Há um velho adágio no jornalismo americano: «If it bleeds, it leads!»
[«Se há sangue, vai para a abertura!», em tradução livre]. É antiga a tentação
jornalística de desvendar crimes antes (ou apesar) da polícia. Há algumas
semanas, li uma descrição sumária do caso saboroso que vou contar. Não incluía
datas, nem pistas concretas, o que constituiu um martírio para descobrir a
respectiva data, mas creio que valeu a pena. Antigo e esquecido, este caso de
1893 do célebre Esculápio contraria a moralidade dominante sobre a alegada
obsessão moderna com o noticiário criminal. Desde que há jornais, há crimes
escabrosos nas notícias. Como este.
Esculápio em caricatura de Arnaldo Ressano Garcia, Álbum (1933) (Estampa da colecção da Biblioteca Nacional) |
A Quinta da Pimenteira antes da florestação de Monsanto, na década de 1930 (Arquivo de O Século, Arquivo Nacional da Torre do Tombo) |
A notícia circula e chega ao coração de Lisboa, exagerada e distorcida
pela voz popular, mas suficiente para o repórter Esculápio, noctívago
inveterado, decidir partir para Monsanto. Aproveita a companhia dos guardas da
esquadra dos Terramotos, no Casal Ventoso, e viaja à luz de lanternas. Na escuridão, pouco
consegue ver, mas bebe o testemunho dos caçadores e reproduz a notícia no
número do dia seguinte de A Vanguarda, o
jornal republicano para o qual trabalha há dois anos. Desconhece-se a
identidade da mulher «de cabelos pretos empastados de sangue e desgrenhados,
estatura mais do que mediana», assassinada há dois ou três dias, segundo
«opiniou o Sr. Dr. Schindler», que observou o corpo, mas não lhe pôde mexer por
exigências protocolares. A frescura do local atrasara a decomposição.
Esculápio é um estrela em ascensão. Começara na Pátria em 1891 e
ali ganhara o respeito dos republicanos pela sua insolência poética, expressa
nas gazetilhas que o jornal publica e que os ardinas repetem. Com o fecho do
jornal, em Janeiro de 1891, ficou escassas semanas desempregado. Alves Correia,
farmacêutico tornado jornalista, dirige um novo diário, A Vanguarda, desde que o governo mandou encerrar Os Debates, na sequência de críticas violentas à gestão
portuguesa do Ultimato inglês.
Acolhe o jovem repórter como revisor, cargo no qual este só se mantém durante
três semanas, integrando a partir de então a redacção.
Esculápio, Arquivo do autor |
Divertido, encanta os colegas e faz vender jornais. Tomam-no como médico
apesar do seu escasso treino em Medicina. Ficou lendária, aliás, a sua partida
ao contínuo, «um pobre rapaz, vindo das berças, [que] bebia os ares por mim»,
conta em Memórias. «Ouvindo dizer que eu
andava nos preparatórios de medicina, veio consultar-me porque padecia de uma
doença secreta, fazendo com que eu, que tomei o caso por troça, lhe receitasse
uma untura de água-rás e que se besuntasse muito bem.» No dia seguinte, a
redacção parecia um cenário de guerra, com cadeiras tombadas, mesas reviradas e
um remoinho de papéis. «O estúpido tomara a receita à letra e fartara-se de
andar aos pinotes. Mas o caso é que o medicamento lhe fez tão bem que ainda há
pouco, quando me encontrava, se desbarretava, tratando-me por senhor
doutor.»
Há um certo ar de boémia na redacção da Vanguarda. Anos mais tarde, numa edição do Mundo Gráfico de 1945, recordou-se uma velha partida pregada pela redacção ao administrador Eduardo José Gaspar, «uma bela alma, simples, ingénua (…)», que vivia o desgosto de ser de baixa estatura. Um dia, o jornalista Gonçalves Neves entra na redacção, olha-o atentamente e diz-lhe muito admirado:
– Já reparaste numa coisa? Desconfio que estás a crescer…
– Estou agora – respondeu tristemente Gaspar.
Todos os dias, os membros da redacção iam-lhe à bengala e limavam meio centímetro na ponteira, «de modo que o pobre homem chegou a convencer-se que tinha crescido, visto já andar de lado para se apoiar».
– Rapazes, vocês têm razão. Afinal, estou mais alto!
