domingo, abril 26, 2020

Passeios pandémicos



Perto do sítio onde moro, existe um palacete arruinado, vestígio triste da arquitectura elegante de início do século XX. Foi a propriedade imaginada para si por Francisco Mantero, empresário colonial. Até 1927, data do seu falecimento, viveu aqui. Depois, há duas versões: a factual e a inventada. 
Segundo a factual, a viúva ainda viveu neste elegante palacete até 1952. Os tectos eram habilmente decorados e a escadaria interior requintada. Gostava de ver uma fotografia dessa época. Seria uma das propriedades elegantes e cobiçadas da cidade, enquadrada por uma paisagem florestal única. Morta a senhora, os descendentes venderam tudo à cidade e ninguém voltou a viver aqui.
Na versão inventada, esta é uma casa assombrada. Mantero teria trazido uma indígena linda de São Tomé, instalando-a no palacete. O ciúme foi crescendo e o proprietário tê-la-ia emparedado numa divisão, levando-a à loucura – solução técnica para combater a infidelidade que foi caindo em desuso.
        Os maluquinhos do bairro (também os temos) dizem que à noite ainda se ouvem os gemidos da senhora.  Não é aconselhável meter a cabeça lá dentro para clarificar a questão. A casa está em vias de colapso. Com ou sem indígena, deixámos este património único chegar a tal ponto.
E esse é o crime desta história.




sábado, abril 25, 2020

«Então, olhe, corte o mais alarmista!»



Jornalismo e Jornalistas, 72, 2020, recolha de Joaquim Cardoso Gomes
Há um documento espantoso publicado na última edição da revista Jornalismo e Jornalistas e recolhido por Joaquim Cardoso Gomes, o melhor historiador da Censura que temos entre nós. O documento reproduz as conversas entre os censores de Lisboa e do Porto à medida que a revolução de 1974 progride. É o retrato clássico de uma burocracia, incapaz de processar o que se está a passar, apesar da ilusão de controlo.
Esta troca de comentários entre censores desnorteados fez-me lembrar uma história que o Mário Ventura Henriques contou ao Fernando Correia e à Carla Baptista, passada na manhã do dia 25 de Abril na redacção do Diário Popular. Fernando Teixeira, o chefe da redacção, insiste que as provas da edição do dia ainda têm de ir à censura apesar de já existirem todos os indícios de que a situação política mudou. As provas vão uma vez. Duas vezes. A dada altura, é o contínuo, muito calmo, que comenta para o chefe da redacção: «Senhor doutor, já lá não está ninguém!»
#25deabrilsempre

quinta-feira, abril 23, 2020

Outro Abril



Outro Abril, o de 1960, há exactamente 60 anos. Na ordem de serviço n.° 113 da PIDE, surge pela primeira vez o pedido de captura de Amilcar Cabral. Já não é o ex-estudante, que liderou a Casa dos Estudantes do Império, nem o engenheiro agrónomo que fez tese sobre a erosão dos solos e muito menos o jovem atlético que sonhou jogar no Benfica É o protótipo de guerrilheiro em formação, que entra no radar do regime. O resto é história.

