Saiu mais um livro de Fernando Dacosta e basta isso como motivo de
júbilo. Dacosta sempre foi um autor transfronteiriço, saltitando continuamente
na linha que separa a reportagem da literatura. Como o malabarista, mantém no
ar várias bolas em simultâneo, manobrando os sentimentos de quem o lê. Viagens
Pagãs é mais um belíssimo exemplo.
Note-se a ironia contínua de «Um carocha no Brasil», crónica tremenda, traçada a cores vivas e em dois planos
diferentes – em pano de fundo, Dacosta é repórter, descrevendo, como poucos
fizeram, o exílio de Marcello Caetano no Brasil; em primeiro plano, o autor acompanha Agustina Bessa-Luís a uma feira literária em Vera Cruz. Tão depressa
Dacosta faz-nos mergulhar na solidão dos últimos dias de Marcello, sozinho,
doente, angustiado e esquecido, como é capaz de cortar o tema seguinte a golpes
de sabre, citando Franco Nogueira e a sua leitura fria do marcelismo. «“Era o
homem das primaveras frustradas”, sibilar-me-á Franco Nogueira. “Deram todas em
borrasca, em calamidade, como era aliás de prever.”»
Agustina é a personagem útil, que nos traz de volta à terra e ao mundo
terreno. Com ela (ou através dela), Dacosta reflecte. Faz-nos rir. A ideia do
túmulo do genial e provocador Nelson Rodrigues a escassos metros do túmulo de
Marcello Caetano constitui a última e duradoura provação do derradeiro
Presidente do Conselho do Estado Novo. Ou uma longa dissertação de Agustina
sobre a mulher e a sua força de vagabundagem cortada depois pela insistência da
escritora para que Dacosta a acompanhe às boutiques de luxo, onde fica encantada por ser reconhecida «por
uma caixeirinha estudante de literatura».
Viagens Pagãs (Parsifal, 2015)
reúne sete crónicas – um documento
comovente sobre a adolescência vivida no Douro vinhateiro, uma reportagem
fenomenal sobre a ilha do Corvo, microcosmo especial de portugalidade insular e
loucura sã, uma crónica mais curta sobre a vivência mineira, uma reflexão
notável sobre Marrocos e a história portuguesa no Norte de África e uma viagem
de mota por Angola e Moçambique.
Guardo para o fim Um Veleiro no Atlântico, quarta crónica no livro, mas texto-rei na obra. É um exercício de
reportagem notável. Uma viagem de barco abortada, supostamente transatlântica,
mas que o mar trava em Sagres. Metáfora tremenda deste país sedento de
aventura mas carente de razão. Agostinho da Silva é o cicerone a bordo. Embala
o leitor entre Teixeira de Pascoais e Teófilo Braga, Mia Couto e Camões. «O
último continente onde nos faltava desembarcar era a Europa», ironiza Agostinho.
A viagem e o relato oscilam entre os sonhos de grandeza de dois
sonhadores a bordo e um veleiro que não sai da marina por força da borrasca. É
Dacosta em estado puro. É motivo para comprar o livro!
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