sábado, abril 18, 2015

O repórter que desvendou acidentalmente o homicídio de Monsanto


Há um velho adágio no jornalismo americano: «If it bleeds, it leads!» [«Se há sangue, vai para a abertura!», em tradução livre]. É antiga a tentação jornalística de desvendar crimes antes (ou apesar) da polícia. Há algumas semanas, li uma descrição sumária do caso saboroso que vou contar. Não incluía datas, nem pistas concretas, o que constituiu um martírio para descobrir a respectiva data, mas creio que valeu a pena. Antigo e esquecido, este caso de 1893 do célebre Esculápio contraria a moralidade dominante sobre a alegada obsessão moderna com o noticiário criminal. Desde que há jornais, há crimes escabrosos nas notícias. Como este.

Esculápio em caricatura de Arnaldo Ressano Garcia, Álbum (1933)
(Estampa da colecção da Biblioteca Nacional)
A notícia chega a Lisboa pela noite dentro e circula como um vírus. Três caçadores (João Ventura e os irmãos Alfredo e Manuel da Silva) descobriram um crime terrível na serra de Monsanto na tarde de quarta-feira, 1 de Fevereiro de 1893. «Naquela tenebrosa região dos covões da Pimenteira, verdadeiro covil de malandrins da pior espécie, onde a polícia poucas vezes vai mas donde sempre faz farta colheita quando se resolve a visitá-lo», escreverá mais tarde Esculápio, os três homens à cata de coelhos foram alertados pelos latidos invulgares dos cães. Vão armados apenas com paus, pelo que se aproximam a medo da abertura de uma gruta natural (uma furna) na serra. Os cães enlouquecem no interior, e um dos irmãos decide rastejar pela abertura e entrar na galeria, iluminada por uma clarabóia natural. A visão horrenda deixa-o sem palavras. É o corpo de uma mulher, «regularmente formosa, clara», ensanguentada e inerte. As paredes estão salpicadas de sangue.
A Quinta da Pimenteira antes da florestação de Monsanto, na década de 1930
(Arquivo de O Século, Arquivo Nacional da Torre do Tombo) 
A notícia circula e chega ao coração de Lisboa, exagerada e distorcida pela voz popular, mas suficiente para o repórter Esculápio, noctívago inveterado, decidir partir para Monsanto. Aproveita a companhia dos guardas da esquadra dos Terramotos, no Casal Ventoso, e viaja à luz de lanternas. Na escuridão, pouco consegue ver, mas bebe o testemunho dos caçadores e reproduz a notícia no número do dia seguinte de A Vanguarda, o jornal republicano para o qual trabalha há dois anos. Desconhece-se a identidade da mulher «de cabelos pretos empastados de sangue e desgrenhados, estatura mais do que mediana», assassinada há dois ou três dias, segundo «opiniou o Sr. Dr. Schindler», que observou o corpo, mas não lhe pôde mexer por exigências protocolares. A frescura do local atrasara a decomposição.
Esculápio é um estrela em ascensão. Começara na Pátria em 1891 e ali ganhara o respeito dos republicanos pela sua insolência poética, expressa nas gazetilhas que o jornal publica e que os ardinas repetem. Com o fecho do jornal, em Janeiro de 1891, ficou escassas semanas desempregado. Alves Correia, farmacêutico tornado jornalista, dirige um novo diário, A Vanguarda, desde que o governo mandou encerrar Os Debates, na sequência de críticas violentas à gestão portuguesa do Ultimato inglês. Acolhe o jovem repórter como revisor, cargo no qual este só se mantém durante três semanas, integrando a partir de então a redacção.
Esculápio, Arquivo do autor
Divertido, encanta os colegas e faz vender jornais. Tomam-no como médico apesar do seu escasso treino em Medicina. Ficou lendária, aliás, a sua partida ao contínuo, «um pobre rapaz, vindo das berças, [que] bebia os ares por mim», conta em Memórias. «Ouvindo dizer que eu andava nos preparatórios de medicina, veio consultar-me porque padecia de uma doença secreta, fazendo com que eu, que tomei o caso por troça, lhe receitasse uma untura de água-rás e que se besuntasse muito bem.» No dia seguinte, a redacção parecia um cenário de guerra, com cadeiras tombadas, mesas reviradas e um remoinho de papéis. «O estúpido tomara a receita à letra e fartara-se de andar aos pinotes. Mas o caso é que o medicamento lhe fez tão bem que ainda há pouco, quando me encontrava, se desbarretava, tratando-me por senhor doutor
       Há um certo ar de boémia na redacção da Vanguarda. Anos mais tarde, numa edição do Mundo Gráfico de 1945, recordou-se uma velha partida pregada pela redacção ao administrador Eduardo José Gaspar, «uma bela alma, simples, ingénua (…)», que vivia o desgosto de ser de baixa estatura. Um dia, o jornalista Gonçalves Neves entra na redacção, olha-o atentamente e diz-lhe muito admirado:
       – Já reparaste numa coisa? Desconfio que estás a crescer…
       – Estou agora – respondeu tristemente Gaspar.
        Todos os dias, os membros da redacção iam-lhe à bengala e limavam meio centímetro na ponteira, «de modo que o pobre homem chegou a convencer-se que tinha crescido, visto já andar de lado para se apoiar».
       – Rapazes, vocês têm razão. Afinal, estou mais alto!
       Apesar destes divertimentos pueris, a década é difícil para o frágil jornal republicano. Esculápio cai no goto dos camaradas de redacção. O veterano Heliodoro Salgado («anticlerical, irredutível e esturrado», como o descreveu Esculápio) fora detido por quatro meses em 1891 por delito de opinião. Segue-se Alves Correia, o director, encarcerado por seis meses no Limoeiro. Travam-se duelos ferozes de palavras e sabres. No Verão de 1892, o próprio Esculápio fora querelado (o termo da época para o processo por difamação) pelo conde de Burnay, que não apreciara as estrofes da gazetilha de 19 de Julho:
«Ele que sempre foi um intrujão /
Qual outro lavrador do Poceirão /
E é capaz de ser feito deputado /
que ele é capaz de tudo, o condenado! /
Nesses tempos de bárbaras nações /
pregavam-se nas cruzes os ladrões; /
Hoje em dia, no século das Luzes, /
ao peito dos ladrões, pregam as cruzes!»