Apesar destes divertimentos pueris, a década é difícil para o frágil jornal republicano. Esculápio cai no goto dos camaradas de redacção. O veterano Heliodoro Salgado («anticlerical, irredutível e esturrado», como o descreveu Esculápio) fora detido por quatro meses em 1891 por delito de opinião. Segue-se Alves Correia, o director, encarcerado por seis meses no Limoeiro. Travam-se duelos ferozes de palavras e sabres. No Verão de 1892, o próprio Esculápio fora querelado (o termo da época para o processo por difamação) pelo conde de Burnay, que não apreciara as estrofes da gazetilha de 19 de Julho:
Há um certo ar de boémia na redacção da Vanguarda. Anos mais tarde, numa edição do Mundo Gráfico de 1945, recordou-se uma velha partida pregada pela redacção ao administrador Eduardo José Gaspar, «uma bela alma, simples, ingénua (…)», que vivia o desgosto de ser de baixa estatura. Um dia, o jornalista Gonçalves Neves entra na redacção, olha-o atentamente e diz-lhe muito admirado:
– Já reparaste numa coisa? Desconfio que estás a crescer…
– Estou agora – respondeu tristemente Gaspar.
Todos os dias, os membros da redacção iam-lhe à bengala e limavam meio centímetro na ponteira, «de modo que o pobre homem chegou a convencer-se que tinha crescido, visto já andar de lado para se apoiar».
– Rapazes, vocês têm razão. Afinal, estou mais alto!
Apesar destes divertimentos pueris, a década é difícil para o frágil jornal republicano. Esculápio cai no goto dos camaradas de redacção. O veterano Heliodoro Salgado («anticlerical, irredutível e esturrado», como o descreveu Esculápio) fora detido por quatro meses em 1891 por delito de opinião. Segue-se Alves Correia, o director, encarcerado por seis meses no Limoeiro. Travam-se duelos ferozes de palavras e sabres. No Verão de 1892, o próprio Esculápio fora querelado (o termo da época para o processo por difamação) pelo conde de Burnay, que não apreciara as estrofes da gazetilha de 19 de Julho:
«Ele que sempre foi um intrujão /
Qual outro lavrador do Poceirão /
E é capaz de ser feito deputado /
que ele é capaz de tudo, o condenado! /
Nesses tempos de bárbaras nações /
pregavam-se nas cruzes os ladrões; /
Hoje em dia, no século das Luzes, /
ao peito dos ladrões, pregam as cruzes!»
Falta a Esculápio, porém, a respeitabilidade dos repórteres. E essa
resultará deste caso.
UM OVO ESTRAGADO
Regressado de Monsanto, Esculápio alicia Albino Sarmento, camarada do Diário
de Notícias e funcionário da Polícia
Judiciária, para nova visita no dia seguinte ao local do crime mal os primeiros
raios de Sol caiam sobre a cidade. Olha de relance para o relógio e decide não
dormir. Parte para o Largo de São Cristóvão, onde tem «uns amores conquistados»
e passa a noite a cear e a… foliar. À saída, já na alvorada, passa por um
«quintalório» com roupa estendida e um «avental de chita, que ondeando ao
vento, veio derrubar-me o chapéu, motivo porque o fixei».
Corre para a redacção de A Vanguarda,
no número 5 da Rua da Trindade, para recolher papel e, marchando em direcção ao
Largo de Camões, ponto de encontro com Sarmento, «como quer, porém, que a ceia
tivesse sido pouca e a fome me alanceasse, entrei na mercearia do Viana, à
esquina da Rua do Norte, e pedi dois ovos. Era meu costume, quando a fome me
atezanava (sic) e não havia tempo
para demoras, engolir dois ovos crus, para o que lhes fazia com um alfinete
dois buracos, chupando por um deles».
À medida que o trem que transporta os dois repórteres para as furnas
vence o caminho, Esculápio dá conta de que um dos ovos há muito que não tinha
contacto com a galinha poedeira. Debalde: o conteúdo do ovo podre já fermentava
no estômago do repórter. Chegou a Monsanto em tal estado que a dupla de
reportagem se transformou no esforço de um só homem. Enquanto Esculápio
vomitava e se contorcia numa maca improvisada à entrada do Covão do Gesso, o
local do crime, o camarada do Diário de Notícias recolhia depoimentos de todas as testemunhas, prometendo-lhe o
tradicional caldinho, o resumo
para que o colega não falhasse a notícia.
A edição de A Vanguarda de 4 de Fevereiro de 1893 que desvenda a identidade da vítima (Arquivo da Biblioteca Nacional) |
Nas ânsias da agonia, «terrivelmente indisposto, larguei a vomitar e,
perdendo o equilíbrio nas penhas onde me tinham colocado, rebolei por ali
abaixo e vim bater com as ventas no cadáver, sendo então que me acudiram e me
levaram em braços de novo para o meu poiso». Abriu momentaneamente os olhos e,
«coincidência extraordinária e misteriosa que então se deu, e que parece uma
coisa inacreditável e romântica preparada ad hoc para dar um desfecho a esta pequena narrativa», vê um avental de chita
exactamente igual ao que lhe atirara o chapéu ao chão na véspera, bem longe
dali.
