A revista deste mês [Maio] publica uma das
reportagens que mais gozo me deu escrever, sobretudo porque parti para ela com
preconceitos sobre a arte rupestre da pré-história ibérica e terminei-a com as
minhas convicções fortemente abaladas. É bom sinal quando isso acontece.
Significa que o conhecimento não estagna e que tenho muito a aprender.
Significa também que, onde alguns encontraram becos sem saída, outros propõem
hipóteses alternativas, beneficiando de vantagens tecnológicas e de olhares
mais descomprometidos.
Enquanto me documentava, o arqueólogo
Paulo Lima descreveu-me um artigo que eu não poderia deixar de ler. Fora
publicado na “Terra Portuguesa, Revista Portuguesa de Arqueologia Artística e
Etnografia”, uma publicação especializada que Vergílio Correia dirigiu entre
1916 e 1927. Foi nessa publicação que, pela primeira vez, se escreveu sobre as
pinturas do abrigo rochoso da Pala Pinta, mas, para além da descrição,
cativou-me a generosidade do arqueólogo, historiador e professor de Peso da
Régua.
Vergílio Correia (1888-1944) assumiu
muitas facetas na sua carreira na Universidade de Coimbra. Escreveu várias
vezes que era a cadeira de História de Arte que o encantava, apesar de ter leccionado
Estética e Arqueologia, entre outras. Deleitava-se com as pequenas descobertas
e a respectiva publicação na revista que, a custo, lançava para meia-dúzia de
curiosos e interessados.
O caso da Pala Pinta é emblemático da sua
generosidade, repito. No final de uma aula em que descrevera pintura rupestres
conhecidas em Espanha, o professor foi abordado por um aluno, Horácio de
Mesquita. Mesquita vira as representações de pinturas produzidas em Espanha e
reconhecera de imediato a matriz. Ele também as conhecia no seu concelho de
Alijó. Num velho abrigo usado por caçadores, existiam pinturas vermelhas nas
paredes. Em Trás-os-Montes, antes da Pala Pinta, só se conhecia um exemplo de
arte rupestre à data desta descoberta – as pinturas do Cachão da Rapa.
Vergílio Correia poderia ter absorvido a
informação com egoísmo, como tantos outros mestres fizeram antes e depois de
si. Poderia ter publicado isoladamente, num tempo em que essa era a norma.
Poderia ter excluído o aprendiz de feiticeiro. (Num artigo recente, no
“Público” de 24/04, o arqueólogo Luís Raposo contou como, no III Congresso
Nacional de Arqueologia, em 1973, ele e mais dez colegas espantaram o auditório
com uma comunicação subscrita por 11 autores, coisa inaudita para a época! Imagine-se como seria cinco décadas antes...)
Vergílio Correia escolheu partilhar os
louros com o seu jovem aluno, co-assinando o artigo e permitindo que o jovem
redigisse alguns parágrafos sonhadores sobre o contexto daquela representação e
enquadrando-os depois no que a ciência da época permitia assegurar.
De alguma maneira, é a sua memória que
homenageio com a reprodução integral em baixo das três páginas do artigo sobre
a Pala Pinta. Até porque o trabalho que trazemos à estampa este mês só chegou a
bom porto com as intervenções determinadas do Luís Bravo Pereira (Escola das
Artes, Universidade Católica Portuguesa), do Paulo Lima (Centro de Estudos de
Arqueologia, Artes e Ciências do Património), do Hugo Pires (Centro de
Investigação em Ciências Geoespaciais da Universidade do Porto e Superfície,
Lda), do João Fernandes (Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e
Tecnologia da Universidade de Coimbra) e do Tiago Pessoa (da Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra).
"Terra Portuguesa", 1922, Pg. 145-147 (Arquivo da Biblioteca Nacional) |
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