Falta a Esculápio, porém, a respeitabilidade dos repórteres. E essa resultará deste caso.

UM OVO ESTRAGADO
Regressado de Monsanto, Esculápio alicia Albino Sarmento, camarada do Diário de Notícias e funcionário da Polícia Judiciária, para nova visita no dia seguinte ao local do crime mal os primeiros raios de Sol caiam sobre a cidade. Olha de relance para o relógio e decide não dormir. Parte para o Largo de São Cristóvão, onde tem «uns amores conquistados» e passa a noite a cear e a… foliar. À saída, já na alvorada, passa por um «quintalório» com roupa estendida e um «avental de chita, que ondeando ao vento, veio derrubar-me o chapéu, motivo porque o fixei».
Corre para a redacção de A Vanguarda, no número 5 da Rua da Trindade, para recolher papel e, marchando em direcção ao Largo de Camões, ponto de encontro com Sarmento, «como quer, porém, que a ceia tivesse sido pouca e a fome me alanceasse, entrei na mercearia do Viana, à esquina da Rua do Norte, e pedi dois ovos. Era meu costume, quando a fome me atezanava (sic) e não havia tempo para demoras, engolir dois ovos crus, para o que lhes fazia com um alfinete dois buracos, chupando por um deles».
À medida que o trem que transporta os dois repórteres para as furnas vence o caminho, Esculápio dá conta de que um dos ovos há muito que não tinha contacto com a galinha poedeira. Debalde: o conteúdo do ovo podre já fermentava no estômago do repórter. Chegou a Monsanto em tal estado que a dupla de reportagem se transformou no esforço de um só homem. Enquanto Esculápio vomitava e se contorcia numa maca improvisada à entrada do Covão do Gesso, o local do crime, o camarada do Diário de Notícias recolhia depoimentos de todas as testemunhas, prometendo-lhe o tradicional caldinho, o resumo para que o colega não falhasse a notícia.
A edição de A Vanguarda de 4 de Fevereiro de 1893 que desvenda a identidade da vítima
(Arquivo da Biblioteca Nacional)
Nas ânsias da agonia, «terrivelmente indisposto, larguei a vomitar e, perdendo o equilíbrio nas penhas onde me tinham colocado, rebolei por ali abaixo e vim bater com as ventas no cadáver, sendo então que me acudiram e me levaram em braços de novo para o meu poiso». Abriu momentaneamente os olhos e, «coincidência extraordinária e misteriosa que então se deu, e que parece uma coisa inacreditável e romântica preparada ad hoc para dar um desfecho a esta pequena narrativa», vê um avental de chita exactamente igual ao que lhe atirara o chapéu ao chão na véspera, bem longe dali.
A vítima em gravura da época. Diário Ilustrado, 4 de Fevereiro de 1893
(Arquivo da Biblioteca Nacional)
DE PISTA EM PISTA
Transporte-se o leitor, se conseguir, para o final do século XIX. Os jornais ainda não publicam fotografias – só gravuras. Em França, o químico Coulier já descobriu que os vapores de iodo podem revelar impressões digitais numa folha de papel e o argentino-croata Vucetich tornou-se, em 1892, o primeiro a testar o seu uso na investigação forense. Em Portugal, claro está, ninguém tem isso em conta.
A polícia e o Governo Civil de Lisboa lançam pois o único recurso possível para identificar a vítima: trazem à furna de Monsanto centenas de pessoas. O Dr. Schindler coloca a vítima, «mais feia do que bonita», numa «imunda e arqueológica maca» e lava-lhe a cara ensanguentada. Ninguém reconhece a mulher, apesar de um sinal distintivo: a vítima era quase cega do olho esquerdo.
Levado o corpo para o cemitério dos Prazeres, repete-se a sessão macabra nos dias seguintes. Milhares de pessoas desfilam perante o corpo mutilado. Um bêbado comporta-se indevidamente e é preso pela polícia, que o salva da multidão, disposta a linchá-lo logo ali. Os jornais não poupam nos detalhes horrendos: «Ao Sr. Veiga, foi entregue um frasco contendo a vagina que os médicos extraíram para amanhã ser verificado pelo Sr. Dr. Pestana, do Hospital Real de São José, se a pobre rapariga foi violentada pelo malvado», escreve-se. As diligências básicas não parecem surtir efeito. Mesmo o monograma S.G. bordado no cós a linha vermelha revela-se inútil. Quem será a vítima?
