogar, alarmar, sondar o seu dilecto silêncio", apenas trocar impressões sobre o bastião português nos arredores de Paris. Essa, sim, fora a primeira entrevista da rainha a um jornal português, poucos meses depois da morte de Afonso Costa, radicado igualmente em Paris e poucos dias depois de mais um aniversário da República – o 27.º.

"Diário de Lisboa", 26 de Outubro de 1937
(Arquivo da Fundação Mário Soares)
Sem se prender com esses detalhes, Leitão de Barros continuava a reflectir. “Mais importante do que ser jornalista é, portanto, preciso ter amizades ou simpatias seguras para chegar até lá”, notou o repórter. No caso dele, que estava em Paris em estágio pago pelo Instituto de Alta Cultura para aprender com os nomes mais famosos do cinema francês, valera-lhe a intervenção de uma “grande e nobre amiga de todos os portugueses, que reside em Paris” e que pediu a Dona Amélia para o receber, vencendo assim “barreiras [onde], às vezes, esbarram as chancelarias”. Quem seria? Leitão de Barros nunca o disse e teve até a ousadia de escrever que encarara “esta visita como um fait divers para as horas vagas da missão profissional” que o levara a França. Curiosamente, também Joaquim Manso beneficiara da "intervenção de alguém a quem a minha amizade vota culto da maior sinceridade e admiração", pois a interlocutora "amaciou a meu favor rígidas prevenções e cautelas".
Estávamos em Novembro de 1938 e a segunda guerra mundial estava à porta. Quase três décadas depois da implantação da república, o Estado Novo dava por fim alguns sinais de aproximação à rainha-mãe, então com 73 anos e com uma vida tão preenchida de acidentes e traumas que seriam suficientes para duas ou três biografias. Em 1937, na Exposição Mundial de Paris, o governo português convidara-a explicitamente a visitar o Pavilhão de Portugal, convite a que a rainha acedeu. Mas não emitiu comentários sobre a situação portuguesa até conceder uma primeira entrevista à imprensa portuguesa, a Joaquim Manso, em Outubro de 1937. Seguia-se agora “O Seculo” através de Leitão de Barros. E um ano mais tarde, em 1939, seria Armando Boaventura a conduzir mais uma conversa com a monarca em Versalhes para o "Diário de Notícias".
Homem extravagante, com um acentuado gosto cénico, Leitão de Barros deixou-se esmagar pelo cenário do castelo, pelo hall esplendoroso, pelos quadros salvos pela condessa de Sabugosa, pelas fotografias da realeza europeia, uns conhecidos, outros “vagos soberanos de países distantes que não conheço”, pelo criado que lhe abriu a porta e pelo mordomo que o guiou. Desde o início da conversa, que começou pelas cinco horas da tarde e prolongou-se até às oito da noite, Dona Amélia controlou o rumo do diálogo. O próprio jornalista, numa admissão honesta, confessou não saber “como começou a conversa. Eu não disse nada”. A viúva de Dom Carlos tinha um papel e desempenhou-o perfeitamente, deslumbrando o repórter com algumas confissões e, à boa maneira saloia que quase sempre nos caracterizou ao longo do século XX, com o desvelo produzido no interlocutor pela facilidade com que se exprimia em português e pronunciava “Salazar” como se estivesse no Chiado e pelo apreço com que falava do nosso solarengo país.

"O Século Ilustrado", 10/12/1938
(arquivo da Biblioteca Nacional)

O LEGADO
Como em qualquer entrevista moderna, as intenções da soberana excediam a publicação de um relato frívolo, mero testemunho da vida que ainda lhe corria nas veias. Dona Amélia tinha uma agenda em mente e assumiu contas a ajustar, inclusivamente com o próprio jornal no qual Leitão de Barros colaborava. Leitão de Barros distinguiu “O Seculo” antigo (presumivelmente republicano e fortemente crítico da família real ou, por outras palavras, o jornal de Magalhães Lima e Silva Graça) de “O Seculo” actual. Dona Amélia concordou e sublinhou o seu apreço por João Pereira da Rosa, então director e proprietário.
Avançou depois para o seu legado. A propósito da remoção da Fábrica do Gás (o popular gasómetro) que fora instalada em 1886 junto da Torre de Belém, criticou veementemente os ministros da monarquia que, apesar dos seus esforços e das “horas e horas [que passara] apaixonada por essa maravilha da arte tão nossa”, tinham aprovado a instalação do monstro, que perturbava o conjunto cénico dos Descobrimentos. “Zanguei-me, esgotei influências, macei toda a gente, e nada!”, disse a Rainha. “Vejo agora que esse extraordinário ministro Duarte Pacheco a vai desafrontar!”
O gasómetro de Lisboa em 1889, revista Occidente, n.º 375
(a partir do arquivo da Hemeroteca Digital)

O gasómetro agitava a política da cidade em 1931. Caricatura de Francisco Valença. Sempre Fixe, 1931
(a partir de arquivo da Hemeroteca de Lisboa)
Reportagem sobre os inconvenientes do gasómetro com fotografias de Joshua Benoliel
"Ilustração Portuguesa", 1912, n.º 316
(reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital)