A vítima em gravura da época. Diário Ilustrado, 4 de Fevereiro de 1893 (Arquivo da Biblioteca Nacional) |
DE PISTA EM
PISTA
Transporte-se o leitor, se conseguir, para o final do século XIX. Os
jornais ainda não publicam fotografias – só gravuras. Em França, o químico
Coulier já descobriu que os vapores de iodo podem revelar impressões digitais
numa folha de papel e o argentino-croata Vucetich tornou-se, em 1892, o
primeiro a testar o seu uso na investigação forense. Em Portugal, claro está,
ninguém tem isso em conta.
A polícia e o Governo Civil de Lisboa lançam pois o único recurso
possível para identificar a vítima: trazem à furna de Monsanto centenas de
pessoas. O Dr. Schindler coloca a vítima, «mais feia do que bonita», numa
«imunda e arqueológica maca» e lava-lhe a cara ensanguentada. Ninguém reconhece
a mulher, apesar de um sinal distintivo: a vítima era quase cega do olho
esquerdo.
Levado o corpo para o cemitério dos Prazeres, repete-se a sessão macabra
nos dias seguintes. Milhares de pessoas desfilam perante o corpo mutilado. Um
bêbado comporta-se indevidamente e é preso pela polícia, que o salva da
multidão, disposta a linchá-lo logo ali. Os jornais não poupam nos detalhes
horrendos: «Ao Sr. Veiga, foi entregue um frasco contendo a vagina que os médicos extraíram para amanhã ser verificado
pelo Sr. Dr. Pestana, do Hospital Real de São José, se a pobre rapariga foi
violentada pelo malvado», escreve-se. As diligências básicas não parecem surtir
efeito. Mesmo o monograma S.G. bordado no cós a linha vermelha revela-se
inútil. Quem será a vítima?
Esculápio possui uma pista. Já restabelecido da indigestão, «depois de
ter novamente vomitado os farrapos (…) e graças a uma garrafinha de água
mineral», dirige-se a São Cristóvão. Volta ao pátio onde viu o avental a
flutuar, faz perguntas. Descobre que há quatro dias que ninguém sabe de Maria
dos Anjos, a mulher que ali vive com um soldado da guarda municipal. É uma
pista sólida, mas Esculápio tem um problema: desde 21 de Dezembro do ano
anterior que A Vanguarda anda de
candeias às avessas com a polícia. O jornal acusou as esquadras de Lisboa de
«comércio de notícias entre a polícia judiciária e certas empresas jornalísticas,
que distribuem ordenados a chefes, cabos e guardas, como pagamento de notícias
de casos que lhes passam pelas mãos, com manifesto prejuízo de quase todos os
jornais da capital». Disse mais, aliás, o jornal de Alves Correia: «Se os
ordenados da polícia judiciária são mesquinhos e exíguos, a culpa não é da
imprensa (…) mas tornamos a dizer que publicaremos os nomes dos empregados da
polícia nestas circunstâncias que, diga-se, são quase todos, pois que possuímos
dados curiosos e interessantes sobre este escândalo inaudito.» Os repórteres de A
Vanguarda não são propriamente
populares desde então nos meios policiais.
«O comércio de notícias na polícia de Lisboa», A Vanguarda, 21 de Dezembro de 1892 (Arquivo da Biblioteca Nacional) |
Esculápio vai, pois, por outro caminho. Aborda duas vizinhas, Bárbara e
Ermelinda da Conceição, mãe e filha, com as suas suspeitas e pede-lhes que se
dirijam aos Prazeres para reconhecimento de Maria dos Anjos. Serão elas assim a
confirmar a suspeita.
No dia 4, Lisboa respira de alívio: foi identificada a vítima e preso o
marido, Thomaz Ribeiro, de 21 anos, «de fisionomia pouco antipática», natural
de São Miguel das Caldas, Guimarães. É o soldado n.º 78 da 1.ª companhia da
Guarda Municipal. Cega do olho esquerdo, Maria dos Anjos Novais, 28 anos, é a
sua esposa.
O assassino em gravura de época. Diário Ilustrado, 5 de Fevereiro de 1893 (Arquivo da Biblioteca Nacional) |
Nos dias seguintes, precipita-se uma torrente de pormenores. As provas
circunstanciais reforçam a culpa: o sabre do guarda ajusta-se às feridas. No
Quartel do Carmo, no armário do guarda, há roupa ensanguentada e a história que
ele fabricou e contou aos vizinhos (Maria teria morrido no fim-de-semana
anterior no hospital) não se confirma. A Vanguarda procede, nos dias seguintes, a um metódico assassínio
de carácter, imputando a Thomaz Ribeiro a morte da sua primeira mulher, bem
como agressões várias em Guimarães. Thomaz queixa-se, dias depois, de que
nenhum advogado se prontificou a defendê-lo, mas acaba por quebrar. Confessa a
culpa. Assassinara a mulher por ter descoberto que «ela fora desflorada pelo
cunhado antes das núpcias».