sábado, abril 18, 2020

Manuel Magro, o homem que olhava os jornais como quem olha as jóias numa montra

Por um comentário do geólogo e amigo Galopim de Carvalho, descobri que morreu recentemente Manuel Magro, jornalista do Diário Popular e administrador da RDP. Tanto quanto sei, o Sindicato dos Jornalistas ainda não assinalou o acontecimento com o destaque que o mesmo justifica. Quem foi afinal Manuel Magro?
Entrou para o Diário Popular em 1958 na sequência de um concurso organizado por Brás Medeiros para encontrar novos repórteres. Mário Ventura Henriques ganhou o concurso, Magro ficou em segundo, escrevendo sobre «o drama vivo de um homem que cumpriu muitos anos de cadeia por um erro judicial». Estava prevista a publicação de uma crónica de cada concorrente e um estágio na redacção, mas o estilo de ambos agradou tanto que o jornal acabou por abrir os cordões à bolsa e contratou-os. «Brincara aos jornais desde menino», contou numa crónica publicada em Setembro de 1972. «Cheguei à adolescência a olhar os jornais como quem olha as jóias numa montra.»
         Mário Ventura e Manuel Magro encontram uma redacção peculiar, avessa à entrada de novos recrutas. «Havia uma resistência, não propriamente declarada» à mudança, contou Mário Ventura a Fernando Correia e Carla Baptista em Memórias Vivas do Jornalismo. «O Manuel Magro, que entrou pouco depois de mim, conquistou a paixão do Fernando Teixeira e eu fiquei protegido do Zé de Freitas. Parece incrível, mas funcionava assim.»
Formado em Direito, Magro era um homem peculiar, muito interessado no noticiário internacional. Ao serviço do Popular, viajou pelo mundo. Assinou crónicas sobre a Espanha em 1964 e 1965, a Grécia em 1968, no rescaldo do golpe de Estado do ano anterior, e sobre o Brasil em 1969. Calhou aliás estar nos Estados Unidos em 1968 quando Martin Luther King foi assassinado. Contou-me Baptista-Bastos, em entrevista, que Magro enviara então um cabograma para a redacção. O texto singelo dizia apenas: «Mataram o Luther King. Puxem.» Na linguagem cifrada dos jornais, o «Puxem» constituía a instrução para encontrar tudo sobre o tema nas agências, na concorrência, «inventando se fosse preciso», dizia o BB.
Orgulhando-se da sua tradição de ter enviados-especiais e correspondentes em todos os pontos do global, o jornal organizou uma edição de luxo, com vastos pormenores sobre o acontecimento redigidos na redacção, sobretudo por Baptista-Bastos. A crónica foi assinada por Manuel Magro, para valorizar o estatuto do enviado-especial. Porém, o trabalho de reportagem foi… premiado pelo SNI. Contava o Bastos: «[O Magro] não só não me dá uma palavra de reconhecimento, como não me dá uma parte do prémio monetário, o sacana. Nem um tostão. ‘Puxem…’» Mesmo assim, ambos mantiveram uma forte amizade.
No final da década de 1960, a redacção do Diário Popular dividia-se entre os grupos leais a Brás Medeiros e a Francisco Pinto Balsemão na guerra surda que os dois administradores mantinham pelo controlo do jornal. Magro, como Bastos, Fernando Correia ou Jacinto Baptista, colocou-se do lado de Balsemão. Numa crónica publicada no Jornal de Negócios, Baptista-Bastos lembrará mesmo a definição elogiosa que Magro aplicava à capacidade de Balsemão para escutar opiniões contrárias: «O homem tem a democracia até à medula.» Balsemão paga-lhe na mesma moeda. Numa entrevista que me concedeu, não cessou de se lhe referir respeitosamente como «o doutor Manuel Magro».
Com ou sem apoios morais, triunfará o dinheiro. Brás Medeiros consegue que Miguel Quina compre acções dispersas do jornal a partir do final de 1970, assegurando o controlo maioritário do Diário Popular. Em Fevereiro de 1971, Balsemão sai do Diário Popular e começa o esforço de preparação de um novo semanário, que verá a luz dois anos depois, em 1973 – o Expresso. Manuel Magro, esse, permanece na redacção do Popular e ascende na secção de Política e Economia. Gosta dos temas que a maioria dos jornalista evita a sete pés. Especializa-se.
A revolução de 1974 provoca repercussões imediatas no Diário Popular. Martinho Nobre de Melo é afastado da direcção, tal como Fernando Teixeira, o chefe da redacção. Logo a 4 de Maio, os trabalhadores elegem Manuel Magro como director interino, institucionalizando a nomeação a partir de 20 de Dezembro de 1974. É escolhido um homem moderado, reflectindo o equilíbrio na Primavera de 1974 entre as facções políticas no seio do jornal.
A tentativa de golpe spinolista no dia 11 de Março de 1975, porém, é fatal. O Diário Popular hesita excessivamente no apoio ao governo. A banca é nacionalizada e, com ela, também os jornais que esta detém. Magro será afastado em plenário de funcionários. O repórter fotográfico Fernando Corrêa dos Santos narrou-me (para um livro sobre o Diário Popular que está há meses encalhado) esses dias: «O movimento contra ele foi uma coisa feroz. Lembro-me de Magro gritar para quem o queria ouvir: ‘Eu sempre fui democrático.’ Depois do 25 de Abril, a vida no jornal foi agitada. Havia plenários em que até as mulheres da limpeza participavam – cada pessoa tinha um voto. O Coimbra, que era advogado, saltava para cima de uma secretaria e gritava: ‘Quem vota a favor? Quem vota contra?’ Alguns punham sempre o dedo no ar. E havia muitos que olhavam para o lado para ver como estava a tendência: ‘Agora, levanto ou não?’»
Afastado do jornal que servira durante 17 anos, Manuel Magro virá a ingressar em O Século, outro turbilhão de lutas revolucionárias. No final de Março de 1976, assume o cargo de director-adjunto do velho jornal. O jornal é nacionalizado nesse Verão e Manuel Magro vive então mais uma polémica. O jornal publica uma notícia a propósito do livro controverso de Henrique Cerqueira sobre o exílio de Humberto Delgado e os falsos conspiradores que o teriam conduzido às mãos da brigada da PIDE em 1965. A publicação desperta a ira de vários republicanos. No refluxo mediático, Magro é demitido, mas a redacção e o director seguram-no. É readmitido em funções e, em Dezembro de 1976, torna-se mesmo director interino de O Século, recusando a nomeação para director efectivo pois sabia, melhor do que ninguém, que o destino do jornal estava traçado. Manuel Alegre assinaria o despacho com a certidão de óbito de O Século.
Manuel Magro trabalhou ainda na rádio como administrador, mas a sua paixão foi sempre este castelo de letras e tintas que se reconstrói e destrói todos os dias.
Morreu esta semana.