Esculápio possui uma pista. Já restabelecido da indigestão, «depois de ter novamente vomitado os farrapos (…) e graças a uma garrafinha de água mineral», dirige-se a São Cristóvão. Volta ao pátio onde viu o avental a flutuar, faz perguntas. Descobre que há quatro dias que ninguém sabe de Maria dos Anjos, a mulher que ali vive com um soldado da guarda municipal. É uma pista sólida, mas Esculápio tem um problema: desde 21 de Dezembro do ano anterior que A Vanguarda anda de candeias às avessas com a polícia. O jornal acusou as esquadras de Lisboa de «comércio de notícias entre a polícia judiciária e certas empresas jornalísticas, que distribuem ordenados a chefes, cabos e guardas, como pagamento de notícias de casos que lhes passam pelas mãos, com manifesto prejuízo de quase todos os jornais da capital». Disse mais, aliás, o jornal de Alves Correia: «Se os ordenados da polícia judiciária são mesquinhos e exíguos, a culpa não é da imprensa (…) mas tornamos a dizer que publicaremos os nomes dos empregados da polícia nestas circunstâncias que, diga-se, são quase todos, pois que possuímos dados curiosos e interessantes sobre este escândalo inaudito.» Os repórteres de A Vanguarda não são propriamente populares desde então nos meios policiais.
«O comércio de notícias na polícia de Lisboa», A Vanguarda, 21 de Dezembro de 1892
(Arquivo da Biblioteca Nacional)
Esculápio vai, pois, por outro caminho. Aborda duas vizinhas, Bárbara e Ermelinda da Conceição, mãe e filha, com as suas suspeitas e pede-lhes que se dirijam aos Prazeres para reconhecimento de Maria dos Anjos. Serão elas assim a confirmar a suspeita.
No dia 4, Lisboa respira de alívio: foi identificada a vítima e preso o marido, Thomaz Ribeiro, de 21 anos, «de fisionomia pouco antipática», natural de São Miguel das Caldas, Guimarães. É o soldado n.º 78 da 1.ª companhia da Guarda Municipal. Cega do olho esquerdo, Maria dos Anjos Novais, 28 anos, é a sua esposa.
O assassino em gravura de época. Diário Ilustrado, 5 de Fevereiro de 1893
(Arquivo da Biblioteca Nacional)
Nos dias seguintes, precipita-se uma torrente de pormenores. As provas circunstanciais reforçam a culpa: o sabre do guarda ajusta-se às feridas. No Quartel do Carmo, no armário do guarda, há roupa ensanguentada e a história que ele fabricou e contou aos vizinhos (Maria teria morrido no fim-de-semana anterior no hospital) não se confirma. A Vanguarda procede, nos dias seguintes, a um metódico assassínio de carácter, imputando a Thomaz Ribeiro a morte da sua primeira mulher, bem como agressões várias em Guimarães. Thomaz queixa-se, dias depois, de que nenhum advogado se prontificou a defendê-lo, mas acaba por quebrar. Confessa a culpa. Assassinara a mulher por ter descoberto que «ela fora desflorada pelo cunhado antes das núpcias».
A cidade bebe todos os pormenores sórdidos do caso. Descobrem-se namoricos do guarda com outras raparigas, às quais prometeu consórcio mal se tornasse novamente solteiro. À porta do Quartel do Carmo, vendem-se folhas volantes com versos sobre o caso. Um homem é detido por encenar um teatro de marionetas que toscamente reconstitui os acontecimentos de Monsanto. No interior, vigiado por três sentinelas (mal, como se verá de seguida), Thomaz «come e dorme como um justo», mas enfurece-se quando, na presença de um juiz, lhe é dito que o crime foi premeditado: «Se pudesse, também lhes [às testemunhas que o alegam] pregava dois murros nas ventas, que lhes haviam de saltar as cabeças pelo ar!», explode.
No dia 20 de Fevereiro, o guarda suicida-se na própria cela, envenenado por ingestão de fósforo, que diluíra num púcaro «que, com uma bilha, lhe tinham consentido na prisão». Acometido de vómitos e espasmos, «de tal forma sofria que soltava verdadeiros urros (…), encolhendo o polegar entre os outros dedos e parecendo agredir um fantasma que se lhe apresentava diante dos olhos (…), com o corpo recurvado como num enroscar de serpente». Por singular coincidência, notou o repórter de serviço, ficou com o olho esquerdo «semi-aberto, como a pobre esposa que, crivada de feridas, foi encontrada no covão de Monsanto».

