quinta-feira, abril 24, 2014

Pode um mosquito travar uma locomotiva?


Declaração de interesses: o leitor tem o direito de saber que não sou isento na apreciação dos factos que apresentarei de seguida, pois fui arrolado, com meu acordo, como testemunha de defesa do arguido no processo em curso no 5.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. Tentarei, apesar disso, apresentar o objecto de discussão com a maior imparcialidade possível. Do (in)sucesso desse esforço, avaliarão os leitores.

Pode um mosquito travar uma locomotiva?
Não é do domínio público, nem foi ainda noticiado em Portugal, mas há um processo criminal em curso em Lisboa que definirá brevemente a hierarquia de prioridades entre o direito à honra, ao bom nome e à reputação de uma instituição e a liberdade de expressão de um investigador que, considerando o interesse público do que tinha a dizer sobre a actividade de uma empresa e estando convencido da verosimilhança do que afirmava, utilizou a emissão de um programa de rádio para denunciar más práticas. Direitos essenciais numa sociedade moderna podem, com frequência, sobrepor-se, exigindo clarificação sobre a respectiva prioridade. Seremos ainda a sociedade do “respeitinho é muito bonito” e o bom nome prevalecente sobre a crítica ou, em alternativa, admitiremos o direito de um homem da ciência exercer um papel de denúncia, mesmo quando utiliza frases mais cáusticas?
Os factos são simples e apresento-os sumariamente. Naturalmente, apresentarei as duas partes em disputa apenas com iniciais, respeitando a privacidade dos intervenientes.
No dia 20 de Outubro de 2012, pelas 9h40, o programa Cientificamente, da RDP-África, apresentado pela jornalista Ana Paula Gomes, entrevistou dois arqueólogos – A.M. e R. T. D. O pano de fundo era um congresso internacional organizado pelo Instituto de Investigação Científica e Tropical, no qual, entre outros assuntos, se discutiu o património cultural dos países africanos de expressão portuguesa.
Durante a emissão, o arqueólogo A.M. expressou a sua preocupação por ver autorizada em Moçambique a actividade da empresa AW, de arqueologia marítima/salvados (o seu objecto difere radicalmente de acordo com quem a descreve). Empresa alemã sediada em Portugal desde 1994, aproveitando então um curto intervalo permitido pelo triste decreto-lei 289/93, assinado por Pedro Santana Lopes, secretário de Estado da Cultura, a AW opera maioritariamente em países que não assinaram a Convenção da UNESCO de 2001 para a Protecção do Património Cultural Submerso. Já esteve em Cabo Verde, no Vietname, na Indonésia e obteve licença para operar em Moçambique em 1999, tendo a sua licença sido prorrogada em 2004, 2007 e 2011 (de acordo com esclarecimentos prestados por dois porta-vozes da empresa, entrevistados no mesmo programa uma semana depois, ao abrigo de um direito de resposta que a RDP aceitou conceder-lhes).
Durante a emissão, A.M. considerou que chegara a altura certa para, de uma forma mais oficial e académica, “expressar as preocupações da comunidade arqueológica – neste caso, da que lida com o património cultural subaquático, relativamente às orientações político-culturais que têm sido imprimidas a um património, que é moçambicano, e à revelia de todo um pensamento científico, que é corrente nesta altura, e também contra as recomendações de organismos como a UNESCO, expressar a nossa preocupação e tentar apontar alternativas para que esse património seja estudado e usufruído e que não passem necessariamente pela sua pilhagem e pela sua venda em leilão”.
De que falava A.M.? A publicação do D.L. de 1993 abriu temporariamente a porta à legalização de empresas com o propósito mais ou menos declarado de extrair artefactos de valor de sítios arqueológicos submersos, sempre que a sua preservação estivesse ameaçada. Não entrarei pelos caminhos já explorados por uma edição do “Semanário” de 27 de Agosto de 1994, que associou um então funcionário da Secretaria de Estado da Cultura à redacção da lei, ao mesmo tempo que exercia o papel de advogado de um dos principais interessados na aprovação de legislação.
Socorro-me, porém, da intervenção pública do então presidente da AW, numa edição de 28 de Abril de 1995 do jornal “Independente”. Com inesperada franqueza, o responsável da empresa referia: “Quando encontramos artefactos em mau estado, não se deve perder tempo. Nessa altura, temos de recolher só o que tem valor comercial. O que nos interessa são os galeões, que dos séculos XVI a XVIII transportavam pedras do Oriente e prata e ouro das Américas. Os navios que tenham valores a bordo é que nos interessam.”
No outro lado do espectro, os principais arqueólogos do país (e a UNESCO; e o ICOMOS...) entendem que, numa escavação, o paradigma do artefacto valioso correspondia à perspectiva do século XIX, valorizando o achado e não o contexto ou a informação. Os Gabinetes de Curiosidades, como o que o Duque de Palmela apresentava aos leitores da Ilustração Portuguesa em 1907, juntando na mesma sala sarcófagos egípcios, vasos etruscos e esqueletos maias, estão ultrapassados. 