A mesma estratégia foi usada pela rainha para comentar um dos seus sucessos – a criação em 1892 do Real Instituto Bacteriológico de Lisboa, que se tornaria depois o Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, com responsabilidades no combate e investigação de doenças infecto-contagiosas. Dona Amélia reivindicou para si a condução política do processo, uma vez mais contra a inércia dos políticos da monarquia. “Era uma vergonha, todo o mundo tinha já institutos com as ideias novas e nós estávamos parados”. A rainha conta o lobby que conduziu junto de um influente ministro (presume-se pela informação que seria José Dias Ferreira), encurralando-o numa carruagem de comboio, até este prometer que agiria. E, mesmo ao aceitar, este teria confessado aos seus pares, de acordo com a versão régia: “A Senhora Dona Amélia não pede dinheiro para toilettes, nem para viagens, nem para festas. Tem lá aquela mania do tal instituto. (…) Ao menos, enquanto faz isso, está entretida!”
A conversa seguiu o mesmo rumo, com a rainha a reivindicar para si a inspiração para as viagens reais à província (as expedições, como então se chamavam) e a intenção de imitar a viagem real inglesa à Índia com uma visita protocolar à África portuguesa. “O Paço murmurou: eram hábitos novos. E, nos jornais, tudo servia para nos ridicularizar”, contou.
O ajuste de contas não foi propriamente direccionado para jornalistas ou para políticos republicanos. Alguns teriam talento, admitiu Dona Amélia. “Olhe o Rafael Bordalo Pinheiro. A esse reconhecia-lhe talento – muito talento mesmo. E esse, quando nos atacava, fazia-o com arte. E nós não nos ofendíamos. El-Rei, artista como era, sorria. Outros... Enfim! Esquecer!” A rainha apontava o dedo à fraqueza da monarquia constitucional e dos seus líderes para amparar a Casa de Bragança.
Um último legado foi corrigido nesta entrevista, e Dona Amélia parece ter feito questão de o sublinhar com veemência – a partida para o exílio. Aos 73 anos, a rainha mantinha a combatividade de sempre e lembrou que, durante o seu reinado, só por uma vez obrigara alguém a desmentir um boato cruel. Qual? Os Braganças não tinham fugido para Gibraltar. Segundo a rainha, ao entrar nas embarcações da Ericeira a 5 de Outubro de 1910, a família real cuidara que se deslocava para o Porto. “E muito menos o iate tomou o rumo do sul por haver a bordo duas rainhas a chorar. Não! Honra à memória da rainha Maria Pia e justiça – só justiça – a mim. Não chorámos, não pedimos, não tivemos medo!”



"O Seculo", 08/12/1938
(a partir de microfilme do arquivo da Biblioteca Nacional)

O PRESENTE
Para lá dos remoques à história antiga, Dona Amélia usou a entrevista de Leitão de Barros para enviar nova mensagem a Lisboa, aproximando-se do regime português e das suas figuras na expectativa de um epílogo como o que veio a ocorrer em 1945, com o convite para a sua visita ao solo nacional. Para tal, Dona Amélia sabia exactamente o que dizer. Na verdade, já o ensaiara um ano antes, na conversa com Joaquim Manso, durante a qual fez questão de cumprimentar o presidente Carmona, "a quem devo atenções que muito me penhoram", e o "sr. dr. Salazar, que tanto admiro. Como os acontecimentos teriam seguido um rumo diferente se a monarquia, arrastada nas desesperadas lutas dos partidos, houvesse tido um estadista da sua têmpera a guardá-la, a fortalecê-la, a livrá-la de perigos". 
Neste novo ensaio com Leitão de Barros, Dona Amélia elogiou o ministro Duarte Pacheco e a “figura nobre do cardeal patriarca”, mas foi sobretudo para Oliveira Salazar que deixou os seus elogios mais prolongados. Lembrando a Leitão de Barros o seu tio Marques Leitão, que fora professor dos príncipes, Dona Amélia disse: “Tenho prazer em ver a continuação destas famílias, cujos chefes conheci de perto... no outro Portugal. Quis Deus guardar-me para assistir agora a este ressurgimento. É um sonho! Vocês são bem mais felizes do que nós fomos! Ah! Com este Salazar, com este Salazar, onde teria chegado El-Rei Dom Carlos I! Que Deus o proteja”
O espalhafato de Leitão de Barros em caricatura de Francisco Valença, Sempre Fixe, 1931
(A partir de arquivo da Hemeroteca Digital)
Era a frase que ainda ressoava nos ouvidos de Leitão de Barros, noite dentro, ao abandonar o castelo de Bellevue. Nos dias seguintes, terminou o estágio em Paris e regressou a Lisboa. No dia 8 de Dezembro, uma quinta-feira, “O Século” publicou a sua extensa prosa em três páginas, um privilégio que costumava ser guardado apenas para discursos do chefe de Estado. Ainda não satisfeito, repetiu exactamente o mesmo texto dois dias depois, na edição de “O Século Ilustrado”, com 16 páginas de fotografias. Em destaque, claro, a portugalidade da monarca e o tributo a Salazar, com um evidente cuidado para não abordar a pretensão monárquica ao controlo do regime.
Menos de um ano depois, deflagrou nova guerra na Europa, interrompendo temporariamente a aproximação de Dona Amélia ao Estado Novo. Mesmo assim, sabe-se que o regime português intercedeu pela rainha quando o seu castelo foi ocupado por um dignitário alemão. A embaixada portuguesa em Paris reclamou soberania sobre aquele espaço, permitindo à rainha reocupá-lo sem intromissões. Logo após a guerra, Dona Amélia veio a Portugal, mas não concedeu entrevistas em solo português. O repórter Marques Gastão chegou a disfarçar-se de moço de hotel para conseguir acesso ao mesmo estabelecimento hoteleiro onde Dona Amélia pernoitou (em história que espero contar aqui), mas debalde.
Leitão de Barros voltaria a dispor de um “exclusivo” com a rainha. No dia 1 de Setembro de 1951, já livre dos jornais e profundamente vinculado ao mundo da imagem e do cinema, o cineasta registou em filme algumas imagens do quotidiano da rainha em Bellevue. Cerca de um mês depois, Dona Amélia morreu. Tinha 86 anos.

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