A cidade bebe todos os pormenores sórdidos do caso. Descobrem-se
namoricos do guarda com outras raparigas, às quais prometeu consórcio mal se
tornasse novamente solteiro. À porta do Quartel do Carmo, vendem-se folhas
volantes com versos sobre o caso. Um homem é detido por encenar um teatro de
marionetas que toscamente reconstitui os acontecimentos de Monsanto. No
interior, vigiado por três sentinelas (mal, como se verá de seguida), Thomaz
«come e dorme como um justo», mas enfurece-se quando, na presença de um juiz,
lhe é dito que o crime foi premeditado: «Se pudesse, também lhes [às
testemunhas que o alegam] pregava dois murros nas ventas, que lhes haviam de
saltar as cabeças pelo ar!», explode.
No dia 20 de Fevereiro, o guarda suicida-se na própria cela, envenenado
por ingestão de fósforo, que diluíra num púcaro «que, com uma bilha, lhe tinham
consentido na prisão». Acometido de vómitos e espasmos, «de tal forma sofria
que soltava verdadeiros urros (…), encolhendo o polegar entre os outros dedos e
parecendo agredir um fantasma que se lhe apresentava diante dos olhos (…), com
o corpo recurvado como num enroscar de serpente». Por singular coincidência,
notou o repórter de serviço, ficou com o olho esquerdo «semi-aberto, como a
pobre esposa que, crivada de feridas, foi encontrada no covão de Monsanto».
PRÉMIO, SANÇÃO E
PROFANAÇÃO
A morte de Thomaz Ribeiro poupou ao sistema criminal múltiplas
diligências mas não impediu um
último acto macabro. Enquanto Alexandre Bastos, sobrinho do cirurgião-chefe do
Hospital da Marinha, fotografava diligentemente o cadáver do homicida (onde
andarão essas fotografias?), o Dr. Silva Telles, eminente especialista
português, solicitou ao delegado de saúde autorização para… serrar a cabeça de
Thomaz Ribeiro. Leu bem: Telles era especialista em frenologia, a “ciência” que
sugeria a associação entre comportamentos morais e a morfologia cerebral.
Assim, com alguma pompa, «no terraço do hospital de marinha, foi colocada uma
mesa, sobre a qual foi exposta uma bacia de arame com o fundo para o ar. Em
cima dela, foi posta a massa encefálica». Para as fotografias, foi readaptado o
«tampo do cérebro» já serrado, depois coberto «com um barrete dos que
ordinariamente servem aos doentes». Completou-se assim o exame, embora se
desconheçam as “conclusões”.
O tema, porém, manteve-se na agenda científica portuguesa. Um dossier de primeira página de O Século em 21 de Dezembro de 1902 sobre a «História da Antropologia» consagrava vasto destaque aos instrumentos de medição da capacidade craniana, como o compasso de espessura ou o craniâmetro parietal. É verdade que o texto já apontava o dedo ao desvio eugénico e à politização da antropologia como braço legítimo dos defensores da escravatura, mas, em simultâneo, sublinhava que «a antropologia aplicada ao caso particular dos criminosos, a antropologia criminal, tem contribuído poderosamente para introduzir profundas modificações no direito penal».
O Século, 21 de Dezembro de 1902 A partir de microfilme da Biblioteca Nacional |
Regressemos ao mundo dos jornais. Na Rua da Trindade, Esculápio recebeu os justos cumprimentos de Alves
Correia e de todos os camaradas de redacção. «Foi a minha primeira vitória
jornalística», escreveu mais tarde nas suas memórias. Por especial deferência,
no dia 14 de Fevereiro, a sua gazetilha ocupou até o lugar do editorial de
fundo do director, na primeira página. Mas foi sol de pouca dura.
Seguindo o exemplo do governo que tanto criticava, Alves Correia, «a
pretexto de que tinha de pagar o tipo novo que comprara na Alemanha para
melhorar a folha, reduziu-nos a todos o
ordenado, com a promessa de no-lo aumentar e restituir o que nos pedia a título
de empréstimo mal o jornal subisse de tiragem». Os meses passaram. A Vanguarda
prosperou, mas a reposição salarial nunca
se fez. Fez-se greve. Os irmãos de
armas zangaram-se.
Esculápio acabou por aceitar uma oferta de O Século, onde viveu outras aventuras que talvez aqui ainda
venha a contar. Mas nunca esqueceu o dia em que descobriu, por acidente, a
identidade da vítima das furnas de Monsanto.
2 comentários:
História deliciosa e, melhor ainda, muito bem narrada. Parabéns... e quero mais!
Espectacular.
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