"Ilustração Portuguesa", 93, 1907
(a partir do arquivo da Hemeroteca Digital)
Numa escavação, recolhe-se, acima de tudo, informação. Que pode não ser opulenta e pode não ter valor de mercado, mas permite aprender, sobretudo num contexto em que a informação sobre a construção naval de embarcações quatrocentistas a seiscentistas ainda apresenta lacunas consideráveis. Para um artigo recente, entrevistei o arqueólogo Francisco Alves, que acompanhou a descoberta de duas pirogas pré-históricas no rio Lima em 2002 e que demorou cinco/seis anos a extrair delas informação sobre a navegação fluvial em Portugal naquele contexto – o mais antigo de que há registo. Ninguém argumenta que é um trabalho fascinante e posso testemunhar que raramente há Lara Crofts nos sítios arqueológicos, mas é a única maneira possível de operar cientificamente em arqueologia. 
Mais do que isso: à partida, nenhum arqueólogo sabe o que se esconde no sítio arqueológico, pelo que avança com cuidado e processos normalizados. Numa entrevista que me concedeu para as páginas da National Geographic (a propósito da expansão do detectorismo em Portugal), A.M. descreveu as duas perspectivas com uma metáfora simples: “Imagine um livro raro. Há duas maneiras de o ler. Se eu o ler com cuidado, manuseando lentamente cada página, recolho o máximo de informação possível e não prejudico as segundas e terceiras leituras de quem vier a seguir. Se eu avançar directamente para as páginas que me interessam e têm valor comercial e as arrancar, mais ninguém poderá ler o livro. É tão simples como isto!” Na emissão do Cientificamente, A.M. lembrou que não existe ainda uma nau ou um galeão português em contexto arqueológico, que possa ser estudado convenientemente.
Há uma segunda vaga de argumentos. A AW sublinha regularmente que as suas intervenções justificam-se pelo carácter de emergência, pois os sítios de naufrágio podem ser pilhados a qualquer altura ou podem degradar-se subitamente. E lembra que lhe interessam os navios de carga repetitiva, ou seja, aqueles que faziam parte de comboios marítimos, transportando carga entre continentes e sobre os quais a ciência já terá informação suficiente. Arqueólogos como A.M. sustentam que a decisão sobre o que é repetitivo não pode ficar a cargo de uma empresa privada, que pretende lucrar com a venda em leilão de artefactos. E acrescentou na referida emissão: “O problema aqui nem é tanto aquilo que já foi retirado e que se sabe (...). É aquilo que foi destruído e não se sabe.”
E, por fim, há o argumento da cientificidade. A reputação que a AW granjeou na Europa e nos Estados Unidos não é lisonjeira e assistiu-se, nos últimos cinco anos, a um redobrado esforço de publicação de volumes descritivos de campanhas (com a chancela da própria AW) e a inscrição de funcionários em congressos científicos para participação pública de achados. Que eu saiba, a AW ainda não avançou para a fase verdadeiramente científica do trabalho arqueológico, que se prende com a submissão de artigos a revistas ou jornais científicos, reconhecidos internacionalmente, com revisão de pares e escrutínio generalizado. Na minha definição de ciência, a AW não cumpre os requisitos mínimos.
No programa Cientificamente, A.M. foi mais longe. Lembrando a experiência da AW em Cabo Verde, chamou-lhe “empresa de caça ao tesouro” e narrou uma campanha (não desmentida pela AW) que permitiu a descoberta de um raro astrolábio banhado a prata, posteriormente vendido em leilão para os Estados Unidos. Defendeu-se a AW, referindo que mandou fazer uma cópia do artefacto para oferecer ao governo cabo-verdiano e ajudou a implementar o Núcleo Museológico da Praia.
Está assim em fase de instrução um processo-crime suscitado por queixa da AW e que avaliará, em última instância, se toleramos, enquanto regime democrático cumpridor de convenções internacionais, a actividade de uma empresa que aborda a arqueologia com fins utilitários. Os danos não patrimoniais reportados, e que constam do pedido de indemnização, ascendem a 50 mil euros!
Permitam-me, na nota mais pessoal deste texto, expressar a minha incredulidade quando vi a lista de testemunhas arroladas pela AW, que previsivelmente aplaudirão a actividade e métodos da empresa. Uma ex-ministra da Cultura e a actual directora de um Museu Nacional vão testemunhar em seu abono. Como dizem os espanhóis, senti verguenza ajena.
Esta é, afinal, uma batalha travada com vinte anos de atraso. É até discutível se o porta-estandarte deveria ser A.M. ou um representante consagrado do campo arqueológico ou patrimonial. Não tenho resposta para isso. Limito-me a referir que o que falta em patentes académicas a A.M. sobra-lhe em coragem cívica.
No fim de contas, a resposta à pergunta de partida está nas mãos da senhora juíza. Pode um mosquito travar a marcha de uma locomotiva? Espero que possa. Nem que seja zumbindo aos ouvidos do maquinista até ao ponto em que ele interrompa, irritado, a marcha.