PRÉMIO, SANÇÃO E PROFANAÇÃO
A morte de Thomaz Ribeiro poupou ao sistema criminal múltiplas diligências  mas não impediu um último acto macabro. Enquanto Alexandre Bastos, sobrinho do cirurgião-chefe do Hospital da Marinha, fotografava diligentemente o cadáver do homicida (onde andarão essas fotografias?), o Dr. Silva Telles, eminente especialista português, solicitou ao delegado de saúde autorização para… serrar a cabeça de Thomaz Ribeiro. Leu bem: Telles era especialista em frenologia, a “ciência” que sugeria a associação entre comportamentos morais e a morfologia cerebral. Assim, com alguma pompa, «no terraço do hospital de marinha, foi colocada uma mesa, sobre a qual foi exposta uma bacia de arame com o fundo para o ar. Em cima dela, foi posta a massa encefálica». Para as fotografias, foi readaptado o «tampo do cérebro» já serrado, depois coberto «com um barrete dos que ordinariamente servem aos doentes». Completou-se assim o exame, embora se desconheçam as “conclusões”.
O tema, porém, manteve-se na agenda científica portuguesa. Um dossier de primeira página de O Século em 21 de Dezembro de 1902 sobre a «História da Antropologia» consagrava vasto destaque aos instrumentos de medição da capacidade craniana, como o compasso de espessura ou o craniâmetro parietal. É verdade que o texto já apontava o dedo ao desvio eugénico e à politização da antropologia como braço legítimo dos defensores da escravatura, mas, em simultâneo, sublinhava que «a antropologia aplicada ao caso particular dos criminosos, a antropologia criminal, tem contribuído poderosamente para introduzir profundas modificações no direito penal».
O Século, 21 de Dezembro de 1902
A partir de microfilme da Biblioteca Nacional 


Regressemos ao mundo dos jornais. Na Rua da Trindade, Esculápio recebeu os justos cumprimentos de Alves Correia e de todos os camaradas de redacção. «Foi a minha primeira vitória jornalística», escreveu mais tarde nas suas memórias. Por especial deferência, no dia 14 de Fevereiro, a sua gazetilha ocupou até o lugar do editorial de fundo do director, na primeira página. Mas foi sol de pouca dura.
Seguindo o exemplo do governo que tanto criticava, Alves Correia, «a pretexto de que tinha de pagar o tipo novo que comprara na Alemanha para melhorar a folha, reduziu-nos a todos o ordenado, com a promessa de no-lo aumentar e restituir o que nos pedia a título de empréstimo mal o jornal subisse de tiragem». Os meses passaram. A Vanguarda prosperou, mas a reposição salarial nunca se fez. Fez-se greve.  Os irmãos de armas zangaram-se.
Esculápio acabou por aceitar uma oferta de O Século, onde viveu outras aventuras que talvez aqui ainda venha a contar. Mas nunca esqueceu o dia em que descobriu, por acidente, a identidade da vítima das furnas de Monsanto.

2 comentários:

Paulo Rolão disse...

História deliciosa e, melhor ainda, muito bem narrada. Parabéns... e quero mais!

Montenero disse...

Espectacular.