8 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pelo texto. É importante dar a conhecer à sociedade portuguesa esta questão até pelo poder intimidatorio que ela encerra. Partilharei a página.

Gonçalo Pereira disse...

Prezados leitores,
Tomei a opção de não identificar directamente os intervenientes deste caso, pelo que não posso aprovar comentários que refiram explicitamente nomes de pessoas ou empresas.
Espero que compreendam.

João disse...

O direito à liberdade de expressão não é absoluto. Gostaria que chamassem "revista de caça ao tesouro" à sua publicação (que não é, atenção!)? A AW também não deve ter gostado.
Mas não se preocupe. Neste país, ninguém paga nada em tribunal. Cumprimentos.

Anónimo disse...

Espantado pelas figuras que desfilarão pela Acusação? Meu caro, neste país, tudo se paga e tem um preço. A senhora ministra agradece à empresa a consultoria que lhe prestou, a senhora directora agradece as nomeações de que foi alvo. Um país de vénias e salamaleques – tudo normal!
Sabia o que costumava dizer o Nixon? Quando os temos presos pelos tomates, as mentes e os corações têm tendência a seguir!!!!
Abraço, JA, Amadora

Anónimo disse...

Lá está o Gonçalo a associar o trabalho científico à publicação de artigos; num mundo perfeito até poderia se, mas no mundo de capelas e coutadas da arqueologia esse critério não chega.
Até assinaria o comentário mas vejo que ninguém o está a fazer. Serei portanto mais uma anónima.

Beatriz disse...

Boa tarde, Gonçalo.
Gostei do seu texto, embora preferisse que ele mencionasse as partes envolvidas. Tenho imenso respeito pelo A.M. e pela luta que ele inadvertidamente começou. Tem enorme mérito e coragem e arrisca-se a comprometer o seu futuro caso esta demanda não seja bem sucedida. Mas saliento a coragem, essa coragem que parece tão afastada das nossas vidas, a mesma coragem aliás (para quem não sabe) que o levou a combater, com sucesso, a construção do cais de cruzeiros nos Açores.
Quanto à empresa e às suas práticas, respondo como Cunhal um dia respondeu aos juízes do Estado Novo: um dia, os réus serão vocês!
Cumprimentos e não deixe morrer este assunto.
Beatriz

[pode publicar o comentário se quiser, embora a mensagem fosse para si]

M. disse...

Eu sou bióloga. Exerço a minha actividade na área da saúde.
Não sou arqueóloga e a minha relação com a cultura é a de qualquer cidadão comum. Tento ser uma cidadã informada.
Apesar de todas as cautelas de Gonçalo Lopes, que respeito e entendo, já identifiquei, sem muito esforço, quem é quem.
O AM, cuja actividade em prol do património subaquático acompanho há muito. A AW, que identificaria de imediato a partir do momento em que identifiquei AM. E até a Ministra da Cultura e a Directora do Museu.
Aqui, como bióloga, a pensar, custa-me a entender a razão porque a identidade dos envolvidos numa disputa judicial desta natureza não pode, ou deve ser referenciada com toda a naturalidade.
Bem, mas a razão objectiva da minha intervenção aqui é chamar a atenção para que o que se passa em terra, no âmbito do que se alega para proceder a ''salvamentos'' e no domínio das práticas empresariais, devia também ser sanado, para que a arqueologia não saia toda ela contaminada.
Sem qualquer insinuação sobre a identidade dos envolvidos, deixo aqui ligação para um interessante documento.
HTTP://MASCHAMBA.WEBLOG.COM.PT/ARQUIVO/CAT_INDICO.HTML

Parece estar inacessível. Pelas mesmas razões por que os nomes não devem ser revelados. Transcrevo um excerto.

''- COMPILAÇÃO DE TEXTOS RETIRADOS, COM A DEVIDA VÉNIA, DO BLOG MASCHAMBA

ARQUEOLOGIA SUBAQUÁTICA 15: CARTA NO MEDIAFAX

Aqui fica reprodução de "Carta a Jacinto Veloso", da autoria de Maura Quatorze e Machado da Graça (a quem agradeço a sua partilha), publicada no Mediafax de 16 de Maio de 2004 (nº 3052).

Texto relativo à problemática da exploração do património arqueológico subaquático em águas moçambicanas. E que surge, explicitamente, em diálogo com anterior entrada: Arqueologia subaquática 12.

***

CARTA A JACINTO VELOSO

Em resposta à sua carta, publicada no jornal O PAÍS de 12 de Junho de 2004, gostaríamos de dizer o seguinte:

Em relação aos princípios básicos que enuncia estamos de acordo com as alíneas a) (soberania moçambicana sobre navios e cargas naufragados nos nossos mares); b) (Exploração das estações respeitando as normas da arqueologia marítima e; c) (Recuperação dos bens e realização de estudos). Em relação à alínea d) não podemos estar de acordo por prever algo que, de acordo com a nossa interpretação da lei moçambicana, e a interpretação de juristas por nós consultados, é ilegal.

Na verdade não nos parece que a decisão do Conselho de Ministros, de 5 de Novembro de 1998, possa servir de cobertura à retirada da classificação de peças arqueológicas encontradas vários anos mais tarde.

É nossa interpretação que a retirada da classificação dos bens culturais só pode ser feita, pelo Conselho de Ministros, a posteriori, em presença das peças em causa e, peça a peça, através de uma peritagem que possa determinar se as peças são, ou não, de valor patrimonial. Ora, Segundo a Directora Nacional Angela Kane isso não foi feito.''

A quem quiser posso enviar cópia integral guardada oportunamente em WORD

Sergio Pereira disse...

"Cada um puxa a brasa para a sua sardinha"
Nada disso é novidade. Porém, ultimamente existe uma tendência em dar notoriedade a certas notícias principalmente do meio subaquático ou dos Açores.
Neste País, existem vários A.P, J.S, D.C, M.C, S.P, entre muitos outros a lutarem para a preservação do Património Arqueológico, combatendo Câmaras Municipais, arquitetos famosos, grandes empresas de construção e até mesmo decisões absurdas do DGPC e nem por isso são reconhecidos. Existem casos de alguns colegas terem sido vítimas de processos disciplinares pelas entidades empregadoras, por serem contra a decisão dos seus superiores.
Entre a exploração subaquática sem o devido acompanhamento arqueológico e a destruição de um sítio arqueológico terrestre por incompetência de quem realizou o projeto, não existem diferenças. Ambas são crime.
O problema é que ninguém é punido. Não são vinte anos de atraso, são décadas de atraso, descaso e desvalorização.

Somente mais uma pequena nota. “A fase verdadeiramente científica do trabalho arqueológico” não são as publicações de artigos. Posso produzir cientificamente sem publicar, não posso é publicar cientificamente sem produzir.
Cumprimentos